Xenotransplantes e órgãos 3D: cientistas buscam alternativas para zerar a fila de transplantes

Xenotransplantes e órgãos 3D: cientistas buscam alternativas para zerar a fila de transplantes

O número de pessoas que aguardam uma doação de órgãos […]

By Published On: 31/08/2022
xenotransplantes e órgãos 3D estão na mira dos cientistas.

O número de pessoas que aguardam uma doação de órgãos sempre foi um ponto sensível na saúde pública. E com a pandemia de Covid-19 houve uma redução expressiva na quantidade de doadores, o que acarretou em um triste recorde: mais de 50 mil pacientes esperando por um transplante no Brasil. Em 2021, mais de 4,2 mil pessoas morreram na fila, esperando por um órgão compatível.

Os números acompanham outro dado alarmante. Cerca de 44% das famílias brasileiras desautorizam a doação de órgãos dos seus entes que tiveram morte encefálica, entre janeiro e junho deste ano, de acordo com o levantamento da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO).

Buscando alternativas, pesquisadores e cientistas estudam duas possibilidades promissoras. Os xenotransplantes, modificando geneticamente órgãos de animais e transplantando para humanos, e os órgãos 3D, bioimpressos com células humanas e que devem simular a anatomia e funções necessárias.

Contudo, é preciso paciência e muito estudo para que de fato essas inovações cheguem aos centros cirúrgicos. Ainda em estágio muito inicial, com raras experiências, essas tecnologias devem demorar cerca de 10 anos para que de fato sejam utilizadas em pacientes que esperam por um órgão. 

Impacto da pandemia e alternativas

“Infelizmente o número de órgãos não é suficiente para todos os pacientes e esse é o terceiro ano consecutivo que temos queda no número de transplantes, uma vez que em 2020 fomos impactados pela pandemia. Seguramente, um dos momentos mais desafiadores da atividade de transplantes no Brasil”, lamenta o médico Gustavo Ferreira, diretor do Programa de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora e presidente da ABTO.

Ele explica que além de ter uma redução no número de doações, houve também uma mobilização das equipes para o atendimento de pacientes com Covid, o que contribuiu para a queda. Até o momento, grande parte dos profissionais de saúde não foi realocada novamente, o que causou uma desestruturação.

A falta de órgãos e o impacto da pandemia não é uma questão exclusiva do Brasil, mas o país sofreu maior impacto. No entanto, mesmo em períodos anteriores, o país não tem material suficiente para zerar a fila. Para reduzi-la de forma expressiva é preciso que as alternativas tecnológicas sejam estudadas e comprovadas.

“Xenotransplante é uma possibilidade real e palpável para os próximos anos. O quanto isso vai impactar na sociedade como um todo é o que a gente não consegue medir. Já entendemos que existe capacidade de ele funcionar, os estudos até agora são de tempos muito curtos, mas o quanto no longo prazo pode funcionar, ainda não temos o tamanho disso”, aponta o presidente da ABTO.

No entanto, Gustavo acredita que mesmo sendo uma alternativa, poucos pacientes poderão se beneficiar, dado a qualidade e compatibilidade dos órgãos provenientes de animais até o momento. De acordo com o diretor do Programa de Transplantes, apenas 6 transplantes foram publicados como estudos científicos, sendo o mais avançado o de um homem de 57 anos, nos Estados Unidos, que recebeu um coração de porco no início de 2022, e veio a falecer dois meses depois. Ele foi o único paciente vivo a realizar um xenotransplante, enquanto os outros foram feitos em cadáveres.

“Outro caminho, mais promissor e mais difundido, são os órgãos 3D impressos com as novas tecnologias, em que vamos ter a capacidade de criar um órgão com células humanas. Eu acredito ser o maior desafio tecnológico para desenvolvimento e com maior capacidade de impactar a nossa necessidade”, conclui o médico.

Xenotransplantes

“Temos tentado várias técnicas, mas a que melhor tem dado resultado são os xenotransplantes. Eles visam a transplantar órgãos de animais em seres humanos. Entre os animais potencialmente doadores sobressaíram os suínos. Eles apresentam uma fisiologia e anatomia bastante semelhantes às nossas”, explica o médico Silvano Raia, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e primeiro cirurgião da América Latina a realizar um transplante de fígado.

No entanto, para que o organismo humano não rejeite o órgão recebido, é preciso que sejam feitas mudanças genéticas antes mesmo da gestação. Para isso, os cientistas realizam processos que impedem o desenvolvimento de alguns genes e inserem novos genes humanos.

Raia encabeça há 5 anos o projeto “Sistematização do Método de Xenotransplante no Brasil”, junto a professora e geneticista da USP Mayana Zatz, que realiza os estudos nessa área e busca encontrar os caminhos para possibilitar esses transplantes em um futuro próximo. A equipe já conseguiu sistematizar a engenharia genética e a clonagem de embriões.

A expectativa é que sejam utilizados diversos órgãos, como coração, rim, pele e córnea. Professores que fazem parte do grupo estão desenvolvendo metodologias para realizar experiências pré-clínicas, avaliando em sistemas isolados a efetividade dos órgãos em sistemas artificiais, antes de realizar o transplante para humanos. O projeto inicial teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e da farmacêutica EMS. 

“Quando tivermos esses órgãos produzidos em nosso laboratório, perfundidos com sangue humano por 48 ou 52 horas e não apresentarem rejeição hiperaguda, o que é muito fácil identificar por biópsia seriada, nós estaremos autorizados a realizar o passo seguinte, que é realizar transplante para seres humanos descerebrados [que tiveram morte encefálica]”, explica o coordenador do projeto. Só após a efetividade desses testes, será realizado procedimentos clínicos, em pacientes que necessitem de órgãos.

Laboratório e perspectivas

Para que sejam realizados os testes iniciais, a equipe necessita de um laboratório com níveis de segurança e esterilidade adequados. No entanto, não existe no Brasil nenhuma estrutura do tipo, o que demanda a construção de um novo espaço para a criação de animais.

O laboratório já está sendo construído no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de São Paulo. A reitoria da USP e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações também estão envolvidos no projeto, liberando recursos para acelerar o projeto, construindo a chamada “pig facility” em um período de até 4 meses, mais rápido que a previsão inicial, de 18 meses. “Esse projeto mostra que o Brasil está preparado para realizar suas pesquisas na fronteira do conhecimento atual. Não existe nada mais adiantado do que isso na medicina”, celebra Raia. 

Entretanto, o coordenador explica que é preciso caminhar passo a passo, para entender e superar os obstáculos que possam surgir durante o desenvolvimento. A expectativa mais realista é que os primeiros testes em pessoas com morte encefálica, e que não possam doar seus órgãos, sejam feitos daqui a 2 anos.

“Durante esse período você pode imaginar que os Estados Unidos realizarão xenotransplantes em humanos, e os resultados serão logo em seguida. Então, nós da comunidade xenotransplantadora vamos nos beneficiar desses casos. Se você analisar a história da cirurgia, verá que o progresso se faz à custa do insucesso de casos anteriores”, analisa o médico.

Caso o projeto se mostre efetivo, Silvano acredita que irá de fato impactar a saúde brasileira, pois é economicamente viável, e a doação de órgãos deverá seguir a lista única, como já é feita hoje. A ideia é que o Sistema Único de Saúde (SUS), ao economizar com a cirurgia e extração de órgãos de pessoas falecidas, destine a verba para a produção e entrega de órgãos suínos geneticamente modificados.

“Nos Estados Unidos, eles acrescentam dois valores. O primeiro é a economia que o Estado faz ao retirar pacientes da hemodiálise, que é um processo muito caro que no Brasil representa a maior alíquota do orçamento do Ministério da Saúde. E eles acrescentam também o valor da restituição do grupo de cidadãos a uma vida produtiva”, conclui.

Órgãos 3D

Outro caminho promissor, que carrega grande expectativa, é o avanço da tecnologia de bioimpressoras 3D. São maquinários com capacidade para produzir elementos com células vivas e que podem vir a ser utilizados na saúde. No Brasil, a 3D Biotechnology Solutions (3DBS) fabrica tanto as bioimpressoras como tecidos, utilizando como “tinta” células vivas doadas ou compradas, e multiplicadas em laboratório, junto a polímeros, um tipo de material semelhante ao plástico, mas bioassimilável pelo organismo.

“No momento, no mercado temos modelos in vitro e que são distribuídos tanto para universidades e pesquisadores, quanto para indústria farmacêutica e cosmética, para substituir cobaias animais. Mas o que visualizamos na história, é que diversas dessas empresas que começaram a trabalhar com esses tecidos se voltaram para medicinas regenerativas e terapias avançadas, que vão entrar em contato com o paciente”, explica Ana Millás, cofundadora e diretora de pesquisa da empresa.

A 3DBS conta com apoio e financiamento de diversas instituições de pesquisa para a produção e estudo de novos materiais, como o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Além disso, faz parte do Hub Mandic, núcleo de inovação e empreendedorismo da Faculdade São Leopoldo Mandic, em Campinas.

O novo passo dado pela empresa busca produzir tecidos vascularizados, que permitam que sejam irrigados e alimentados pela corrente sanguínea, e que podem ser utilizados como pele artificial. Essa é uma etapa importante para almejar a produção de órgãos 3D a longo prazo, que possam de fato impactar a saúde, e é um dos maiores desafios da engenharia tecidual.

Contudo, Pedro Massaguer, cofundador e CEO da 3DBS, explica que é preciso cautela para tratar do assunto. Apesar das pesquisas, ele acredita que deve levar pelo menos 10 anos para que de fato tenhamos algo nesse sentido: “São milhares de pessoas em uma fila de transplante, já recebemos mensagem de pessoas contando relatos de parentes que precisam de órgãos. O fato de um avanço significativo em estágio de bancada não determina a maturidade tecnológica e que isso vai chegar de forma acessível para todos que necessitam, de escalar esse uso da tecnologia”.

Passos graduais

A 3DBS já possui 65 bioimpressoras e equipamentos de eletrofiação distribuídos pelo Brasil e possui negociação com outros países, como Alemanha e Colômbia. O faturamento esperado para 2022 é acima de 1 milhão de reais. Atualmente, trabalha no desenvolvimento de barreiras intestinais e organóides de fígado.

A ideia de começar a trabalhar com a indústria cosmética e farmacêutica, produzindo tecidos que possam substituir os testes em animais, pode acabar favorecendo não só as pesquisas para o desenvolvimento de materiais que sejam utilizados na saúde, mas também avançar a questão regulatória. A cada novo produto ou material utilizado é possível avaliar, junto às agências, quais mudanças e adaptações precisam ocorrer.

“No Brasil, hoje você não pode comercializar produtos com células. Você não tem claro a categoria desse produto. Ele vai ser um medicamento? Um processo? Algo que só poderá ser manipulado pelos hospitais? Você ainda tem que manter o nível de controle sobre a cadeia de valor, e quando isso chegar de forma abrupta aos testes clínicos, vai demandar uma avaliação muito mais detalhada do ponto de vista clínico do que dos dados obtidos em laboratório”, explica Massaguer.

Mesmo que a produção de órgãos 3D ainda pareça algo distante, os fundadores da 3DBS acreditam que os tecidos em desenvolvimento poderão colaborar com outras áreas da medicina. No mundo, já existem diversos produtos aprovados de terapia avançada nesse sentido, como enxerto de pele, regeneração de cartilagem e tecido do coração, mas que ainda não podem ser utilizados em larga escala.

“Muita gente vem prometendo muita coisa que não existe, como coração, rim e fígado. Não existem esses órgãos com a complexidade, função estabelecida e com escala de tamanho que o humano tem, sendo utilizado e nem próximo de ser produzido realmente. O que é possível e feito realmente são pequenos pedaços de tecidos e cada vez com maior complexidade, utilizando células combinadas para chegar mais próximo do nativo”, aponta Ana Millás.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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