Victor Piana de Andrade, CEO do A.C.Camargo Cancer Center: “Instituições precisam focar no valor entregue ao paciente, não só no negócio”
Victor Piana de Andrade, CEO do A.C.Camargo Cancer Center: “Instituições precisam focar no valor entregue ao paciente, não só no negócio”
No mais recente episódio de Futuro Talks, Andrade falou sobre como gerir uma instituição focada em oncologia, destacando as particularidades da gestão e a importância das parcerias
Ao mesmo tempo em que o envelhecimento populacional é um sinal positivo do avanço da ciência e da sociedade, diversos estudos apontam que essa tendência será um dos maiores desafios no campo da oncologia, com estimativas que sugerem que a incidência de câncer pode dobrar nas próximas décadas. Em um contexto da saúde que já passa por de pressão de custos e discussões sobre sustentabilidade econômico-financeira, gerir uma instituição focada em câncer, portanto, tem se demonstrado especialmente desafiador. Por outro lado, foco, experiência e conhecimento na área podem ser aliados na busca por eficiência e melhores desfechos. Esse foi o panorama do mais recente episódio de Futuro Talks, que recebeu Victor Piana de Andrade, CEO do A.C.Camargo Cancer Center.
Durante a entrevista, ele explicou as particularidades de atuação do A.C.Camargo, uma instituição com mais de 70 anos de história, e explorou diversos desafios de gestão, ainda mais para uma instituição que atende boa parte via Sistema Único de Saúde (SUS). Parte desses desafios passa justamente pelos modelos de remuneração – Andrade comentou a busca por parcerias e o estabelecimento, por exemplo, de modalidades de compartilhamento de risco com farmacêuticas.
Ele também comentou sobre a necessidade de atuar mais na prevenção e afirmou que o A.C.Camargo está capacitando 400 mil agentes comunitários de saúde, em parceria com o Conasems para levar a mentalidade oncológica à atenção primária, promovendo a detecção precoce e a conscientização sobre os riscos. Ainda nesse sentido, ele abordou a importância da gestão de dados e, mais do que isso, de organizar um data lake para que essa informação se torne realmente útil.
Ao longo da entrevista, Andrade levantou o debate também de que as instituições deveriam apresentar indicadores hospitalares – assim, os hospitais poderiam comparar os dados entre si e buscar aprimoramentos, ao invés de apenas relatar dados relacionados aos negócios. Além disso, ele também comentou a possibilidade de o A.C.Camargo ingressar no Proadi.
Confira a entrevista a seguir:
O A.C.Camargo tem mais de 70 anos de história dedicada à oncologia. Qual tem sido o principal norte da instituição ao longo dessas mudanças e como estão posicionados hoje?
Victor Piana de Andrade – De fato, nossa missão é cuidar do paciente com câncer e mitigar sua causa na sociedade. A cada década, adaptamos nossas práticas às dificuldades do momento. Ao longo dos anos, buscamos tratamentos melhores e trouxemos muitas inovações para o Brasil. Hoje, a ciência já nos oferece tratamentos muito eficientes. Agora, nosso grande desafio é garantir a sustentabilidade do setor, pois a incidência do câncer está aumentando, resultado do envelhecimento da população e das mudanças no estilo de vida. Nos próximos 40 anos, esperamos o dobro de casos de câncer na nossa população, com o número de idosos aumentando de 50 para 100 milhões. Essa é uma questão que nossa sociedade, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, não está preparada para enfrentar.
O que falta?
Victor Piana de Andrade – Falta-nos um sistema de saúde robusto, recursos e profissionais suficientes para atender a essa demanda crescente. No entanto, esse aumento só ocorrerá se não agirmos. É importante ressaltar que 40% dos cânceres são evitáveis. A agenda de cuidados paliativos é importante, assim como a necessidade de inovações para diagnósticos mais precisos e acessíveis, tratamentos eficazes e uso racional de medicamentos, garantindo que todos tenham acesso a uma oncologia de qualidade. Eu sei que, à primeira vista, isso pode parecer impossível, mas sou muito otimista, pois estamos entrando em uma década transformadora. Tecnologias digitais estão chegando para revolucionar diversos aspectos, permitindo que profissionais altamente especializados ajudem colegas em regiões sem acesso a especialistas. Isso elevará a qualidade e a eficiência dos tratamentos. A inteligência artificial já está sendo utilizada para analisar imagens de patologia e radiologia, aumentando a eficiência das instituições ao otimizar recursos. Além disso, essa tecnologia pode identificar riscos, permitindo análises de parâmetros que nos ajudam a enxergar desafios que, hoje, não conseguimos perceber.
Você acredita que a revolução virá por meio da tecnologia?
Victor Piana de Andrade – A tecnologia pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal. Ferramentas como o ChatGPT podem gerar eficiência na saúde e economizar recursos, mas também podem ser mal utilizadas. A tecnologia está disponível, e precisamos focar em como ela pode gerar valor. Estou particularmente interessado em aplicar a inteligência artificial para aumentar a segurança do paciente, reduzir o trabalho repetitivo de médicos e enfermeiros, e proporcionar mais tempo e tranquilidade para que eles possam se concentrar no que fazem melhor, além de melhorar a coordenação do cuidado. Ainda que o A.C.Camargo tenha um prontuário único, onde todos os profissionais compartilham informações, existem ineficiências de coordenação que buscamos resolver. Imagine um sistema em que o paciente faz a cirurgia em um local, quimioterapia em outro, radioterapia em outro, e muda de médico conforme sua preferência, deixando informações importantes para trás. Essas ineficiências no sistema podem ser solucionadas com inteligência artificial e outras ferramentas. Estou atualmente focando em identificar áreas que realmente geram valor, pois existem muitas alternativas e nem sempre sabemos quais são as melhores. Prefiro concentrar meus esforços naquelas que, com certeza, beneficiarão o paciente, os profissionais de saúde ou o ecossistema como um todo. A decisão de tratar ou não, assim como a personalização dos tratamentos e a antecipação de efeitos adversos, gera muitas expectativas, embora tudo isso tenha um alto custo. Nos Estados Unidos, onde o sistema de saúde é melhor medido, estima-se que 30% dos recursos investidos não geram valor para o paciente, sendo gastos em procedimentos fúteis, redundantes ou que apenas tratam eventos adversos evitáveis. Imagine um ecossistema que reconhece esses desperdícios antes que aconteçam e busca alternativas mais eficazes.
Isso tem evoluído de uma forma rápida na sua visão?
Victor Piana de Andrade – Acredito que a ferramenta chegou antes de termos uma boa matéria-prima. No A.C.Camargo, estamos trabalhando para melhorar os dados disponíveis. Embora tenhamos prontuários que acompanham o paciente há 10 ou 20 anos, esses dados foram inseridos para um propósito diferente do que buscamos agora. Além disso, a fragmentação dos sistemas é um desafio. Não existe mais um único prontuário eletrônico, mas sim uma coluna vertebral com vários sistemas satélites para diagnóstico e outras finalidades. Precisamos consolidar esses dados em um ambiente limpo que construa uma jornada integrada. Sempre critiquei os prontuários eletrônicos atuais, pois eles apenas registram o histórico do paciente, fazendo com que cada atendimento pareça independente. No caso do câncer e de outras doenças crônicas, cada visita do paciente é uma peça de um quebra-cabeça que precisa se encaixar – imagine um médico que se senta para atender um paciente que já veio 50 vezes neste ano. Como ele consegue obter um resumo do que aconteceu com esse paciente, mesmo com todas as informações no prontuário eletrônico? É uma tarefa difícil, que consome tempo e causa estresse.
Como você acredita que podemos coordenar os atendimentos e criar uma linha do tempo que facilite o acompanhamento do paciente e a comunicação entre os profissionais de saúde?
Victor Piana de Andrade – Cuidar de câncer hoje não é uma pessoa só. Precisa de uma “vila” de gente. Tem patologista, médico nuclear, radiologista, cirurgião, oncologista clínico, radioterapeuta, 30, 40 especialidades entre fisioterapia, nutrição. Cada um coloca informações, e é difícil tanto inserir quanto extrair esses dados. Portanto, acredito que este aspecto merece um investimento significativo da nossa parte para criar informações mais úteis, permitindo decisões rápidas e aumentando a eficiência dos atendimentos, evitando redundâncias e reduzindo riscos. Esse território é, para mim, importantíssimo. Estamos investindo nisso para criar um lago de dados que possamos analisar e compreender. Hoje, olhamos e dizemos: ‘Eu sei que está lá’, como se fosse um granito bruto. Sabemos que a estátua está dentro dele, mas precisamos lapidá-lo para encontrá-la. Às vezes, é uma força-tarefa conseguir obter um dado que nos interessa e não podemos continuar assim. Precisamos montar uma estrutura que consuma e decida de forma muito mais ágil as informações necessárias. Acredito que trabalhar essa matéria-prima dos dados pode ser feito por meio de imputação ou pela criação de uma camada que limpe os dados, permitindo que tomemos decisões. De qualquer forma, teremos que fazer isso. Isso não tem nada a ver com medicamentos, robôs ou equipamentos de radioterapia. Trata-se de gestão.
“Não canso de repetir isso: a ciência já fez muito pela oncologia. Acredito que a gestão é a próxima onda para suavizar o gap entre os pacientes do SUS e os convênios, oferecendo o mínimo correto para todos, no tempo certo, para a pessoa certa e na hora certa. O desafio é enorme, mas, consigo ver o caminho, embora não seja simples.”
Como é a gestão de um hospital totalmente focado nessa área em comparação com hospitais generalistas?
Victor Piana de Andrade – Eu acho que é muito distinto. O A.C. Camargo nasceu com esse olhar multidisciplinar para o paciente oncológico. Fomos fundados para cuidar do paciente oncológico, por cirurgiões, mas rapidamente entenderam que sozinhos não conseguiam fazer o melhor. Evoluímos, ao longo dessas sete décadas, para um modelo onde o paciente pertence à instituição, e não a um médico. Cada um sabe seu papel e sua responsabilidade no cuidado do paciente, mas celebramos o sucesso cinco anos depois, quando todos que trabalharam com o paciente no primeiro, segundo e terceiro anos contribuíram para a sobrevida e a qualidade de vida, permitindo que ele retorne à sua vida produtiva após o tratamento. Sucesso, para nós, é um indivíduo livre de preconceitos e capaz de retornar à sua vida, física e mentalmente.
Como organizar as equipes para que elas se unam e definam o melhor plano de cuidado, permitindo que o paciente transite entre todas as especialidades?
Victor Piana de Andrade – Todos têm o seu papel. Precisamos fazer uma transição suave: a informação de um profissional deve estar disponível para o outro, pois isso tem um impacto direto. É uma coordenação muito fina, como uma orquestra sinfônica, onde todos são muito bons em seus instrumentos, mas, se não combinarem a música que vão tocar e não treinarem todos os dias, vai dar barulho em vez de uma sinfonia. Fazer essa orquestra funcionar requer prática. Cada linha de cuidado, às vezes 500, 1.000 ou até 2.500 pacientes por ano que seguem aquela linha, contribui para a prática e a intimidade com a biologia e a agressividade biológica do tumor, assim como as variações que os pacientes apresentam. E as pessoas, como não têm um turnover alto, são as mesmas há 20, 25 anos, trabalhando na fronteira do conhecimento, estudando e aprendendo todos os dias. Medimos tudo e tentamos melhorar constantemente. Isso desafia as pessoas a pensarem em como fazer melhor a cada dia. Assim, o alto volume, com esse time trabalhando e pensando junto, celebrando o sucesso coletivo, cria uma atmosfera diferente de um hospital geral, onde, muitas vezes, o médico chega para internar seu paciente, trazendo-o do consultório. Ninguém faz nada com o paciente dele sem sua autorização, e isso resulta em um processo um pouco fragmentado na instituição. Outro elemento fundamental é que o câncer é uma doença crônica, mas cuidamos dela de forma eletiva. Em um hospital geral, acho que metade dos pacientes chega pela emergência. Você não sabe o que vem e o que acontecerá no dia. Espera que metade chegue pela emergência e que você esteja pronto para o que der e vier. No A.C.Camargo, não. Sabemos o que está por vir. Tudo que cuidamos no centro cirúrgico e na infusão já sabemos há semanas que vai acontecer, está programado. Portanto, o nível de organização da operação do hospital é muito maior.
Ninguém entra pelo pronto-socorro?
Victor Piana de Andrade – O pronto-socorro está lá para cuidar dos pacientes que se tratam no A.C.Camargo, para atender a complicações ou fragilidades dos pacientes. É claro que o pronto-socorro está aberto para receber casos em que o médico, no consultório, identifica um sintoma muito grave e acredita que o paciente pode ir ao pronto-socorro. Vamos investigar e cuidar do paciente. No entanto, esse uso é muito pequeno hoje. Assim, é uma instituição que tem um grau de programação da sua operação muito maior e uma coordenação de cuidado muito mais eficaz. E é muito menos um hospital. O câncer não é uma doença hospitalar. Eu nem vejo o A.C.Camargo como um hospital. Embora exista um hospital, temos quatro vezes mais pessoas sendo atendidas fora do hospital todos os dias. Se o paciente está em uma consulta, realizando um exame, internado ou na reabilitação, ele faz parte de uma linha de cuidado. Nós enxergamos os pacientes pela linha de cuidado e não pela unidade de atendimento.
Como você acredita que essa abordagem de gestão de um hospital impacta o cuidado e a experiência dos pacientes?
Victor Piana de Andrade – Então, nós temos 13 linhas de cuidado para cada tipo de câncer. Essa é a lógica do paciente, não a lógica financeira da saúde. Se eu fosse falar de negócios, essas linhas de cuidado se transformam nas unidades de negócio. Então, eu tenho 13 unidades de negócio. A gente acompanha cada linha de cuidado pelo volume de paciente atendido, pelo consumo da estrutura. Quer dizer, está ocupando mais centro cirúrgico, mais infusão, mais radioterapia, também pela receita, pelo custo direto, pela margem de contribuição. E desafiamos cada uma das linhas a fazer melhor todo dia. Melhor no desfecho do paciente, melhor na experiência, reduzir o esforço para o paciente conseguir o que ele precisa, mas também na sustentabilidade. Não dá para comparar uma linha com a outra. Não quero que o câncer pediátrico seja melhor do que o câncer de mama. São linhas completamente diferentes. É diferente na idade do paciente que é atendido, na agressividade biológica do tumor, nas comorbidades do paciente. E aí é também diferente no que ele vai precisar para tratar. Uns precisam de cirurgia mais do que outros, o da pele precisam bem menos de quimioterapia, então eles têm estrutura de atendimento, pessoas, recursos muito distintos, e têm receitas muito distintas, resultados financeiros também distintos.
E nunca passou pela estratégia de vocês abrir para outras áreas? Por exemplo, uma frente de doenças raras?
Victor Piana de Andrade – A gente discute esse tema a cada ciclo estratégico, e a resposta sempre foi não. Estar superespecializado em câncer acaba sendo uma forma de fazermos melhor e ter um diferencial, que é o que sabemos fazer. Não estamos em busca de receita para sobreviver; estamos em busca de fazer melhor o que já fazemos. Se eu tiver que escolher como crescer – e já fizemos essa escolha – é levando nosso conhecimento acumulado de 70 anos para muitas pessoas. Não preciso esperar que um paciente chegue no A.C.Camargo para cuidar dele adequadamente. Nossa estratégia atual é que haverá muito câncer no Brasil. Todos estão interessados, o câncer se tornou a prioridade de todos, o que é ótimo, pois precisamos de mais pessoas para tratar tanto o câncer que está ocorrendo quanto para fazê-lo corretamente. E eu acho que podemos contribuir estruturando protocolos, linhas de cuidado, navegação, mensuração de desfechos e até ajudando as instituições a planejarem melhor seus investimentos.
Você acha que as instituições estão conseguindo fazer essa gestão?
Victor Piana de Andrade – As instituições não sabem qual câncer está presente nelas. Se você não sabe qual câncer tem, como vai comprar equipamento? Para quê? Que profissionais você precisa se nem sabe qual câncer tem? Aí fica difícil fazer gestão de oncologia. Portanto, eu não tomo nenhuma decisão sobre o que investir no ano que vem sem saber qual dessas 13 linhas está crescendo mais. Se o câncer de cabeça e pescoço vai crescer, eu já sei o que ele consome. Temos os protocolos escritos, jornadas. Olhamos para tudo isso, para as tendências, o que está chegando no mercado, quais são as novas drogas, e aí planejamos o ano que vem, decidindo em que devo investir, que equipamento vou comprar. Quanto mais linhas de cuidado um novo equipamento atende, mais ele ganha força na decisão de investimento. Se for para uma linha só e essa linha não está crescendo, tomarei uma decisão diferente.
“A epidemiologia e o registro hospitalar de câncer são a base das decisões da gestão que temos, e me espanta um pouco que as pessoas queiram fazer oncologia sem saber o que estão fazendo. Não sabem o tipo de câncer que estão atendendo, nem o estadiamento do câncer, e, assim, vira um jogo de adivinhação.”
Por que muitas instituições querem e estão tentando fazer oncologia, mas não conseguem fazê-la funcionar adequadamente?
Victor Piana de Andrade – É um investimento insano para o tipo de câncer que se tem. Não é a mesma máquina de radioterapia que serve para todos os tipos. Há máquinas mais adequadas para este ou aquele tipo, mas custa 20 milhões uma máquina de radioterapia. Você vai comprar sem saber? Não. Portanto, queremos apoiar as instituições a tomarem decisões melhores, ajudando a criar protocolos e linhas de cuidado, e ajudando todo mundo a atingir um patamar bom para cuidar da massa de tumores comuns, como mama, cólon-retal e pulmão. São tumores que são muito frequentes, e se você organizar direitinho, conseguirá se destacar nisso. O que é mais difícil é que uma instituição consiga atingir uma performance boa, em nível internacional, em sarcomas ou em cânceres pediátricos, como tumores oculares. São muito raros. Não é necessário que todos estejam prontos para fazer o tratamento de doenças raras. Não haverá pessoas, equipamentos ou processos que funcionem adequadamente. Portanto, vemos a oportunidade de ajudar a elevar o padrão da oncologia nacional, transferindo o nosso conhecimento, pois a Fundação Antônio Prudente pertence à sociedade. Nossa existência é para melhorar a oncologia no Brasil. Não se trata de ser um grande player que compete por market share. Essa não é a nossa visão. Enxergamos um papel maior, que é o de cooperação, para exercer a missão original da instituição, que é mitigar o câncer no Brasil e ajudar a sociedade.
Sobre o atendimento ao SUS: em 2022, o A.C.Camargo foi destaque na imprensa por deixar de atender pacientes devido a uma negociação com a Prefeitura relacionada à tabela de pagamentos defasada. Após o acordo, o atendimento foi restabelecido. Como está a situação agora?
Victor Piana de Andrade – Nós nunca paramos de atender o SUS. Essa é a verdade e nunca seguimos por esse caminho. Apenas afirmamos: no modelo atual, está difícil. Essa foi a minha frase. Não podemos continuar como está, mas sempre buscamos uma alternativa. O A.C.Camargo nasceu para cuidar dos pacientes com câncer. Quando foi fundado, praticamente só atendia pacientes que não tinham nenhuma condição. Não existia SUS. Cuidávamos das pessoas sem cobrar, oferecendo gratuidade e coletando doações da sociedade para pagar o tratamento. Chegamos a ter 600 pessoas trabalhando na captação de recursos para financiar o atendimento, pois o volume de pacientes aumentou rapidamente desde a fundação. Contudo, 600 pessoas só conseguiram atender até certo ponto, porque o tratamento era apenas um cirurgião valente com um bisturi na mão. À medida que o tratamento evoluiu, exigindo PET-CT, irradiador, quimioterapia e agora terapia-alvo, ficou claro que não há exército capaz de captar recursos suficientes da sociedade. Nós alcançamos o nosso limite naquele modelo de captar recursos para cuidar de graça em 1997.
E como a decisão da instituição sobre seu futuro afetou sua abordagem e estratégia em relação ao atendimento e à captação de recursos?
Victor Piana de Andrade – O caminho escolhido poderia ter sido vários. Nenhum deles estava errado. Poderíamos continuar tentando captar, ou trazer emenda parlamentar. Escolhemos o caminho da gestão, uma gestão profissionalizada, e fizemos uma transformação de gestão na instituição. Gestão sempre representa fazer decisões difíceis. Começamos a atender os planos de saúde ali, na década de 1990, e isso trouxe alguma receita. Naquela época, só nós estávamos preparados para tratar câncer naquele volume e para todos os públicos dos planos de saúde. Esse volume cresceu muito rápido, e, depois, no início deste século, o número de pacientes usando o setor privado aumentou consideravelmente. A partir de 2004, tínhamos 30 milhões de pacientes. Esse número virou 51 milhões em 2014. Em dez anos, esse crescimento de dois dígitos aconteceu dentro do A.C.Camargo também, e a receita se multiplicou porque sabíamos fazer algo que pouca gente sabia, e fazíamos isso bem feito. As operadoras queriam nos contratar, e crescemos incrivelmente: saímos de 180 leitos para 499 leitos em seis ou sete anos. A instituição se transformou, passando a ter receita para custear ou subsidiar o ensino, a pesquisa e o SUS. Entramos no modelo do CEBAS de 60% de atendimento destinado ao SUS e, à medida que aumentávamos o volume do atendimento privado, era necessário também expandir o SUS para manter essa proporção. O câncer não é uma doença aguda. Ter 60% de atendimentos em um hospital geral com doenças agudas significa que atendi o paciente na emergência, cuidei dele e ele foi para casa. No caso do câncer, a situação é diferente. Fomos aumentando o volume e os pacientes foram se acumulando, chegando a ter 130 mil prontuários abertos, já que esse número é acumulativo. Entram 1.500 pacientes este ano, mas toda a história dos pacientes anteriores continua conosco. Os pacientes de longa data, uma vez no A.C.Camargo, não queriam estar em outro lugar. Eles recebiam um atendimento digno, com bons médicos, boa estrutura e processos adequados. Assim, muitos vinham à nossa emergência para situações não oncológicas. Dois terços do que chegava à nossa emergência não estava relacionado nem com câncer, nem com eventos adversos decorrentes do câncer.
Eles só queriam ser atendidos.
Victor Piana de Andrade – Acabamos nos tornando um sistema de saúde para pacientes oncológicos, o que não é nossa essência. Em determinado momento, o déficit no atendimento ao SUS já superava 100% da imunidade tributária que tínhamos. A instituição aceitaria permanecer nesse modelo se o setor privado gerasse recursos suficientes para sustentar isso. No entanto, em 2014, além de a expansão do sistema de saúde privado ter parado, também ocorreu a abertura de capital da nossa saúde, o que aumentou brutalmente a competição na oncologia. O A.C.Camargo, que antes tinha demanda infinita, passou a enfrentar uma diminuição na ocupação. As operadoras começaram a pressionar as tabelas, as glosas aumentaram e os prazos de pagamento se prolongaram. Fazemos parte desse ecossistema. Não estamos fora dele. Assim, nossa situação financeira começou a ser incapaz de cobrir o aumento do volume de pacientes do SUS. Temos uma decisão a tomar: se continuarmos nesse caminho, a conta não fecha. Sou uma fundação, não uma associação. Enquanto uma associação reúne um grupo de pessoas para fundar um hospital, e os sócios podem cobrir prejuízos, uma fundação não é uma união de pessoas, mas sim de recursos da sociedade para cumprir uma missão.
Quem fiscaliza o A.C.Camargo e como a gestão da fundação garante a responsabilidade pelo uso dos recursos da sociedade?
Victor Piana de Andrade – Se eu der resultado negativo, o Ministério Público quer saber o que estou fazendo de errado com o dinheiro público. Tenho que estar exercendo a missão e preciso ser sustentável. Quando olhamos para esse cenário todo, o contrato da Prefeitura com o A.C.Camargo carregava algumas questões. Esses pacientes são crônicos e estão sendo atendidos por várias causas não oncológicas, e eu não faço a gestão da prevenção nem da fila. Fico passivo, esperando chegar um caso para mim. E chegam casos de estágio avançado. A chance de cura é pequena, o gasto é muito grande e, pouco a pouco, vemos muitos recursos sendo colocados com baixa eficácia para devolver um indivíduo saudável e produtivo à sociedade. Não estamos fazendo o melhor uso do recurso social da Fundação. Muito bem, o que pensamos? Posso ter uma tabela melhor, o que ajuda. Posso trabalhar na prevenção, isso ajuda muito mais. Posso ajudar a gerenciar a fila. Posso fazer muitas coisas. Agora, fazer a mesma coisa que fiz até hoje não é bom para a população, não é bom para a Prefeitura e não é bom para o A.C.Camargo.
Isso mudou?
Victor Piana de Andrade – Não. O que decidimos? Com a Prefeitura, o diálogo sempre foi muito positivo. No entanto, ela enxerga o A.C.Camargo mais como um hospital terciário que faz parte da rede de hospitais de atendimento. É assim que conseguimos dialogar com a Prefeitura. Nossa vontade de fazer mais prevenção e fazer melhor pela sociedade foi concretizada com outros municípios. Foi nesse momento que conversamos com a Prefeitura sobre qual era nosso limite para ajudar como hospital de uma rede. Então, quais são os tumores que vocês não conseguem tratar em outro lugar? Queremos atender todos eles. Nós não queremos deixar um paciente desassistido, e há outros casos que acreditamos que conseguimos atender porque o impacto do déficit deles é menor. Assim, podemos realizar um grande volume desses atendimentos. Ao escolher uma lista de tumores, oferecemos uma ajuda que hoje representa em torno de um quinto do que já fizemos no pico do que atendemos lá atrás. Sentimos que poderíamos fazer mais, mas entendemos que há maneiras mais inteligentes de usar o recurso da Fundação. Esse salário emocional que todo profissional do A.C.Camargo tem ao cuidar do SUS estamos conseguindo proporcionar por meio de prevenção e de outras iniciativas em outros municípios. Ajudamos o município de Santos a reestruturar seu programa e estamos conversando com outros municípios, além de dialogar com o governo federal para encontrar novas formas de expandir nosso conhecimento e ajudar muito mais o país.
E o Proadi? Vocês já tentaram entrar, mas não aconteceu. Ainda faz sentido?
Victor Piana de Andrade – Faz sentido. O Ministério vem discutindo muito sobre o Proadi, e houve uma consulta pública recente sobre uma possível portaria que pode sair este ano. Estamos aguardando ansiosamente por isso. A portaria ainda não foi publicada no Diário Oficial, então não sabemos se será, mas esperamos que sim. Se for publicada, o A.C.Camargo certamente vai tentar entrar.
Essa portaria diz sobre possíveis candidaturas?
Victor Piana de Andrade – O Ministério está redesenhando o Proadi, talvez aprimorando a governança e a forma de encomendar os projetos. Finalmente, o Brasil conta com uma política nacional de prevenção e combate ao câncer.
“Tudo o que o governo federal priorizou no SUS nos orgulha muito. Se olharmos para o cuidado materno-infantil, vacinas, transplantes, HIV, a lista é extensa e sabemos como fazer. Quando focamos, as coisas funcionam. Agora, chegou a hora do câncer. Acho que o governo entendeu isso e colocou como prioridade.”
Temos uma política nacional de prevenção, cuidado e controle do câncer, além de uma política nacional de cuidados paliativos. Essas duas políticas norteiam o trabalho, e embora o A.C.Camargo não tenha ajudado a escrevê-las, certamente assinaria embaixo, pois representam o que acreditamos ser o melhor para o Brasil: foco na atenção primária, prevenção e antecipação, cuidado racional do câncer, descentralização do atendimento oncológico e capacitação de outras regiões para oferecer bons ambientes de tratamento. Não é necessário viajar para receber o tratamento, é fundamental replicar estruturas de qualidade e garantir o cuidado pós-tratamento, reabilitação e dignidade para o paciente voltar ao trabalho.
Como o A.C.Camargo pretende apoiar a implementação da nova política nacional de prevenção e cuidado do câncer?
Victor Piana de Andrade – Se o Proadi abrir novas candidaturas, nós nos candidataremos e queremos, sim, ajudar. No entanto, não podemos contar 100% com isso, porque já ocorreu de nos candidatar e não sermos aprovados. Assim, temos um programa estratégico chamado Missão A.C.Camargo. Essa palavra “missão” tem duplo sentido: é uma missão de irmos até o lugar e também representa a missão original dos nossos fundadores de reduzir o impacto do câncer na nossa sociedade. Por meio desse projeto, queremos ajudar municípios e estados com nosso conhecimento em gestão de oncologia, auxiliando na tomada de decisões sobre investimentos e outras questões. Formar pessoas é essencial. A área de ensino e capacitação precisará de muito mais profissionais especializados em oncologia para enfrentar os desafios futuros, assim como centros de pesquisa clínica. Portanto, há um portfólio de ideias e projetos dentro do programa Missão A.C.Camargo, que visa qualificar a oncologia no Brasil. Sabemos que não podemos fazer isso sozinhos. Se pudermos colaborar com o INCA e outras instituições oncológicas que possuem conhecimento tão bom quanto o nosso, queremos fazê-lo. A palavra de ordem agora é colaboração em prol do Brasil.
Qual a importância de parcerias nesse contexto, considerando que muitas instituições de saúde tendem a agir de forma mais isolada?
Victor Piana de Andrade – Acho que a gente evoluiu, amadureceu nesse pensamento. O ecossistema de saúde está se transformando muito. Tem muitos atores. Ele é complexo. O A.C.Camargo tem muito o que um paciente precisa, mas a gente não é tudo. O câncer não nasce no A.C.Camargo e não termina o cuidado dentro do A.C.Camargo. Há muitas coisas fora do A.C.Camargo que seriam boas para a gente poder complementar o cuidado do paciente e a gente também está muito focado em ajudar a prevenir e antecipar o diagnóstico, coisa que se eu ficar no Cancer Center esperando o paciente chegar, só chega o paciente que já tem o câncer. Então, se é para ajudar de fato, nós temos um novo papel. Esse papel é de derrubar os muros, integrar no ecossistema e usar o nosso conhecimento acumulado para fazer melhor. Fazer o ecossistema inteiro fazer melhor. Não adianta só a gente estar em um patamar e os outros não, então, nós queremos ajudar.
Tem exemplos de parcerias?
Victor Piana de Andrade – No exemplo do Sabará, eu acho que é muito feliz, porque nós temos tudo para cuidar de câncer no mesmo lugar. Câncer infantil é bem complexo, porque você está falando de câncer do cérebro até o pé. Então, é muito variado o tipo de câncer que acontece. Ter todos os profissionais, pessoas, equipamentos, processos para cuidar de todos os tumores não é simples. Acho que só damos conta porque tem tudo para o adulto e aproveita para a criança, só que não temos um pronto-socorro que as crianças cheguem, porque câncer de criança não tem prevenção. A criança está chorando muito, vai no pronto-socorro, descobre que tem uma massa abdominal. Ela está sangrando, vai no pronto-socorro, é uma leucemia. Tem uma convulsão, vai no pronto-socorro, é um glioma. Então, é assim câncer de criança. O Hospital Sabará tem um enorme pronto-socorro, mas não tinha uma estrutura, um programa de oncologia lá dentro. Fazendo junto, ficou melhor para o Sabará, que hoje cuida melhor das crianças com câncer que chegam no pronto-socorro, e ficou melhor para o A.C.Camargo, que encontrou uma maneira de fazer mais crianças serem tratadas pela estrutura que a gente montou para tratar. Tenho certeza de que as famílias ficaram muito mais felizes, as duas equipes se conversam e tentam fazer uma transição fluida toda vez que o paciente precisa ir de uma instituição para outra. Nós não investimos em um equipamento, nem nós, nem eles. Nós fazemos melhor e estamos cuidando de muito mais crianças hoje do que cuidávamos antes. Será que esse tipo de parceria não é um exemplo para várias outras coisas, onde a gente pode investir menos e fazer melhor? Para mim, é um caminho a ser buscado, tanto na assistência e no ensino, a mesma coisa. Eu poderia fazer como muitos e abrir mais uma faculdade.
Vocês pretendem abrir faculdade de medicina?
Victor Piana de Andrade – Fizemos a nossa reflexão: será que um hospital de câncer pode abrir uma faculdade de medicina? Como é que eu vou ensinar obstetrícia? Como é que eu vou ensinar outras coisas que não faço? Refletimos muito sobre esse tema e o nosso caminho foi fundar o conceito da Universidade do Câncer. O paciente oncológico orbita ao redor dele um monte de profissionais: médico, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, etc. Temos no A.C.Camargo 70 especialidades para cuidar de todos os tipos de câncer em todos os momentos. Esses profissionais, desde a graduação, ou uma especialização, um mestrado, um doutorado, ou até a educação para a vida toda, podem contribuir. Então, ao invés de eu ter uma faculdade, será que posso ser a disciplina de oncologia de várias e qualificar o ensino de oncologia do país que está precisando muito? Estamos indo por esse caminho de parceria e de elevar a régua do conhecimento.
Considerando que a parceria é uma estratégia, como ocorre a recepção e negociação com outras instituições?
Victor Piana de Andrade – Tem sido um aprendizado enorme percorrer esse caminho, porque a ideia também é que somos provocados. Não tivemos essa ideia do nada. O A.C.Camargo tem 2 mil alunos espalhados por todo o Brasil, que são oncologistas, têm pequenas clínicas, são donos de hospitais, e eles sabem tratar câncer. Mas está ficando muito difícil gerir suas instituições, porque nunca focaram em gestão, como nós não focamos até 1997. Então, eles vêm pedir ajuda e perguntamos: como posso ajudar? Começamos a estudar e vimos que dá sim para ajudar bastante, tanto no lado de gestão corporativa da clínica quanto no cuidado clínico, complementando o que o paciente dele precisa e que ele ainda não faz. Capacitando profissionais, começamos a ver isso. Daí nasceu a grande ideia de ter uma rede de parceiros pelo Brasil afora. Quem sabe conseguimos criar uma rede, e essa rede se tornaria um grande ambiente de aprendizado e melhoria contínua, tal como vemos na Europa. Fazemos parte de uma organização europeia de instituições oncológicas e é uma inveja enorme ver o nível de contribuição e colaboração que existe lá.
Muito diferente?
Victor Piana de Andrade – É, porque aqui o sistema é todo incentivado pelo volume e cada um está preocupado com a sua receita para sustentar as suas instituições. Então fica parecendo que se eu te ajudar você vai melhorar e aí o paciente fica lá, não vem mais aqui. Fica essa competição pela receita e a gente perde uma oportunidade de aprender, de aprender rápido, porque não vai dar tempo. Para a onda de câncer que está chegando precisa aprender rápido. Quando eu vou na Europa e participo de fóruns, eu volto inspirado, porque lá as instituições são orçamentadas, elas têm um desafio do volume de câncer e do custo crescente, mas elas buscam a sustentabilidade via aprendizado e colaboração. Quer dizer, a ineficiência que alguém eliminou ensina para todo mundo e todo mundo elimina. Na Finlândia há cinco câncer centers, um é muito bom de pulmão, outro é muito bom de sarcoma e eles enviam o paciente de um para o outro para poupar o recurso da sociedade. Quer dizer, um país rico como eles pensa em poupar o recurso e a gente aqui aceita essa ineficiência e fica assim, recurso que vai evaporando da nossa frente. Estados Unidos já mediu: 30% dos recursos que circulam na saúde americana não geram nenhum valor para a sociedade. Redundância, desperdício, futilidades ou tratamentos envolvidos em cuidar de um evento adverso evitável.
“Se a gente puder dar um foco mais em cooperar, em eliminar as ineficiências por meio do aprendizado, acho que fazemos um grande bem para nossa sociedade. Primeiro, precisamos tirar esses incentivos.”
Mas os players são receptivos quando você chega para ter essa conversa?
Victor Piana de Andrade – Sim, acho que todo mundo quer. Eu sinto que, quando chegamos, todo mundo quer, porque a crise está gerando o sentimento de que não vou dar conta sozinho. Acho que todos estão nesse momento, mas, quando você tenta fazer a parceria, o ‘como fazer’ é o mais difícil. Então, é preciso ter muitas conversas para um sucesso, e a gente não desiste porque vê que o caminho da colaboração e da cooperação é muito melhor. Nós cancelamos a construção de uma unidade na Zona Leste porque entendemos que não precisa de mais leitos na sociedade. Se você construir mais leitos, depois ficará tentando ocupar aquela estrutura que você criou, quando o certo é evitar que as pessoas tenham câncer. É prevenir ou, no mínimo, antecipar um diagnóstico. Deveríamos estar colocando muito mais esforço nessa frente, e aí temos que convocar todo mundo para isso. O paciente tem que ficar mais consciente do seu risco individual e do que pode fazer para mitigar o seu câncer. Vamos relembrar: um a cada dois homens vai ter câncer na vida, ao longo da vida toda, e uma a cada três mulheres também.
O que você acha que pode ser feito para mitigar seu risco individual e se tornar o protagonista da sua saúde?
Victor Piana de Andrade – Há muito foco em atenção primária. O A.C.Camargo vai capacitar 400 mil agentes comunitários de saúde, junto com o Conasems. Vamos colocar o pensamento oncológico na cabeça de quem entra na casa das pessoas, fazer a pergunta certa, ajudar a reconhecer sintomas para possibilitar a antecipação diagnóstica ou a prevenção. Isso tem que acontecer. No lado privado, as empresas são as verdadeiras financiadoras do sistema privado de saúde. Esse colaborador da empresa precisa de apoio para que ele possa também trabalhar o seu risco. É bom para ele e para a empresa, mas isso precisa começar, não dá para ficar como está. Assim, decidimos cancelar o investimento porque não queremos entrar no caminho de ter mais estrutura de leitos. Um motivo é que já há leitos demais. Outro motivo é que a oncologia está precisando cada vez menos de leitos. Em 2004, a média de internação de um paciente era de 12 dias. Agora, são 4 dias e meio. Por que isso? Porque agora temos cirurgia minimamente invasiva. A quimioterapia supertóxica foi substituída por imunoterapia e terapia-alvo, que já não causam aqueles eventos adversos que se viam antes. A radioterapia também está muito mais precisa, e a radiologia intervencionista resolve coisas hoje que antes precisávamos levar para o centro cirúrgico. Portanto, são vários temas que, coletivamente, estão consumindo muito menos estrutura hospitalar. Eu sei disso porque não paro de atender. A cada ano, atendo mais pacientes na mesma estrutura, e os 500 leitos do A.C.Camargo eu já nem consigo ocupar mais. Estou operando hoje com 400 leitos, atendendo muito mais pacientes do que antes. O que isso significa? Na minha reforma da UTI, vou reduzir o número de leitos, pois não está precisando mais. Completamos mais de um ano de prostatectomia sem mandar o paciente para a UTI. Ele sai da cirurgia minimamente invasiva, vai para um leito comum e, no dia seguinte, está em casa.
Mas mesmo pensando nesse dobro de pacientes com câncer, você acha que não vai ter esse crescimento, essa necessidade de leito?
Victor Piana de Andrade – Se eu tiver sucesso, vamos qualificar muitas instituições para cuidar dos cânceres mais simples, e os 400 leitos do A.C.Camargo serão destinados aos casos mais complexos, que são difíceis de tratar adequadamente em outros lugares. Assim, vamos cuidar de onco-hematologia, sarcoma, casos pediátricos, tumores oculares e os casos mais graves de câncer de mama e de pulmão. Um câncer de tireoide ou de mama pode ser bem tratado em uma estrutura mais simples do que em um cancer center. Claro que, estando aqui, cuidaremos muito bem, mas podemos ensinar outros a fazerem com a mesma qualidade. Já um sarcoma, por exemplo, é bem mais difícil de tratar fora. Portanto, tornar nosso tratamento mais complexo e receber casos mais graves, enquanto ajudamos a rede a se qualificar para os casos mais comuns, é a coisa certa a fazer.
E novos modelos, como compartilhamento de risco? Divulgamos há algum tempo uma parceria com a Roche. Surgiram outras parcerias com indústrias? Você considera esse modelo uma solução viável para o alto custo dos tratamentos e a necessidade de acesso?
Victor Piana de Andrade – Esse é um caminho de sustentabilidade para a nossa oncologia. Chegaram muitos medicamentos novos nos últimos 10, 20 anos. Eles estão ficando cada vez mais caros. Era comum, no passado, os tratamentos custarem 10, 20 mil dólares por ano. Agora custam 150 mil dólares, 200 mil dólares e, no limite do mais caro, 470 mil dólares. A nossa sociedade claramente não aguenta isso. Então, precisamos ter uma alternativa. Discutir com a indústria farmacêutica, eu acho que é a coisa certa também. Precisamos trazê-los para o jogo. Neste preço, muito pouca gente toma esses medicamentos. Se conseguíssemos preços melhores, mais pacientes poderiam tomá-los, e podemos encontrar maneiras inteligentes de achar soluções. Temos que trabalhar. Primeiro, os tratamentos são caros, mas eles são necessários para câncer avançado. Se fizermos o trabalho de casa de prevenir e antecipar, vamos precisar de menos medicamentos. Cirurgia e radioterapia serão suficientes para curar as pessoas, e esses tratamentos são realizados tanto no SUS quanto no setor privado.
“Para dar equidade de verdade à oncologia, é preciso fazer diagnóstico precoce. Agora, se precisarmos do medicamento, temos conversado com a indústria para que, caso não funcionem, sejam pagos a um preço menor ou que não se pague por eles.”
Como essa discussão pode elevar o patamar, sendo levada ao governo, às empresas e associações, e nos permitir ter uma voz mais forte ao dialogar com a indústria e buscar caminhos para sim?
Victor Piana de Andrade – Se o remédio é muito eficiente, queremos pagá-lo. Porém, não justificamos o pagamento elevado por um remédio que não funcionou ou que tem uma taxa de resposta baixa. Fizemos esse contrato com a Roche. É como passar a primeira marcha do carro: assinar esse primeiro contrato não foi simples, pois surgiram muitas dúvidas sobre como proceder, mas conseguimos. Depois do primeiro, surgiram mais três. Estamos felizes em estar caminhando nesse território de inovação em gestão. Acho que a Roche conseguiu isso porque compreende que, ao tratar um paciente no A.C.Camargo, nós garantimos transparência no protocolo e no modo de cuidar, permitindo que ela audite o prontuário. Ela atinge um nível de confiança em nosso trabalho que, se o paciente não respondeu, é evidente que o remédio não funcionou. O desafio para a Roche é aplicar isso de maneira mais ampla, já que, em outras situações, muitas vezes não há protocolos, jornadas definidas, equipes integradas, e há resistência em compartilhar dados. Essa falta de padronização dificulta a implementação em uma escala maior, mas creio que nosso exemplo está estimulando muitas pessoas a refletirem sobre essa questão. O próximo desafio é o Car-T Cell, e estamos conversando com a indústria para encontrar maneiras de reduzir custos, parcelar os pagamentos e, em caso de insucesso, pagar menos pelo medicamento. Somos apenas uma instituição e não a fonte pagadora. Essa conversa deveria acontecer entre a fonte pagadora e a indústria.
Eles não entram na conversa?
Victor Piana de Andrade – Isso vai acontecer, é uma questão de tempo. A crise está se tornando muito insustentável, e acho que estamos aqui para ajudar. Enquanto não se sentam todos à mesa, vamos fazendo o nosso papel, mas é possível acelerar e fazer melhor e maior se todos se sentarem para conversar. É o que eu acredito.
Você acha que a política nacional de controle do câncer é realmente o plano A para a oncologia?
Victor Piana de Andrade – Temos muitas demandas simultâneas, como o autismo, por exemplo. Contudo, o câncer já deixou claro: hoje, ele é a segunda causa de morte no mundo e também no Brasil. E, como estamos conseguindo resolver a cardiologia, que atualmente é a primeira, o câncer se tornará a principal causa de morte muito em breve, tanto no Brasil quanto no mundo todo. A alta frequência e o elevado custo do câncer estão nos colocando em xeque. Acredito que não dá para deixar de trazer o câncer como prioridade agora. Precisamos agir, e a política está muito bem escrita. Ela também segue uma visão da Organização Mundial da Saúde, apresentando um paralelismo muito bom entre a política brasileira e o Código Latino-Americano de Combate ao Câncer, elaborado pela OMS e pelo IARC, com a participação do Ministério e do INCA.
Essas questões estão convergindo?
Victor Piana de Andrade – Acredito eu que 80% do esforço tem que estar em prevenção, antecipação e organização, gestão dos serviços. Dá para fazer um cuidado paliativo muito melhor e vigilância ativa em muitas situações no SUS. Não precisamos tratar todos os tumores. Tem tumores que são tão indolentes, que eles não vão encurtar a vida do paciente. Podemos economizar esse recurso ou pacientes que são muito frágeis, em que o tratamento só vai reduzir a dignidade humana se ele for praticado. É mais tóxico do que o câncer. Temos que entender esse cenário e evitar colocar recursos onde não há retorno para a sociedade. Precisamos acertar o diagnóstico e os registros de câncer, pois não sabemos exatamente o câncer que temos.
“Temos uma estimativa do que acontece no Brasil, mas os diagnósticos precisam ser bem feitos, corretos, e formar registros de dados para que possamos tomar boas decisões sobre o que devemos fazer e investir. É necessário tirar a política do papel. Eu vejo o ministério muito focado nisso. Se pudermos ajudar, queremos ajudar.”
Caminhando para o fim, quais as pautas que devemos ficar de olho em 2024 e 2025?
Victor Piana de Andrade – A pauta principal é o valor na saúde, ou seja, o benefício gerado sobre o custo para alcançar esse benefício. Falamos muito pouco disso no Brasil. Se você olhar para as maiores instituições de saúde do país, elas reportam o volume de atendimentos e o dinheiro envolvido, mas ninguém menciona se o paciente ficou bem ou qual foi a qualidade do trabalho realizado. ‘Eu fiz 25 mil cirurgias’, mas eu nem sei quantas delas são realmente necessárias, pois não existem indicadores para isso. Nós falamos de saúde em termos de volume, receita e negócio. O setor de saúde trata da saúde como um negócio. Quem é que fala da qualidade? Quem está olhando do ponto de vista do paciente? O que está sendo praticado e se isso está sendo feito da forma certa, com os recursos certos? Porque, afinal, não adianta salvar 100% dos pacientes gastando um bilhão de reais. Eu preciso salvar os pacientes com um valor aceitável. Tem referências no mundo e podemos nos comparar. Minhas taxas de sobrevida estão parecidas? A taxa de incontinência urinária, quando trato câncer de próstata, está similar à do exterior? Estou fazendo certo? E quanto custa tratar câncer de próstata? Quanto custa tratar um câncer de laringe ou de língua? A sobrevida está boa? Essa relação entre o desfecho do paciente e quanto custou para eu entregar esse desfecho, eu não vejo falarmos disso.
Vocês fazem?
Victor Piana de Andrade – Publicamos um monte, fazemos eventos com a operadora, mostramos nosso desfecho e contamos um monte de coisas. Nossa taxa de quimioterapia nos últimos 30 dias de vida é de 1%, em alguns meses até menos. Eu não vejo ninguém falar disso. Eu nem sei dizer se há pessoas melhores do que nós no Brasil. Ninguém publica os desfechos. Acho que já passou da hora de tratarmos a saúde como algo que deve ter o foco no valor agregado para o paciente e para a sociedade. Hoje, está muito voltada para o negócio. Não que isso seja errado, mas não pode esconder a verdadeira função do setor de saúde, que é cuidar das pessoas. Eu gostaria muito que isso se tornasse prioridade na pauta 24 e 25. Estou falando em nome do A.C.Camargo, em nome da nossa sociedade. O câncer é uma causa de todos. Não é minha, não é da minha instituição, do A.C.Camargo. E precisamos acordar para essa pauta: empresas, governo, indivíduos, fontes pagadoras, indústria. Acho que só juntos conseguiremos suavizar essa onda de câncer que está chegando. O limite é a nossa competência. Teremos que fazer muito melhor do que estamos fazendo hoje. A coordenação desses atores tem um potencial enorme. Se não fizermos nada, nossa sociedade não vai aguentar.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.