Brasil e EUA avaliam distribuição gratuita de medicamentos para obesidade
Brasil e EUA avaliam distribuição gratuita de medicamentos para obesidade
Conitec analisa incorporação de Wegovy no SUS e prefeitura do RJ promete distribuição de Ozempic; governo norte-americano avalia inclusão de medicamentos GLP-1 no Medicare
O cuidado com a obesidade tem atraído o olhar de governos e comunidade científica de todo o mundo. Enquanto um estudo recente publicado no periódico The Lancet propõe uma nova redefinição para a condição, a partir de métricas além do Índice de Massa Corporal (IMC), os Estados Unidos estudam a incorporação de medicamentos para redução de peso conhecidos como análogos do GLP-1. No Brasil, a onda de uso de medicamentos para obesidade também gerou movimentações. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do Sistema Único de Saúde (Conitec) avalia sua incorporação no SUS e municípios como o Rio de Janeiro pretendem oferecer a medicação para sua população.
Medicamentos compostos por exenatida, liraglutida, dulaglutida ou semaglutida são encontradas sob nomes como Saxenda, Wegovy, Ozempic e Byetta. Bastante requisitados para o tratamento da obesidade, eles movimentam um mercado que deve atingir US$125 bilhões até 2033, segundo relatório da GlobalData. Um estudo publicado na JAMA Cardiology estima que cerca de 15 milhões de norte-americanos façam uso da semaglutida hoje.
No Brasil, Ozempic e Wegovy já contam com aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Isso pode mudar nos próximos anos a depender do parecer da Conitec, que analisa solicitação de incorporação do Wegovy, recebida em 16 de dezembro. A comissão deve emitir uma avaliação inicial até o final do primeiro semestre de 2025, quando encerra seu prazo de 180 dias de conclusão de análise, mais 90 dias de prorrogação, segundo legislação vigente.
Essa solicitação não é a primeira que a comissão avalia: antes dela, outros pedidos para incorporação de medicamentos para redução de peso receberam parecer desfavorável. A sibutramina, o orlistate e a liraglutida, por exemplo, são aprovados pela Anvisa, mas não estão inclusos como tratamentos no sistema público de saúde brasileiro. Em 2020, a Conitec recomendou a não incorporação da sibutramina, com a justificativa de apresentar baixa segurança. Segundo esse parecer, os estudos apresentados possuíam baixa qualidade, além do impacto orçamentário de sua incorporação ser elevado.
Dado o histórico de tentativas, atualmente o tratamento da obesidade no SUS é feito apenas com cirurgia bariátrica e orientações sobre alimentação e exercícios físicos. Por isso, o atual processo de análise da semaglutida, com o estudo da introdução do Wegovy, é visto com otimismo pela comunidade científica. Sua incorporação poderia alavancar tratamentos medicamentosos para a doença pelo sistema público de saúde.
“Isso representaria uma mudança enorme de paradigma no tratamento da obesidade”, comenta Livia Lugarinho, médica endocrinologista e membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). “Hoje, temos no SUS medicações disponíveis para condições que muitas vezes decorrem da obesidade, como diabetes, hipertensão, problemas de colesterol, mas não temos para essa doença”.
Na perspectiva de Cyntia Valerio, endocrinologista e diretora da Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO), novos medicamentos são ferramentas importantes para tratar obesidade. Mas o olhar sobre a linha de cuidado do paciente também é essencial: “É como se nós estivéssemos em uma guerra e temos o nosso melhor arsenal, mas eu tenho que saber quem vai segurá-lo, quem vai manejá-lo, porque isso vai fazer toda a diferença”.
De acordo com dados de 2023 do painel de obesidade, do Ministério da Saúde, 24,3% dos brasileiros com mais de 18 anos são obesos — um ganho expressivo comparado a 11,8% registrado em 2006. A expectativa é que esse número cresça ainda mais: um estudo da Fiocruz sugere que 48% de adultos brasileiros terão obesidade até 2044 e 27% terão sobrepeso.
Incorporação de GLP-1 no SUS
Apesar de estar no horizonte de expectativas, a disponibilização de um tratamento medicamentoso para obesidade no sistema público de saúde enfrenta uma série de desafios, sendo o principal o preço. Além disso, o tratamento pode durar anos, devido a característica crônica da doença. A oneração para o SUS também aumenta quando se leva em conta que o tratamento é permitido a partir de 12 anos, o que amplia o contingente de pessoas a entrar no parâmetro.
De acordo com os valores estabelecidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), o preço máximo de uma caneta de Ozempic com a menor dose de 0,25 mg é de R$ 1.034,35, com o preço máximo ao governo sendo de 607,62 por ela. Já a dose mais alta, de 1mg, pode chegar até o consumidor por um valor de R$ 1.367,19, conforme praticado no mês de janeiro de 2025, e custar R$ 806,83 ao governo. O preço do Wegovy varia entre R$ 1.034,35 e R$ 2.634,03 a depender da dose, com um preço máximo ao governo de R$ 607,62 e R$ 1.554,44, respectivamente.
Por isso, há um consenso que critérios de elegibilidade para prescrição serão fundamentais para dimensionar o gasto público com o tratamento em caso de parecer favorável para sua incorporação pela Conitec. “Para que se tenha um parecer favorável, esse grupo vai ter que ser bem definido. Qual definição será usada ainda não sabemos, mas se for abrir para tratamento de obesidade de uma forma ampla a conta não vai fechar, infelizmente”, comenta Lugarinho, da SBEM.
Um ponto positivo que deve ser considerado na equação é a associação da obesidade com outras doenças. Neste sentido, o impacto de um tratamento medicamentoso efetivo representa uma melhora não somente para o quadro de obesidade como pode contribuir no tratamento de outras doenças associadas que pesam no bolso da saúde. “Hoje existem mais de 200 doenças descritas que têm uma relação direta com o excesso de peso, como alguns tipos de câncer, diabetes e doenças cardiovasculares. Temos que pensar que o tratamento da obesidade vai acabar diminuindo a chance de surgimento dessas outras doenças que geram custos também”, afirma a médica endocrinologista.
Evidências começam a demonstrar esse impacto na redução de outras ocorrências de saúde. Um estudo elaborado pela Nova Nordisk, fabricante do Wegovy e do Ozempic, mostrou que o uso das canetas reduziu o risco de eventos cardiovasculares adversos em 20% de adultos com sobrepeso ou obesidade avaliados. Outras pesquisas têm sido realizadas para avaliar benefícios possíveis do uso do medicamento. Uma deles mostra que pacientes com Covid-19 que faziam uso da semaglutida tiveram eventos adversos menos graves durante a pandemia.
“Isso é só a pontinha do iceberg. Cada vez mais existirão moléculas específicas, superpotentes, com potencial de até prevenir a progressão de um diabetes”, comenta a diretora da ABESO. Para ela, é válido ressaltar que o Brasil conta com outras opções de medicamentos já aprovados pela Anvisa para tratamento contra a obesidade. Caso da Tirzepatida, que está aprovado pela Anvisa e pode ser adquirido via importação, algo que deve mudar logo, segundo a diretora.
A espera pelo parecer da Conitec
Os estudos sobre os benefícios da semaglutida para além do tratamento do diabetes e da obesidade representam um desafio adicional para a análise da Conitec. Avaliar o impacto de uma nova tecnologia de saúde em um sistema complexo como o SUS já exige uma análise rigorosa. Quando um medicamento, como a semaglutida, demonstra potencial para tratar outras condições de saúde, o processo de avaliação se torna ainda mais complexo.
É o que explica Ana Etges, pesquisadora do Instituto de Avaliação de Tecnologia em Saúde (IATS): “Novas pesquisas têm saído, resultados científicos recentes e tudo acontecendo em uma velocidade rápida. Além disso, tem o uso das drogas se espalhando muito rapidamente mundo afora. As evidências para sustentar uma avaliação de uma tecnologia que possa ter implicações para outras doenças e o uso exponencial mundo afora desses medicamentos não andam em uma mesma velocidade”, comenta.
No caso de um parecer favorável, outro desafio é o pós-incorporação. Com a popularidade da semiglutida, uma possível incorporação pode ocasionar um boom no seu uso, o que dificulta o processo de monitoramento do acesso dos indivíduos elegíveis para tratamentos. A pesquisadora comenta que os critérios a serem estabelecidos pela Conitec descreverão aqueles pacientes que estarão aptos para se beneficiar da tecnologia ou não. No entanto, sem um monitoramento ativo em um cenário de uso em larga escala, torna-se complexo garantir que apenas os pacientes elegíveis recebam o tratamento.
O monitoramento é uma forma também de olhar para a linha de cuidado dos pacientes, visto que a medicação pode ter efeitos colaterais e sua eficácia pode variar de pessoa para pessoa. Além disso, ele possibilita identificar e registrar as melhoras alcançadas pelos pacientes. “Seria muito bacana que junto ao processo de incorporação a própria proponente trouxesse uma forma de mapear desfechos reportados pelos pacientes, um monitoramento que poderia ser disponibilizado para o país”, comenta Etges.
Uma forma de concretizar essa proposta seria por meio de um monitoramento digital abrangente, que coletasse dados dos pacientes e acompanhasse sua evolução ao longo do tratamento com o medicamento. Essa medida, defendida pela pesquisadora, permitiria ampliar a avaliação do processo de incorporação de tecnologias, abrangendo também os domínios de valor ao longo do tempo.
Distribuição de Ozempic no Rio de Janeiro
Enquanto a discussão sobre incorporação do Wegovy no SUS avança na Conitec, governos municipais têm se mobilizado para incluir o Ozempic em seu sistema de saúde — caso do Rio de Janeiro. A distribuição do medicamento à população foi, inclusive, uma das promessas do atual prefeito Eduardo Paes em seu discurso de posse. Segundo o secretário de saúde do Rio de Janeiro, Daniel Soranz, a obesidade e o diabetes são as principais causas de internações na cidade, gerando um gasto de R$ 130 milhões. Com a utilização do Ozempic, espera-se um aumento na sobrevida dos pacientes, uma medida que já vem sendo estudada há três anos.
“Com a queda da patente prevista para 2026, é possível fazermos a incorporação. Negociamos com quatro grandes empresas, a própria Nova Nordisk, e três empresas que já têm a sua planta, recebem incentivos para essa produção e já estão produzindo para distribuir em janeiro de 2026”, comenta o secretário.
A expectativa inicial é comprar 3 mil doses por mês a partir do próximo ano para utilização na saúde da população do Rio de Janeiro, com o investimento para isso ainda a ser definido. O protocolo terapêutico deve ocorrer a partir do médico de família, verificando a elegibilidade do paciente para uso do medicamento dentro das unidades de saúde e de clínicas de família.
As regras serão formuladas por Grupo de Trabalho que realizará estudos e elaboração das ações necessárias para introdução da semaglutida nas clínicas. Segundo o secretário, pacientes com maior gravidade devem ser priorizados, bem como pessoas que tenham diabetes com condições de maior dificuldade de controle da glicemia. Além do tratamento medicamentoso, as práticas como cirurgia bariátrica e orientação comportamental seguirão à disposição.
De acordo com o secretário, há em andamento uma iniciativa de compra conjunta do medicamento em parceria com outras cidades do país, ainda não divulgadas oficialmente, mas que, segundo antecipou, representam municípios de porte médio a grande. O intuito é ter uma melhor negociação com as fornecedoras. Caso o medicamento seja incorporado ao SUS, a negociação aconteceria com o poder de compra do estado, o que melhoraria ainda mais o processo de compra, relata.
“Essa incorporação vai acontecer. Se não for de maneira institucional, vai acabar acontecendo por medidas judiciais, porque é um medicamento que tem a sua eficácia comprovada, tem muita qualidade, gera muitos benefícios, já é utilizado por todo mundo dos países desenvolvidos. Não faz sentido o sistema de saúde brasileiro também não incorporar. O medicamento não é uma novidade, tanto que ele já está há muito tempo no mercado”, afirma o secretário.
GLP-1 no Medicare
A discussão em prol de um tratamento medicamentoso e disponível para a população não se restringe às fronteiras brasileiras. Nos Estados Unidos, um debate semelhante ocorre em paralelo. Já utilizado no mercado privado, a movimentação atual é pela inclusão de medicações GLP-1 na lista de medicamentos fornecidos pelo Medicare, programa que auxilia pessoas de 65 anos ou mais e pessoas com deficiência e condições de saúde específicas.
A inserção na lista é avaliada pelo Center for Medicare and Medicaid Services (CMS – Centro de Serviços para Medicare e Medicaid, em tradução livre). Assim como na Conitec, o processo considera a eficácia do medicamento em comparação a outros similares, além dos custos envolvidos na pesquisa e desenvolvimento para sua produção.
Entretanto, o impacto da incerteza sobre o resultado dessa análise na inovação da área preocupa especialistas. “É impossível saber exatamente o que vai acontecer. Os inovadores precisam entender como seus medicamentos serão precificados”, defende Darius Lakdawalla, diretor científico do Centro Schaeffer de Política e Economia da Saúde da University of Southern California (USC).
Atualmente, as negociações de valores de medicamentos do Medicare funcionam com a garantia de um preço máximo estabelecido, mas não há um preço mínimo. O CMS é livre para diminuir o valor de medicamentos, o que pode afetar os produtores de medicamentos e refletir em um desincentivo para o investimento em inovações. “Se eles reduzirem o preço de medicamentos muito valiosos e não fizerem isso com medicamentos menos valiosos, isso envia uma mensagem errada para futuros inovadores. Sugere que você se sairá melhor criando medicamentos menos valiosos para os pacientes, porque é assim que será recompensado”, analisa Lakdawalla. Já o estabelecimento de um preço mínimo poderia evitar esse cenário.
A discussão em torno da negociação de preços é movida pela expectativa de benefícios prometidos pelos medicamentos GLP-1 para a população norte-americana. Para Anand Parekh, conselheiro médico do Bipartisan Policy Center, a obesidade é um dos maiores desafios de saúde pública no país por conta da quantidade de pessoas com a doença. Ela vem associada a doenças cardíacas, diabetes e câncer, além de outras doenças crônicas. “Se conseguirmos lidar com a obesidade e gerenciá-la melhor, podemos reduzir doenças crônicas preveníveis que levam a custos de saúde muito elevados”, comenta.
O futuro, no entanto, é incerto na sua perspectiva. As decisões para a área de saúde serão marcadas pela nova administração da pasta, o que ainda não está totalmente definido. Ainda precisa ocorrer a confirmação de Robert Kennedy Jr. para o cargo de coordenador do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (HHS). “Eles precisarão tomar decisões relacionadas a se as seguradoras públicas devem começar a cobrir esses medicamentos e se os preços desses medicamentos podem ser negociados. Então, quão amplo será o acesso a esses medicamentos dependerá de algumas dessas decisões que deverão ser feitas pelo governo nos próximos dois anos”, pondera Parekh.
Além da inclusão de medicamentos GLP-1, outra aposta cotada para o tratamento contra obesidade nos Estados Unidos é a ampliação da terapia comportamental intensiva (IBT, na sigla em inglês). “Precisamos que mais profissionais de saúde, como nutricionistas e outros, possam fornecer terapia comportamental intensiva e precisamos garantir que isso seja reembolsado ou que haja pagamento adequado para isso. Isso é algo que todos deveriam apoiar e sei que há uma pressão para tentar expandir”, diz o conselheiro.
Apesar das possíveis liberações em prol de tratamento, sejam eles medicamentosos ou por terapia comportamental, o especialista alega que mudar apenas a forma como se trata a doença não é suficiente. É necessário, ainda, ter o foco na prevenção, o que está conectado com a escolha por uma alimentação mais saudável.
Nesse contexto, surge a oportunidade de ampliar o debate sobre alimentação a partir da análise do Farm Bill, lei que regulamenta a política agrícola e alimentar dos Estados Unidos e define o apoio ao setor agrícola nos Estados Unidos, além de oferecer incentivos para o cultivo de determinados produtos. Parekh espera que essa discussão que deve ocorrer no Congresso este ano seja guiada por escolhas alimentares mais saudáveis e acessíveis, uma medida que poderia estimular o consumo desses alimentos. “Precisamos educar o público, os profissionais de saúde e médicos para ver a nutrição e atividade física como alternativas. Os medicamentos são importantes, mas não há uma solução mágica para resolver a obesidade”, finaliza.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.