Vício em jogos: popularização das bets tem criado novo perfil de dependência

Vício em jogos: popularização das bets tem criado novo perfil de dependência

Especialistas alertam para o risco de um aumento na prevalência da doença e da falta de preparo geral para acolher esses pacientes

By Published On: 22/08/2024
Vício em jogos: popularização das bets tem provocado novo perfil de dependentes

Foto: Adobe Stock Image

Quando se fala em adicção ou dependência, é comum pensar no abuso de substâncias como álcool e drogas ilícitas, mas outro perfil de comportamento aditivo vem chamando a atenção: o vício em jogos de azar. O tema não é novo, mas com a popularização das chamadas “bets”, ou casas de apostas online, o fenômeno começa a ganhar contornos que, a depender da maneira como for conduzido, pode desencadear um novo problema de saúde pública a longo prazo.

Basta pensar na evolução disso ao longo do tempo. Há alguns anos, o intervalo entre o apostar e descobrir o resultado era maior. As apostas nas casas lotéricas, no jogo do bicho, não traziam um resultado imediato. Com a era das bets, isso mudou. Tudo acontece em poucos minutos: a aposta, o resultado, a frustração ou euforia, e a possibilidade de uma nova jogada.

“A possibilidade do jogo está na palma da mão, extremamente fácil. São inúmeros jogos no modelo caça-níquel, que é uma das coisas mais aditivas, justamente porque o reforço é imediato. Com as bets você tem um caça-níquel ambulante, porque se não está rolando o jogo de futebol, tem o de vôlei, de basquete, você pode jogar o dia todo”, aponta Elizabeth Carneiro, psicóloga e especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha em dezembro de 2023, com cerca de dois mil brasileiros acima de 16 anos, revelou que 15% já realizaram algum tipo de aposta online. Dentre aqueles que jogaram, os jovens entre 16 e 24 anos são a maior parcela.

Durante a edição desse ano do Brain Congress, maior congresso de neurociência do país, que reuniu neurologistas, psiquiatras e psicólogos do Brasil e do mundo, o tema foi protagonista de inúmeras palestras. O tom foi marcado pela necessidade de ampliar o debate das possíveis consequências do aumento da prevalência do jogo patológico a longo prazo, principalmente em razão da movimentação para regulamentar as apostas online, cassinos e jogo do bicho.

O jogo patológico no cérebro

No cérebro, ao jogar, é ativado o mecanismo dopaminérgico de recompensa, relacionado à sensação de prazer e excitação. Hábitos adaptativos também liberam os neurotransmissores da satisfação, mas o processo não é instantâneo, exige esforço e paciência, a exemplo da prática de exercícios físicos, que aciona o mesmo mecanismo. O processo envolve diversas estruturas, como o hipotálamo, comum a todos os indivíduos. Mas outras estruturas também exercem um papel grande na adicção, como o córtex pré-frontal (responsável pela tomada de decisão planejada), o hipocampo (responsável pela formação de memórias e associação às pistas ambientais) e a amígdala (mecanismo de consciência das emoções).

Antônio Carlos Cruz, psiquiatra e coordenador do programa de residência médica em psiquiatria do Hospital Juliano Moreira (BA), explica: “Quando há um desequilíbrio nessa circuitaria, fica difícil ter a perspectiva de uma pergunta simples e crucial: eu quero fazer isso mais uma vez? E se sim, quantas vezes ainda? Porque o controle inibitório e a tomada de decisão planejada estão prejudicados, o funcionalismo e o circuito de recompensa vão modificar a motivação e o circuito de saliência vai desviar o prazer de atividades como futebol e atribuir ao jogo.”

Segundo ele, com os comportamentos compulsivos, o que ocorre é um “atalho” até a recompensa. Quanto menor o esforço para atingir a sensação de prazer, mais apelo a substância ou o comportamento tem. É por isso que é mais rápido uma pessoa desenvolver dependência química do crack, que tem a ação iniciada em três segundos, do que da cocaína, que leva pelo menos 5 minutos para agir.

Na esfera social, é possível identificar duas grandes narrativas que tornam o ato de jogar mais sedutor. A primeira é a “grande chance”, na qual o jogador de uma realidade socioeconômica mais fragilizada vê na aposta um caminho para mudar de vida através de uma jogada de sorte. A segunda fala sobre “poder e a admiração”, e atrai o jogador pela excitação e pela experiência de glória social ao vencer uma jogada – uma vez que a distorção cognitiva o faz acreditar que o resultado está atrelado à sua expertise, e não ao acaso.

Hermano Tavares, psiquiatra e coordenador do ambulatório integrado dos Transtornos do Impulso (AMITI) do Instituto de psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Ipq-HC-FMUSP), salienta que é preciso educar a população sobre o propósito do jogo: “É preciso ficar claro que o jogo não é uma forma de investimento, não é complemento de renda. Para jogar, você tem que estar pré-disposto a perder aquilo que você ralou para ganhar. O azar não é má sorte, é a aleatoriedade necessariamente embutida na previsão. Não depende dos esforços do jogador, tem sempre um elemento de aleatoriedade que participa em graus variáveis”, salienta.

O transtorno do jogo

O transtorno do jogo passou a integrar a categoria de “transtornos relacionados ao uso de substâncias e transtornos aditivos” somente na última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, na sigla em inglês), publicada em 2013. Das adicções comportamentais, como compulsão alimentar, em sexo e em internet, o jogo patológico é o único reconhecido oficialmente como um diagnóstico pelo volume de evidências científicas que demonstram que os padrões cerebrais envolvidos no processo de jogar compulsivamente são os mesmos encontrados em dependentes de substâncias químicas.

“É fundamental pontuar que o comportamento de uma pessoa com transtorno do jogo não é nada diferente do dependente químico que, conforme a doença se agrava, vai deturpando os próprios valores e passando por cima de questões morais para corresponder ao vício”, destaca Carneiro. Atualmente, ela tem se dedicado a estudar o perfil do jogador patológico brasileiro.

O desenvolvimento da dependência está associado a fatores genéticos, ambientais, sociais e psicológicos. Pessoas que têm parentes de primeiro grau que jogam ou apresentam outras formas de adicção, principalmente abuso de álcool, tendem a ser mais vulneráveis ao desenvolvimento do transtorno do jogo. Traços de personalidade, como impulsividade e dificuldade de regulação emocional; ou a preexistência de outras condições psiquiátricas, como depressão e transtorno bipolar, também são fatores de risco – de acordo com um artigo da Associação Americana de Psiquiatria, 96% dos indivíduos que têm problemas com jogos preenchem critérios para outros transtornos mentais.

Vale destacar que não são todas as pessoas que apostam ou jogam que desenvolvem o transtorno do jogo. Na verdade, a maioria consegue levar a atividade de maneira recreativa, mas aquelas que reúnem multi fatores de risco estão mais expostas a desenvolverem a doença.

Um clique de distância

No Brasil, plataformas e casas de apostas foram proibidas por décadas. Foi apenas em 2018 que a legislação brasileira passou a liberar a atuação de empresas de apostas esportivas no país, embora muitas mantivessem sede em outros territórios, devido a um gap regulatório. De lá para cá, a presença das bets aumentou significativamente. Empresas do nicho estão presentes em eventos esportivos como patrocinadoras, em publicidades veiculadas na TV aberta, em banners na internet, nos conteúdos de influenciadores digitais e muito mais.

E, diferente do tradicional jogo do bicho, por exemplo, que tem um histórico e estética de contravenção, as plataformas de apostas esportivas tem um apelo especial no país do esporte. Logo, não demorou muito para ser encarada como uma atividade familiar, assunto do almoço da firma e competição entre os amigos no estádio de futebol. E atingiu um status de normalização que, de acordo com Carneiro, apresenta um risco significativo a longo prazo.

“O grau de disponibilidade é absurdo. O marketing é muito semelhante com o utilizado pela indústria do tabaco décadas atrás. E a luta contra o tabagismo foi bem sucedida graças a uma política pública de restrições. Quais são as drogas mais consumidas do mundo? As legalizadas, porque isso favorece o acesso e a banalização. A pessoa pensa: ‘se meus pais bebem, se meus amigos bebem, isso é algo natural’. O nosso futuro é tenebroso em relação à legalização dos jogos de aposta.”

Em dezembro de 2023, foi aprovada a lei que regulamenta casas de apostas físicas e virtuais, eventos esportivos reais, jogos online semelhantes aos encontrados em cassinos, como roleta, pôquer e caça-níqueis – como o popular jogo do tigrinho. Agora, o Projeto de Lei 2234/2022, que tramita no Senado, visa autorizar também o funcionamento de bingos, cassinos e jogo do bicho, além de criar regras para os jogos de azar.

Sistema vulnerável

O novo PL traz a exigência de um capital social específico, regras de publicidade e de taxação e a determinação dos que estão proibidos de jogar – como pessoas jurídicas, agentes vinculados aos órgãos de fiscalização ou às empresas dos jogos, e pessoas “excluídas ou suspensas do registro de jogadores e apostadores, em decorrência de autoexclusão ou de decisão judicial”. Esse último grupo diz respeito a pessoas com compulsão por jogos que, voluntariamente, pedirem a inclusão no Registro Nacional de Proibidos (Renapro); ou aquelas que, em decorrência do vício, sejam interditadas judicialmente a pedido de familiares.

O objetivo é mitigar os riscos de adicção, mas não há como saber se a medida surtirá esse efeito, uma vez que a pessoa dependente sofre de distorções cognitivas que atrapalham no próprio reconhecimento da doença, como pontua a especialista da Unifesp: “Quando a pessoa busca tratamento, é porque o quadro já está muito avançado, numa gravidade muito maior.”

É comum que a pessoa sinta que tem o controle sobre a situação, que o episódio de perda foi devido a uma falha de estratégia e não pela natureza do jogo de azar e negue precisar de ajuda. Não é à toa que a maioria dos pacientes com problemas com jogos chega aos consultórios já nas fases moderadas e graves do transtorno, quando a doença já impactou relacionamentos pessoais, carreira e vida financeira.

Tanto a lei aprovada em dezembro quanto o PL que tramita no Senado contam com o adendo de que parte do dinheiro recolhido pelo governo – que varia entre 12% e 17% da arrecadação total dos estabelecimentos – deve ser destinado a áreas como Ministério da Educação, segurança pública, esporte e saúde. O montante reservado para “medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos, nas áreas de saúde” fica entre 1% e 4% da verba advinda dos impostos.

Uma das emendas apresentadas propõe a criação da Campanha Nacional Janeiro Branco, que teria como objetivo a “promoção de medidas de prevenção da primeira aposta, conscientização sobre os malefícios da jogatina e a importância de se evitar os jogos de azar”. Além disso, um dos dispositivos do PL estabelece um sistema de publicidade semelhante ao feito com o tabaco, que determina que avisos sobre os riscos do jogo patológico devem estar presentes nos ambientes de apostas.

Mudança de perfil preocupa

Há ainda uma preocupação com a mudança do perfil do jogador, que está cada vez mais jovem. Embora os sites estabeleçam a idade mínima em 18 anos, é comum que os pais abram contas para os adolescentes e a atividade seja realizada em família, seja em casa ou eventos esportivos. Essa familiaridade com o ato de apostar e o hábito de presenciar membros da família apostando está associada a riscos mais altos de desenvolver problemas com jogos no futuro, como descreve o artigo publicado na “Addictive Behaviors” em 2022, que avaliou a transmissão intergeracional de comportamentos aditivos.

E não para por aí. Quanto mais nova a criança ou adolescente, maior o risco de se aventurar no universo das apostas ao longo da infância e adolescência aumenta, uma vez que córtex pré-frontal, área do cérebro responsável pela tomada de decisão e controle, não está completamente formado nesta fase da vida. Por isso, fica mais difícil avaliar os riscos envolvidos na atividade e controlar impulsos.

Além disso, a facilidade no acesso online a jogos de azar e apostas e a presença de divulgação em diferentes plataformas midiáticas, dificulta a fuga das chamadas pistas ambientais, nome dado para estímulos externos que podem desencadear ou exacerbar o comportamento compulsivo, como sites específicos, influencers e marcas associadas às casas de apostas, eventos esportivos, entre outros. Isso significa que, para uma pessoa que sofre de jogo patológico, o simples ato de navegar na internet ou assistir a uma partida do seu time de futebol pode dificultar a recuperação, como reforça Elizabeth Carneiro:

“Quando o paciente está no início do tratamento, é comum pedir que ele evite lugares associados ao hábito de jogar. Nesse caso, isso é extremamente difícil, porque as propagandas estão nas redes sociais, nos estádios, os círculos sociais estão envolvidos nisso. É uma fase que exige colaboração e cumplicidade por parte da rede de apoio da pessoa adicta.”

Os prejuízos não ficam apenas na esfera pessoal. De acordo com o Conselho Nacional sobre o Problemas de Jogo (NCPG, na sigla em inglês), organização da sociedade civil norte-americana, é estimado que nos Estados Unidos, por exemplo, o custo social anual do jogo patológico seja de US$14 bilhões, incluindo perda de emprego, falência, gastos com saúde relacionados doença e outros.

Preocupação com vício em jogos começa agora

O tratamento do transtorno do jogo, assim como de outras formas de dependência, consiste principalmente na Terapia Cognitiva-Comportamental (TCC), uma abordagem terapêutica que busca modificar o comportamento do paciente a partir da reestruturação de pensamentos considerados inadequados – ou correção das distorções cognitivas. A participação da família também é fundamental para que a pessoa tenha uma rede de apoio na jornada de recuperação.

Há uma discussão sobre a inclusão de psicofármacos como suporte no tratamento, mas ainda não há consenso. Hermano Tavares, coordenador do AMITI, conta que, até o momento, a classe que tem se mostrado mais promissora é a dos antagonistas de opióides, que contempla medicações como naltrexona, usada principalmente no tratamento do alcoolismo.

“O uso de medicamentos nesse momento ainda é uma coisa muito discutida, apesar de estudos já muito consistentes. Não há uma pílula mágica, mas os antagonistas opióides melhoram e muito a eficácia do tratamento, há uma resposta muito satisfatória nesse sentido”, pontua.

Diante desse novo cenário de flexibilização dos jogos de azar online, há a preocupação de que o Sistema Único de Saúde (SUS) não esteja preparado para lidar com uma possível escalada dessa adicção. Atualmente, os transtornos relacionados ao uso de substância e de comportamento aditivo fazem parte do escopo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que conta com 2.836 unidades espalhadas pelo Brasil – um número já deficitário para a necessidade da população brasileira.

Para Tavares, é esperado que a demanda por tratamento para o transtorno do jogo aumente em até quatro vezes nos próximos anos. Por isso, ele ressalta que essa é a hora dos profissionais de saúde mental se habilitarem no manejo da condição. E defende que é preciso um controle rígido sobre o sistema de apostas: “É preciso saber se a pessoa está apostando mais do que aquilo que declara como renda, por exemplo. Porque se estiver, ou é fraude ou é doença, e as duas coisas são nossa responsabilidade enquanto sociedade.”

Isabelle Manzini

Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.

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One Comment

  1. REGINA 23/08/2024 at 19:28 - Reply

    Bem complicado mesmo, infelizmente o meu filho está nessa aos 50 anos. O que fazer, exceto rezar?

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.