Zsuzsanna Devecseri, head global de oncologia da Sanofi: “Bons dados de pacientes são mais valiosos que diamantes”
Zsuzsanna Devecseri, head global de oncologia da Sanofi: “Bons dados de pacientes são mais valiosos que diamantes”
O futuro do tratamento do câncer será feito através de
O futuro do tratamento do câncer será feito através de parcerias entre governos, universidades, hospitais e farmacêuticas. É o que acredita Zsuzsanna Devecseri, head global de oncologia da Sanofi. A médica húngara veio ao Brasil para participar do evento “O Futuro da Oncologia – Horizons en Expansion”, na sexta-feira, 1, onde discutiu com especialistas de todo o país os desafios da farmacêutica nas pesquisas clínicas, a longevidade e a qualidade de vida dos pacientes.
Em entrevista exclusiva ao Futuro da Saúde, ela falou sobre o papel da tecnologia no desenvolvimento de novos tratamentos, o avanço dos estudos na última década e o papel de cada um dos envolvidos nos cuidados com o paciente. Zsuzsanna é enfática ao dizer que além de pesquisas e terapias, é preciso avançar no diálogo com os pacientes, para que a população compreenda quais os possíveis sinais e sintomas de um câncer, e assim, iniciar os cuidados precocemente. Leia os principais trechos da entrevista:
O que de mais avançado a Sanofi tem estudado em relação a tratamentos de câncer?
Zsuzsanna Devecseri – Essa não é uma pergunta fácil para começar (risos). A Sanofi tem um longo legado em oncologia, inclusive foi parte do início da quimioterapia, com Taxotere e Eloxatin, primeiros tratamentos oncológicos. Além disso, sabemos que o desenvolvimento de drogas oncológicas é um negócio de alto risco, porque sempre tentamos encontrar mais e procuramos novos focos e mecanismos de ação para entender a biologia do câncer. Às vezes falha, às vezes não. Mas essa é a evolução. Há cerca de 3 anos decidimos alocar nossas forças em múltiplas ideias e aperfeiçoar nossas capacidades internas de pesquisa, e produzir diversas delas. Apenas nesse período foram cerca de 10 propostas. Focamos muito no entendimento do câncer e tentamos procurar esses mecanismos que ninguém mais está buscando ou mirando em tumores que não há muitas companhias atuando, como o câncer de pele não-melanoma. Esses são os principais focos da Sanofi atualmente.
A Sanofi pretende entrar de vez nas terapias com células CAR-T?
Zsuzsanna Devecseri – Nós estamos trabalhando com uma terapia que atua em células NK (natural killer, em inglês), que trabalham matando as células do câncer. Isso é realmente único e estamos trabalhando com duas abordagens diferentes, atualmente em fase 1. Temos, como sempre, nos primeiros estudos com humanos uma forte confiança de que irá funcionar e mudar a forma como lidamos com o paciente. Terapias celulares são muito animadoras e se nós estamos falando do futuro dos tratamentos oncológicos, ela será definitivamente uma delas. Se você lembrar, dois meses atrás tivemos o primeiro paciente que foi tratado com terapia CAR-T completando 10 anos livre do câncer. Isso é uma grande notícia, mas existem muitos outros pacientes que não tiveram a cura – após 10 anos você quase pode dizer “cura” –, e muitos outros pacientes não têm acesso à cura.
Além do acesso, quais outros desafios das terapias celulares?
Zsuzsanna Devecseri – Há ainda outros dois grandes problemas com as terapias celulares. O custo de fabricação, porque você precisa extrair as células dos pacientes, precisa de máquinas, e colocar de volta no paciente para fazer o trabalho. Isso custa muito. Muitas empresas estão procurando “fazer estoques”, usando doadores universais. Filtram as células imunes, fazem a modificação e devolvem, deixando apropriadas para uso, como as células NK também fazem. E isso pode trazer um grande acesso, com um processo mais simplificado de fabricação aos pacientes, e claro que isso impacta o preço do tratamento. E o segundo problema das terapias celulares é a síndrome de liberação de citocinas, que ocorre em quase todas as terapias CAR-T, que é um grande efeito colateral ou toxicidade. Nós também temos experiência com células NK e até o momento não vimos, só vimos liberação de citocinas mínimas. Não é uma complicação simples de tratar e pode ser letal, então o paciente pode morrer por conta da liberação excessiva de citocinas e praticamente não há cura para isso. Então nós estamos tentando minimizar os efeitos da síndrome de liberação de citocinas. Há muitas pesquisas sendo feitas com terapias celulares em tumores sólidos. Essa é uma nova área, há muita promessa e aguardo muito as evidências de como vai funcionar.
Podemos dizer que essa é a plataforma do futuro no tratamento oncológico?
Zsuzsanna Devecseri – Acredito que teremos múltiplas coisas acontecendo em terapias para câncer no futuro, mas nenhuma vai atuar sozinha. Sempre vão atuar juntas e na combinação de mecanismos. Porque o câncer é muito enganoso. Se você procura por um câncer, pode achar células diferentes, com mutações e características distintas. Imagine um conglomerado delas, misturadas como uma salada, e você quer utilizar uma única estratégia. Não vai funcionar. A questão é: quais ferramentas nós iremos usar e qual podemos combinar com outras? O que procuramos são sinergias de eficácia que não aumentam a toxicidade no paciente. É um grande desafio da oncologia nesse momento. No futuro, acredito que há 2 ou 3 caminhos. Imunoterapia é uma grande ideia, no entanto não é suficiente. Então, vamos fazer terapias celulares, terapias gênicas, e eu não sei o que vem depois. Elas vão ser combinadas umas com as outras. Para saber como funcionaria melhor, ainda há a questão do sequenciamento e análise do genoma. É quase uma missão impossível analisar e prever sem o uso de inteligência artificial ou machine learning.
O desenvolvimento de uma nova terapia para câncer ocorre como era no passado? O que mudou nos últimos anos?
Zsuzsanna Devecseri – No passado fazíamos ”estudos de cestos”. Colocávamos diferentes tipos de pacientes em cada grupo e testávamos a pesquisa. As que funcionavam, íamos direto ao desenvolvimento. Agora, fazemos muitos mais recortes. Afinal, quando buscamos entender a biologia do câncer, precisamos entender a biologia do paciente, porque o mesmo câncer se mostra diferente entre os pacientes. O câncer é heterogêneo, com uma enorme variedade entre eles. Por isso estamos fazendo mais personalizado, um tratamento mais sob medida ao paciente.
E na parte clínica?
Zsuzsanna Devecseri – Na parte clínica, e eu vi como isso impactou mais e mais no desenvolvimento das drogas também, no primeiro diagnóstico do câncer o médico normalmente precisa de um plano de tratamento, 2 ou 3 linhas de tratamento, porque eles têm múltiplas opções, o que é ótimo. Mas imagina como você traduz isso para um desenvolvimento clínico, quando você precisa cortar se o paciente recebeu uma linha de tratamento anterior. Acredito que toda companhia está tentando fazer um desenvolvimento precoce o mais ético possível, para ter certeza de evitar toda a resistência que está surgindo com base no tratamento anterior. Estamos produzindo tratamento em que a eficácia não tem viés, baseada no tratamento anterior, e que o paciente pode ter um benefício maior porque a doença não é tão progressiva. Fazer isso é muito, muito difícil. É preciso muito conhecimento sobre biologia e sobre os pacientes, usando a tecnologia mais avançada, incluindo biomarcadores, inteligência artificial, machine learning, muitos dados e, claro, todo monitoramento de perto dos pacientes durante isso. Em outras palavras, não há nada semelhante no desenvolvimento clínico de drogas atualmente com o de 5 anos atrás, e definitivamente nada com 10 anos atrás. E se você me perguntar como vamos fazê-lo em cinco anos, se todos lhe dissessem que sabem, estariam mentindo. Tenho certeza absoluta sobre isso.
Como o uso de inteligência artificial tem colaborado nesse processo?
Zsuzsanna Devecseri – Há uma quantidade insana de dados por aí e uma coisa é usar os dados disponíveis para ter certeza que aprendemos mais sobre o benefício ao paciente. Outra coisa é que existem novas tecnologias sendo usadas para olhar para os problemas, analisar tudo. Houve uma pesquisa, por exemplo, que quando colocam inteligência artificial para analisar mamografias, que normalmente é de triagem de mulheres, puderam encontrar muitos tumores iniciais que passariam por análises humanas. O uso de inteligência artificial e tecnologia – e essa é minha função favorita – pode diagnosticar um câncer mais cedo e prevenir doenças mais graves. Poderíamos detectar progressão mais cedo, porque nossos olhos também são máquinas, mas não muito bem desenvolvidas. Se nós tivermos muitas aplicações e estamos aprendendo como podemos fazer, eu vejo que no futuro teremos uma colaboração mais próxima das farmacêuticas e companhias de tecnologias para realmente aumentarmos isso.
Se fala muito sobre o uso de IA em saúde, mas ainda parece algo distante. Nós temos dados suficientes para utilizar?
Zsuzsanna Devecseri – Todas essas tecnologias dependem da boa fonte de dados e na área da saúde ainda não temos dados de pacientes e cuidados bons o suficiente. Se olharmos para hospitais ou até mesmo consultórios de atendimento primário, eles usam softwares diferentes ou papéis. Mesmo em países muito avançados eles continuam usando papéis. Claro que você pode escanear os papéis e passá-los por um processamento de linguagem, mas imagine a quantidade de trabalho. O problema é que há muitos dados perdidos e, especialmente em oncologia, estamos perdendo muitos dados longitudinais. Se você for a um hospital, pode ter uma corte transversal, quantos pacientes eles têm agora de certa doença, mas estamos interessados no acompanhamento do tratamento e como impacta os pacientes.
O que falta para ampliar o uso de fato?
Zsuzsanna Devecseri – A qualidade dos dados é definitivamente o limitador principal. Em seguida, a estrutura dos dados. São tão diversas que os dados precisam ser selecionados e ainda haverão erros neles. E o que eu vejo como maior problema é que não há como inserir prioridades. Eu diria que todas empresas farmacêuticas estão muito interessadas em fazer isso. Mas somos empresas farmacêuticas, desenvolvemos medicamentos, nós não podemos projetar programas para coletar dados de pacientes mundialmente. Se deve ser um problema do governo ou ou do país? Provavelmente sim, mas ainda haveria diferenças entre os diferentes países de como processar isso. Bons dados de pacientes são mais valiosos que diamantes, mas as pessoas continuam coletando anéis mais que fornecendo seus próprios dados. Iríamos muito longe em educação de saúde, que é um dos meus tópicos favoritos, porque eu realmente acredito que muitos pacientes não são diagnosticados porque eles nem sabem como seu corpo funciona normalmente, e por isso eles não conseguem detectar se algo estiver errado. E estou dizendo isso há muito tempo e sou uma grande advogada da educação em saúde, mas como podemos falar prevenção do câncer se as pessoas não estiverem cientes sobre os primeiros sinais e sintomas?
As novas terapias oncológicas estão cada vez mais específicas e consequentemente mais caras. Como resolver a questão do acesso?
Zsuzsanna Devecseri – Há muitas coisas envolvidas, porque você não apenas olha para um paciente e o custo, mas quantos anos adicionais de vida você consegue com o tratamento. Não sou uma expert nisso, mas sei que o valor da cura e o valor de anos adicionais que um paciente pode viver é diferente. Se você pensar em tratamentos se tornando commodities, tecnologias se tornam mais baratas, é um círculo. É uma questão complicada e eu não quero negar que seja, mas não é apenas uma questão das farmacêuticas.
O que podemos esperar nos próximos 5 anos de terapias oncológicas?
Zsuzsanna Devecseri – Eu não tenho ideia, e essa é a minha resposta mais honesta. Porque nós temos menos certezas após a pandemia. A pandemia mudou tudo nas entregas dos sistemas de saúde em 2 anos, mais que nos 10 anos anteriores. Nós estamos aprendendo com isso e seremos mais espertos no futuro, eu espero. Eu espero que não voltemos atrás e façamos como antigamente, indo devagar e fazendo tudo pessoalmente, e sem utilizar o digital. Espero que aprendamos com a pandemia, vamos acelerar tudo, e eu acho cada vez mais que os problemas que estão presentes na oncologia não tem como resolver sozinho. Nenhuma companhia farmacêutica, nenhum país pode resolver. Então, quando eu vejo o grande avanço que aconteceu na saúde, no futuro acredito que mesmo as empresas farmacêuticas trabalharão em parceria com quem faz as leis, governos, outras empresas farmacêuticas, universidades, hospitais e instituições. É uma colaboração clara porque, separados e isolados desta questão sobre o câncer e a cura, não chegaremos ao próximo nível. Parcerias compartilhando conhecimento é o futuro que podemos trazer para a oncologia.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.