Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde: “Há uma necessidade de ajuste e de trazer mais sustentabilidade ao setor”
Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde: “Há uma necessidade de ajuste e de trazer mais sustentabilidade ao setor”
No novo episódio de Futuro Talks, Vera Valente falou do cenário da saúde suplementar, destacando os desafios e as soluções possíveis
Após dois anos de resultados negativos, as operadoras de planos de saúde retomaram o lucro operacional, com foco na melhoria da gestão para aumentar a eficiência. Para 2025, questões como reajustes nos planos de saúde, agrupamento de planos coletivos e novas modalidades contratuais estão em debate. No episódio mais recente do Futuro Talks, Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde, aprofundou a discussão sobre os desafios e perspectivas da saúde suplementar para o próximo ano.
Durante a entrevista, a diretora-executiva comentou sobre a regulação do setor, os desafios de integração com o Sistema Único de Saúde (SUS) e as perspectivas de crescimento do mercado. Para ela, é fundamental que o setor privado seja visto não como um adversário, mas como um parceiro estratégico do SUS.
Ela ressaltou ainda que a saúde suplementar no Brasil enfrenta desafios complexos, exigindo soluções que conciliem regulação, gestão eficiente e a atenção às necessidades dos beneficiários. Para superar essas dificuldades, sugeriu melhorias na base de dados, a implementação de protocolos claros e uma comunicação mais transparente com a sociedade.
Ao longo do episódio, Vera destacou que a falta de prontuários eletrônicos e interoperabilidade dificulta a gestão de custos e tratamentos, prejudicando as decisões das operadoras. Para ela, a pressão por novas tecnologias, muitas vezes mais caras, exige rigorosas avaliações de custo-efetividade. Além disso, a judicialização e o registro rápido de medicamentos, especialmente para doenças raras, intensificam os desafios. Para equilibrar sustentabilidade financeira, acesso e inovação, Valente enfatizou a importância de uma colaboração eficaz entre reguladores, operadoras e a indústria.
Confira a entrevista a seguir:
Após dois anos de resultados negativos, as operadoras de planos de saúde começaram a registrar lucro operacional novamente, e a sinistralidade, embora lentamente, apresenta sinais de melhora. O panorama atual é, de fato, mais positivo? O que contribuiu para essa recuperação?
Vera Valente – Acredito que o cenário está mais positivo, mas sempre devemos ter cautela. Costumo lembrar de uma frase do ex-ministro da educação Paulo Renato Souza, que dizia: “Na educação, você tem que olhar o filme, não a foto”. Com a saúde é a mesma coisa. Quando olhamos a foto, vemos que está melhorando, porque quem paga um plano de saúde quer um serviço duradouro e sustentável para poder usá-lo quando necessário. Isso indica uma recuperação. No entanto, ao olharmos o filme, vemos que houve um acúmulo de 12 bilhões de reais em prejuízos operacionais. Ainda há muito a ser ajustado e melhorado, mas o objetivo tanto do setor quanto da sociedade é garantir que o sistema de saúde seja sustentável e inclua mais pessoas.
Embora estejamos vendo a foto atual e não o filme completo, é possível ter uma expectativa positiva para 2025? Com base nos avanços e melhorias que já observamos, podemos acreditar em um cenário ainda melhor nos próximos anos?
Vera Valente – Essa é a esperança. Tenho cautela ao afirmar que vai melhorar, pois depende de muitos fatores. O que vimos durante a pandemia foi uma situação atípica para o planeta e todos os setores. O setor de saúde experimentou uma queda no uso do sistema durante a pandemia, mas logo em seguida enfrentamos a tempestade perfeita: a retomada de procedimentos represados, enquanto ainda lidávamos com os efeitos da pandemia, como internações prolongadas, especialmente em UTI. Após isso, houve um tempo de acomodação, e hoje começamos a ver as coisas mais próximas da normalidade. O otimismo é possível, mas deve ser temperado com ações concretas. As operadoras da FenaSaúde têm trabalhado fortemente para melhorar a gestão e reduzir custos. Temos liderado o combate às fraudes, um fator que impacta diretamente os custos do setor. Estamos empenhados em otimizar os custos em todas as suas vertentes, buscando maior eficiência.
Como você vê a discussão sobre as novas regras da ANS, incluindo revisão de preços e reajustes de planos de saúde? Acredita que essas mudanças trarão uma organização mais equilibrada para o setor?
Vera Valente – Essa pergunta é difícil de responder porque ainda não temos muitos elementos concretos. O que sabemos até agora são os temas, mas não temos clareza sobre como a agência irá encaminhá-los ou mudá-los. São questões importantes, sem dúvida, e fazem parte da agenda da FenaSaúde há muito tempo, tanto com o regulador quanto com o legislador. Por exemplo, o tema da franquia e coparticipação é debatido globalmente, e o conceito de franquia agregada ainda não evoluiu por aqui. A ANS tentou mexer na coparticipação, o que gerou repercussões no Supremo Tribunal Federal. São temas relevantes, mas precisam ser discutidos com profundidade. O maior receio é que, ao tomar decisões sem um debate adequado, possamos enfrentar consequências graves. E isso não é exagero quando analisamos o panorama do setor.
Essa mudança foi uma surpresa ou já havia uma discussão prévia sobre esses ajustes antes desse movimento da ANS?
Vera Valente – Foi uma surpresa, realmente, um pacote com tantos temas, porque ele inclui duas tomadas públicas de subsídios. Uma delas aborda vários assuntos relevantes, como o agrupamento e a participação em franquia, que são questões complexas e de grande impacto.
E venda online.
Vera Valente – Sim, foi uma surpresa, especialmente com a inclusão de uma segunda tomada pública de subsídios sobre o plano ambulatorial. Esses são temas que já estavam sendo discutidos, com exceção da venda online, e que fazem parte da nossa agenda e consideramos muito importantes. Porém, é preciso ver como eles vão se desenrolar. A revisão técnica, por exemplo, é fundamental, já que temos empresas com carteiras de produtos individuais muito antigas e sinistralidade alta, o que exige ajustes para garantir maior sustentabilidade. São temas relevantes, mas precisamos entender como e qual será o timing da ANS para discuti-los.
Como você vê a discussão sobre o plano ambulatorial e a possibilidade de a saúde suplementar entrar no mercado de cartões de desconto? Acredita que isso pode mudar a dinâmica do setor?
Vera Valente – O tema dos planos ambulatoriais puros é algo que já discutimos com a agência por muitos anos. Quando a legislação foi criada, o legislador tinha uma visão específica, talvez pensando em incluir tratamentos como quimioterapia para câncer. No entanto, ao longo desses 26 anos, o conceito de “terapia” se expandiu para tratamentos muito mais sofisticados e caros. Hoje, os tratamentos oncológicos são muito mais complexos, com tecnologias e terapias de alto custo, o que torna a precificação desses planos um grande desafio. Com a introdução do rol exemplificativo e a velocidade de incorporação de novas tecnologias, os preços podem se desajustar rapidamente, especialmente quando uma tecnologia de milhões de reais é incorporada no meio do ano.
Como as pessoas, na maioria, precisam de consultas e exames no seu dia a dia, como podemos melhorar o acesso a esses serviços de saúde de forma eficiente e sustentável?
Vera Valente – Existe, portanto, um nicho. Todas as operadoras vão ter interesse nisso? Provavelmente não. Muitas operadoras têm um perfil voltado para planos coletivos empresariais, onde, normalmente, o empregador oferece um plano completo. Mas como vimos, existia um grande nicho para isso, os cartões de desconto. Na época, se não me engano, foi em 2022 ou 2023, nós encomendamos um estudo. Chamou nossa atenção o fato de cartões de desconto em consultas, exames e outros serviços estarem se proliferando. Parece algo mais de marketing do que realmente de acesso, e, na verdade, é isso que se configura, porque você vende algo sem oferecer nenhuma garantia. Não existe nenhuma regulação. Se você vender 100 mil cartões de desconto e, no dia seguinte, decidir descontinuá-los, é muito difícil ter consequências. E saúde é algo que precisa de continuidade. Por isso, levamos esse estudo à ANS para mostrar como esses cartões estavam se proliferando e o que era vendido nem sempre estava sendo entregue. Mas aí surge uma grande questão: devemos ter um movimento para uma regulação rigorosa desse tipo de produto, ou devemos possibilitar que empresas bem estruturadas, voltadas para a saúde e comprometidas com o melhor atendimento, possam oferecer algo menos regulado? Esse é o ponto que precisa ser abordado. Virou um mercado interessante para alguns players, mas não necessariamente com compromisso com o atendimento à saúde.
Neste caso específico, as empresas que atuam hoje na saúde e suplementação são realmente empresas voltadas para a saúde, e como encontrar o equilíbrio necessário?
Vera Valente – Também temos a expectativa de que, na discussão com a ANS, se olhe isso de uma forma ampla, pois o excesso de regulação para esse setor é prejudicial. Acho que o maior problema da saúde suplementar é que o legislador tentou abarcar tantas questões que a lei se tornou muito engessada. Normalmente, qual é o espírito da lei? Ela deve ser uma lei guarda-chuva, que forneça as grandes orientações de proteção e regulação, mas que, no infralegal, permita um movimento de adaptação. Mudou muita coisa em 26 anos, e é necessário ajustar a lei para modernizar. Portanto, vemos a importância desse produto, mas com esse olhar: deve haver um equilíbrio. Não pode ser uma “terra de ninguém”, como ocorre hoje, mas também não pode criar algo excessivamente engessado que inviabilize um produto que pode ser interessante.
Vera, considerando que esse processo de decisão está se acelerando, com os estudos apresentados em 2022 e 2023, e agora em 2024 o tema está totalmente na pauta, como você vê a urgência de uma decisão e as possíveis implicações para o setor?
Vera Valente – Imagino que, para a ANS abrir esse leque de temas tão relevantes, ela já tenha amadurecido internamente, discutido e até formado algumas posições. Porém, o regulador, dentro do processo regido pela lei das agências, precisa seguir certas etapas. Essas etapas não se limitam a cumprirem prazos, mas também a garantir que a decisão seja bem fundamentada. A tomada pública de subsídios, por exemplo, gerou um volume de material imenso, com tantos participantes que o sistema da ANS travou na última data de envio, forçando uma prorrogação. Eles terão que processar uma grande quantidade de informações, e, a partir disso, deverão revisar suas propostas, à luz das contribuições recebidas. Depois disso, há a etapa da consulta pública, em que a proposta regulatória será divulgada, e novas contribuições poderão ser feitas.
Ano que vem já?
Vera Valente – Certamente. É importante que haja uma certa velocidade, já que esses temas estão sendo discutidos há muitos anos, mas também é fundamental que se tenha a ponderação de que um excesso de pressa pode prejudicar uma boa discussão e a consideração de todos os elementos. Acredito que a ANS seguirá todo o rito regulatório necessário e espero que tenhamos a oportunidade de contribuir para uma regulação que seja a melhor possível para o setor. Quando falo da melhor regulação, não me refiro apenas ao benefício das operadoras, mas sim àquela que permita, de fato, ampliar o acesso aos beneficiários, garantindo a sustentabilidade das empresas. Afinal, não adianta implementar medidas que acabem inviabilizando o negócio.
Você acredita que é possível pensar em uma integração mais eficaz entre o SUS e a saúde suplementar, garantindo continuidade no cuidado do paciente, especialmente no que diz respeito ao diagnóstico e tratamento?
Vera Valente – A crítica é válida: a questão dos cartões de desconto e dos planos de saúde mais limitados, como os que oferecem apenas consultas e exames, levanta um ponto importante sobre a continuidade do atendimento. Quando você tem milhões de pessoas adquirindo esses cartões, elas acabam sem o plano completo de saúde, o que deixa um vazio no sistema, pois não têm cobertura para tratamentos mais complexos.
“Isso já é uma realidade: muitos consumidores, por não poderem pagar um plano de saúde tradicional, recorrem a alternativas como os cartões de desconto para ter acesso a consultas e exames. Isso indica que há uma demanda crescente por uma saúde privada, mas também revela que o acesso completo ainda é um desafio para muitos. O problema que surge é justamente o que acontece quando essas pessoas são diagnosticadas com condições graves, como o câncer de mama, e não têm o suporte necessário para o tratamento posterior”.
Como você mencionou, há casos em que o diagnóstico é acelerado por meio do pagamento de exames, mas, uma vez diagnosticada a necessidade de um procedimento mais complexo, como uma cirurgia, surgem novas dificuldades, pois o custo do tratamento pode ser proibitivo. Isso é particularmente crítico em um cenário como o do SUS, onde as filas podem comprometer a chance de cura, dependendo do estágio da doença. O diagnóstico precoce é essencial, mas sem o acompanhamento adequado e a rapidez no tratamento, a espera pode ser fatal.
O problema existe: a integração entre o SUS e a saúde suplementar precisa ser feita, ou ela já existe?
Vera Valente – Na verdade, a Constituição, ao criar o Sistema Único de Saúde, já trata da complementariedade da saúde privada. Isso deveria ser muito mais explorado. A pandemia mostrou a importância disso: a relevância das empresas, que cuidam de um quarto da população. Ou seja, o SUS não cuidou de um quarto da população, mas poderíamos ter cuidado de mais, e podemos cuidar de mais do que isso. O quanto as empresas privadas foram parceiras, ajudando com hospitais, foi uma crise sanitária global horrível, mas que demonstrou o quanto essa complementariedade é essencial.
“O que precisamos hoje, além da agenda do Plano Simples, é que o setor público entenda melhor a nossa importância. O setor público precisa perceber que podemos, inclusive, fazer mais pela população, com maior eficiência, tanto em termos de custo quanto de agilidade. Precisamos encarar isso de uma forma menos ideológica e mais positiva, utilizando uma estrutura incrível que formamos”.
A operadora é como uma caixa d’água: ela recebe o recurso e irriga todo o sistema de saúde privado – hospitais, clínicas, laboratórios. De fato, os dados das entidades que representam esses entes indicam que 80% às vezes até 90% do faturamento vem de operadoras. Vejam como esse sistema funciona: é possível irrigá-lo ainda mais, trazendo mais beneficiários. Precisamos falar muito sobre ampliar essa integração e fazer com que o sistema público veja o privado como um parceiro a ser melhor utilizado.
Mas hoje não há essa abertura para o diálogo?
Vera Valente – A percepção é muito assim: “o SUS é o SUS, a estrutura do SUS”. E eu não estou criticando, apenas diagnosticando e analisando. Hoje, temos a discussão sobre a interoperabilidade de dados. A única forma de isso acontecer, com conectividade real, é por meio de uma decisão de Estado. Não será algo que um operador ou um hospital consiga fazer sozinho, porque não funciona dessa maneira. Isso precisa ser uma grande rede, e quem pode estimular isso é o poder público, através de uma decisão do Estado. Imagine a riqueza dessa conexão: hoje, se você é atendida em um hospital e depois viaja para o Ceará, por exemplo, e precisa de atendimento, ninguém sabe quais exames você fez recentemente. Você pode chegar a um hospital público, e seus dados não estarão acessíveis. O mesmo acontece com alguém que tem um plano de saúde top, mas sofre um acidente em São Paulo e vai parar no HC; ninguém terá acesso aos seus dados. Isso não é bom para o cidadão nem para o sistema como um todo. Imagine, por exemplo, se, durante a pandemia, tivéssemos essa integração. A riqueza de saber quem é quem e onde está! Já começou um movimento dentro do SUS, mas é fundamental que o sistema privado seja considerado parte do Sistema Único de Saúde (SUS).
Você acredita que estamos realmente vivenciando um movimento de integração entre a saúde privada e a saúde pública, com um crescente reconhecimento das sinergias possíveis, onde cada setor cumpre seu papel de maneira complementar?
Vera Valente – Não vejo esse movimento. Acredito que o SUS e o Ministério da Saúde enfrentam desafios gigantescos, e o tamanho desse sistema não é simples. Na minha percepção, falta espaço para essa discussão, para trazer a parte privada para a conversa, o que enriqueceria enormemente esse sistema.
Vera, com o cenário de cartões de desconto e a reformulação dos planos ambulatoriais, você acredita que a saúde suplementar pode expandir e alcançar uma fatia maior do mercado, considerando que hoje atende 25% da população?
Vera Valente – Todos gostaríamos que a saúde suplementar crescesse, não só aqueles que trabalham nesse setor, mas também o próprio cidadão, pois, em pesquisas, o plano de saúde é o segundo maior desejo. E, mais uma vez, insisto, para o SUS isso é benéfico, pois ao trazer mais pessoas para a saúde privada, você desafoga o SUS. Como o orçamento do SUS não tem aumentado, muito pelo contrário, sofreu reduções, ao incluir mais pessoas na saúde privada, você melhora o per capita do SUS. Quanto à realidade atual, chegamos a 51,4 milhões de pessoas beneficiadas, o que sempre foi uma flutuação, pois nunca foi mais do que um quarto da população; ou seja, quem pode ter plano de saúde, tem. A maior parte está vinculada aos planos coletivos empresariais, o que está muito relacionado ao crescimento da empregabilidade e aos empregos que oferecem esse benefício. Tenho um filho de 26 anos que, embora esteja empregado, não tem acesso a um plano de saúde onde trabalha. Está cada vez mais difícil, ou seja, hoje em dia, a vaga de trabalho não está necessariamente correlacionada com a inclusão no plano de saúde.
Como você imagina esse cenário, se nada for movimentado e nenhum aumento considerável ocorrer?
Vera Valente – Houve uma recuperação do que já foi no passado, mas, para ter um aumento considerável, é necessário ter iniciativas que tragam o plano ambulatorial. Acreditamos que isso seja um movimento, mas também uma série de outras iniciativas, como a franquia agregada, onde a pessoa tem uma condição financeira para bancar suas consultas, exames, etc., mas sua preocupação é com um agravo mais expressivo, que se torna uma incógnita em termos de custo. Assim, se poderia colocar na prateleira mais produtos, um conjunto de opções que atendam à necessidade da pessoa, levando em conta a sua capacidade de pagamento. Eu adoraria ter um plano super completo, com remoção de helicóptero, mas não posso pagar. Então, o que eu realmente sei que preciso?
Então, a pessoa sabe o básico sobre a entrada no sistema de saúde: eu preciso acompanhar a minha saúde. Quando falamos de prevenção, o que isso realmente significa?
Vera Valente – Fazer exames, consultas e acompanhar a saúde, como no caso de uma pré-diabetes, é fundamental. Isso ajuda a evitar que, quando a pessoa finalmente procure atendimento médico, já esteja com a diabetes em um estado avançado, muitas vezes precisando amputar um membro ou perdendo a visão. Assim, o acompanhamento precoce pode reduzir custos a longo prazo. Porém, uma outra observação sobre o aumento de beneficiários: o setor enfrenta uma situação onde o número de beneficiários aumentou, mas o faturamento diminuiu. Houve uma correlação negativa. Em 2016, tivemos 47 milhões de beneficiários, o maior faturamento do setor. Mas agora, quanto mais aumentam os beneficiários, mais o ganho diminui. Por quê? Porque há downgrade de produtos e um perfil de consumidor diferente.
“Nos últimos 10 anos, observamos a entrada de mais beneficiários com 60+ anos, enquanto o número de beneficiários de 29 a 40 anos caiu. Isso representa uma inversão do pacto intergeracional: quem é mais jovem usa menos e paga mais, enquanto quem é mais velho usa mais e paga proporcionalmente menos. O equilíbrio se perde. Portanto, para um aumento no número de beneficiários, é necessário que esse aumento traga sustentabilidade. Caso contrário, quanto mais você vende, mais você perde”.
Sobre os novos produtos, qual é o grau de liberdade que o mercado tem para criá-los? Há espaço para mais inovações, como planos regionais ou para pequenas empresas, ou isso depende muito da regulação da ANS?
Vera Valente – Eu acredito que o que era possível fazer, as operadoras têm feito. A questão do reembolso, que se tornou uma porta de entrada para fraudes gigantescas, é um produto que atualmente as operadoras estão revendo, optando por vender produtos mais enxutos, sem reembolso ou com menos reembolso. A questão da regionalização também está sendo analisada. Quanto aos produtos realmente diferentes, como o ambulatorial puríssimo, que não inclui nem as primeiras 24 horas de internação, hoje o ambulatorial já cobre internação na emergência, e inclui terapias caríssimas. Se você retirar essas partes que pesam, isso depende da regulação. Quanto ao conceito de franquia, que é amplamente usado fora do Brasil, aqui não pode ser implementado da forma como se imagina. Existem travas na regulação que poderiam ser revistas, minimizadas, dentro do conceito de trazer mais equilíbrio.
Sobre a incorporação de novas tecnologias e tratamentos, sabemos que muitos deles trazem grandes avanços, mas também aumentam os custos para os planos de saúde. Como você enxerga as saídas para garantir a sustentabilidade nesse cenário? A criação de seguros ou acordos de compartilhamento de risco seriam caminhos viáveis ou há outras alternativas que poderiam ser exploradas?
Vera Valente – Esse é um problema global. Todas as sociedades, até mesmo países muito mais ricos que o nosso, estão enfrentando a mesma questão. O que ocorre, e isso tem um pouco a ver com o conceito do SUS – saúde para todos, universal e integral – é que não existe “tudo para todos” em nenhum lugar do mundo, por um único motivo: os recursos são finitos.
“Se os recursos são limitados, seja na saúde ou em qualquer outra área, é necessário fazer escolhas. A questão é: qual é a melhor forma de alocar esses recursos, sejam eles públicos ou privados, para oferecer a melhor saúde possível ao maior número de pessoas? A resposta está em avaliar as tecnologias, o que chamamos de ATS (Avaliação de Tecnologias em Saúde)”.
Isso envolve analisar o custo e a efetividade, ou seja, comparar os benefícios de uma tecnologia com o impacto que ela tem no orçamento. Existem estudos, como os realizados na Inglaterra, que mostram que dois terços das tecnologias que foram incorporadas nos últimos dez anos não conseguiram prorrogar a vida do paciente nem melhorar sua qualidade de vida. Eu costumo ressaltar, especialmente em eventos, que nem sempre o que é mais novo é melhor, mas, em saúde, o que é mais novo, geralmente, é mais caro. Então, precisamos de uma avaliação criteriosa. Porém, no Brasil, há um mecanismo que dificulta essa avaliação, que é a judicialização.
E como você vê o fato de que hoje vivemos uma engrenagem perniciosa, com as drogas se tornando cada vez mais específicas?
Vera Valente – O conceito de “droga rara” e “doenças raras” está relacionado ao fato de que, por serem condições que afetam um número reduzido de pessoas, é difícil conduzir estudos clínicos em fase 3, como acontece para medicamentos de maior abrangência. Como resultado, essas drogas entram no país com estudos clínicos iniciais, muitas vezes com fase 2 incompleta. A Anvisa, seguindo acordos globais, adota um processo de “fast track” para o registro rápido desses medicamentos. No entanto, assim que o registro é concedido, mesmo antes de se definir o preço, a judicialização começa a ocorrer e, às vezes, até antes do registro, como estamos vendo no caso do Elevidys, que nem foi registrado ainda, mas já enfrenta uma judicialização intensa, apesar de seu custo exorbitante de 16 milhões de reais. É fundamental que haja o registro, mas também uma avaliação cuidadosa para determinar se a tecnologia realmente traz benefícios que justifiquem seu alto custo. Vale ressaltar que esse é um assunto tão complexo que, no Brasil, ainda estamos discutindo se essas tecnologias são ou não benéficas e se devemos ou não incorporá-las. Enquanto isso, em outros países, a discussão já mudou: embora reconheçam que a tecnologia pode ser benéfica, eles simplesmente também reconhecem que não conseguem arcar com os custos. Isso ocorre até em países mais ricos do que o Brasil.
Teria que ter uma negociação melhor.
Vera Valente – Isso é essencial. No Brasil, o preço dos medicamentos é definido pela CMED, mas esse preço é determinado como se fosse o valor que você pagaria ao comprar diretamente na farmácia. Porém, o cenário que estamos discutindo não é esse. Estamos falando de venda coletiva, e isso se aplica tanto à saúde privada quanto à pública.
“O que está em jogo não é apenas o custo, mas também o risco. Estamos saindo de um estudo clínico preliminar para expor um produto a uma população de 200 milhões de pessoas. Portanto, o preço do produto deve ser discutido de forma realista. O que a indústria apresenta é, muitas vezes, uma versão otimista – uma “foto de Facebook”, mostrando apenas o lado positivo. A indústria traz a imagem idealizada, mas a questão é que, na prática, não conseguimos pagar por isso. A negociação precisa ser sobre como definir protocolos rigorosos, com um compartilhamento de risco”.
Precisamos ter clareza: após o primeiro ano de uso, o produto terá mostrado os desfechos prometidos? A criança saiu do respirador? Ela conseguiu sentar ou andar? É necessário um compromisso claro sobre os resultados. Além disso, não podemos permitir judicialização para casos em que o estudo clínico ainda está em fases iniciais, como para bebês de até seis meses. Precisamos garantir que, antes de qualquer decisão, haja uma avaliação precisa do impacto real e sustentável desse produto e que ele seja acessível de forma equilibrada para todos.
O acordo entre o STF e o Ministério da Saúde limita a judicialização de tratamentos não avaliados pela Conitec. Você vê sentido em criar uma agência única para avaliar terapias, incluindo as da saúde suplementar? Como isso impactaria o setor?
Vera Valente – Isso é algo que venho defendendo há muitos anos. Se um produto é bom, ele é bom, independentemente de quem será o pagador – o cofre público ou as operadoras de saúde. O primeiro passo é reconhecer a qualidade do produto; o segundo é discutir o preço de entrada. Faz muito mais sentido discutir isso para 200 milhões de pessoas do que para apenas 50 milhões da saúde suplementar. Portanto, essas duas etapas, dentro do contexto do país, são muito mais adequadas. Além disso, hoje temos um time extremamente qualificado na Conitec, analisando uma série de dossiês de medicamentos, tratamentos e tecnologias. Algo similar acontece na ANS. Não faz sentido algum gastar recursos públicos – servidores pagos pelo Estado – em dois lugares diferentes para fazer a mesma coisa. Do ponto de vista administrativo, isso faz todo sentido. Do ponto de vista do investimento em capacitação, também, já que é mais eficaz concentrar o conhecimento em um núcleo com maior qualificação, onde é possível alocar mais pessoas. E, por fim, o poder de negociação para compartilhar riscos e negociar preços será muito mais eficaz, por isso sou 100% a favor.
A criação de uma agência seria muito interessante, porque, teoricamente, até pouco tempo atrás, ela teria mais independência e flexibilidade para contratar e treinar?
Vera Valente – Não sabemos o que acontecerá. Eu costumava defender a ideia de uma agência única, mas agora penso o seguinte: essa questão é tão urgente que não importa se será uma agência, a própria Conitec ou um instituto como o NICE. O essencial é que isso seja centralizado em um único lugar, onde haja mais capacitação, reforço do time e onde o Estado brasileiro possa usar seu poder de negociação para compartilhar riscos e negociar preços, como fazem outros países. Não estamos inventando a roda, mas, infelizmente, não praticamos isso. Quando Paulo Rebello afirma que o Brasil é a “Disneylândia” da indústria farmacêutica, ele tem toda razão, pois em nenhum outro país é tão fácil entrar e colocar um produto no mercado.
Em relação aos custos com medicamentos, já ouvi que as terapias representam menos de 10% do custo das operadoras, sendo que o restante é desperdício ou gestão ineficaz. Esse número faz sentido?
Vera Valente – Nenhum, principalmente pela dificuldade que enfrentamos em obter informações. Se você observar o sistema da ANS, por exemplo, no caso de crianças tratadas com Zolgensma, é provável que os dados disponíveis não reflitam a realidade, pois muitas vezes o tratamento não é registrado especificamente como Zolgensma. Em vez disso, é registrado como um pacote que inclui o Zolgensma, a internação e a aplicação. O mesmo ocorre com oncologia: muitos dados estão dentro do próprio hospital, e um paciente em tratamento oncológico pode estar recebendo tanto infusões quanto medicamentos orais. Portanto, seria necessário um critério muito bem definido, e nós defendemos essa ideia com a ANS. A agência possui uma base de dados muito interessante, mas ela precisa ser aprimorada para ser mais acessível, pois atualmente é difícil para quem está de fora consultar. A captura dessas informações é crucial para termos dados importantes que o Brasil ainda não possui, como o número real de pessoas que utilizam essas tecnologias e a dispersão desses tratamentos. A indústria apresenta estudos com números de potenciais pacientes, mas esses números muitas vezes mudam significativamente depois, principalmente devido à judicialização. É comum ver situações em que médicos, após a família desesperada perguntar “não há mais nada que possamos tentar?”, respondem: “Você tem plano de saúde? Então, podemos tentar este novo medicamento para o câncer do tipo XYZ.”
Mas aí tem os protocolos dentro do plano de saúde?
Vera Valente – Isso é feito à profusão: o médico prescreve. E mais, se a operadora não fornecer, já existe a orientação para judicialização, o que quebra as pernas do sistema. É necessário ter rigor na entrada, na avaliação e um comprometimento do produtor com o desfecho. Essa evolução é importante e, se você começar a ter um sistema…
Precisa de transparência?
Vera Valente – Isso, porque, muitas vezes, esses dados passam pelo hospital. Nossas operadoras da FenaSaúde são operadoras, mas não são verticalizadas; elas têm a maioria dos planos coletivos empresariais, e a pessoa pode ir ao hospital A ou B, sem que tenhamos visibilidade sobre todos esses desfechos. Os desfechos não estão conosco, estão com o médico, estão com o hospital. Hoje, o dado é essencial para tomar boas decisões. Portanto, esses números e percentuais são imprecisos, pois não temos uma base de dados que capture tudo adequadamente.
Após a autorização de consultas ilimitadas para tratamento do autismo, os custos para os planos de saúde aumentaram significativamente, comparando-se aos de tratamentos oncológicos. Como você avalia esse impacto e o desequilíbrio nas carteiras causado por tratamentos mais caros para pacientes jovens?
Vera Valente – Na verdade, essa questão vem do uso político, como a lei do Romário, que gerou uma pressão enorme no Ministério da Saúde e levou à criação de um rol de procedimentos mais rápido do mundo. Eu sou totalmente contra isso. Essa velocidade acaba prejudicando o nosso país e resultou em uma série de ajustes para tentar controlar algumas coisas. A criação da lei do Romário e o rol exemplificativo, que não existe em lugar nenhum do mundo, são exemplos disso.
“Não se pode ter uma lista ilimitada, como muitos pensam: ao pagar o plano, o cidadão acredita ter direito a tudo, mas isso precisa mudar. Isso não ocorre em nenhum lugar. Qual é o limite? Por que não pode ser ilimitado? O limite está na sua capacidade de pagamento, não na operadora. A operadora administra os recursos de empresas e pessoas, e tem um limite de reajuste”.
Se você incluir tudo, o que vai acontecer? O reajuste precisará recompor esse custo, caso contrário, o tanque de recursos vai esvaziar, e alguém que realmente precise não terá mais acesso. Essa é a lógica. E dentro dessa lógica de “tudo para todos”, houve uma grande pressão na época da lei do Romário, com a ideia de que os pacientes com doenças raras não estavam sendo adequadamente assistidos, o que levou à ilimitação.
Como isso se desenvolveu, no caso das terapias ilimitadas?
Vera Valente – Então, a ANS se viu pressionada e determinou a inclusão de sessões de terapias ilimitadas, mas não existe nada ilimitado, nem mesmo nossa própria capacidade de realizar terapias. Ninguém consegue ter uma agenda de terapias ilimitadas. Temos situações de crianças com 40, 50 horas de terapia semanal, algo inimaginável, pois nenhum adulto conseguiria ter uma rotina tão extenuante. O conceito de “ilimitado” abre espaço para abusos e fraudes, algo que já observamos, inclusive com clínicas de TEA (Transtorno do Espectro Autista) pagando o plano de saúde para as crianças. Esse abuso é evidente, e, como sociedade – e isso inclui a ANS e as operadoras -, não podemos permitir que uma família, já fragilizada por um diagnóstico, seja explorada por profissionais que dizem: “Agora você tem plano de saúde, é ilimitado”. Essas famílias estão sendo usadas em sua fragilidade, e alguns indivíduos se aproveitam disso por interesse próprio. A ANS precisa olhar para essa questão. Se não quiser colocar limitação de horas, então deve estabelecer protocolos claros. Qual é o protocolo? O plano de saúde deve cobrir tratamentos de saúde realizados em ambientes adequados. O custo não é apenas da operadora, mas de todos os que contribuem para esse pool, todos que estão na carteira de clientes. Portanto, essa carteira não suporta aumentos para terapias ilimitadas. Tratamentos como equinoterapia e musicoterapia são terapias de saúde, com comprovação científica e devem ser realizados dentro de diretrizes preestabelecidas. É isso que defendemos, não apenas por questões de custo, mas também por questões de saúde, para garantir que os tratamentos atendam às reais necessidades das crianças.
E isso está em discussão agora?
Vera Valente – Está em discussão, e acredito que este é um tema que a ANS deveria dar enorme prioridade.
Como você vê o papel dos planos de saúde e da FenaSaúde diante de casos como o da senhora de 90 anos, que enfrentou rescisão unilateral após décadas de pagamento? Existe uma autocrítica suficiente no setor para melhorar a percepção pública, considerando que muitas vezes a sociedade tem razão nas suas demandas?
Vera Valente – Existem operadoras e operadoras, e condutas e condutas. Esse caso específico não envolve uma operadora da FenaSaúde, mas é óbvio que, quando algo contamina a imagem, acaba prejudicando o setor como um todo, especialmente pela dificuldade de compreensão de como ele funciona. Estou falando, as mães brigam pelas crianças com TEA, mas não tratamos apenas TEA; tratamos também oncologia, AME, pessoas com hipertensão, diabetes, e, por isso, o dinheiro precisa ser suficiente para tratar tudo. Naturalmente, cada pessoa olha para seu caso específico, para seu nicho, e isso é humano. No entanto, a sociedade, o regulador, o legislador e o judiciário precisam considerar o impacto para a coletividade. O que aconteceu em determinadas situações é que, provavelmente – e não me lembro especificamente do caso dessa senhora -, ela estava em uma carteira que estava completamente defasada, deficitária, o que levou à consequência do cancelamento. Isso é muito ruim. A regulação atual permite esse cancelamento unilateral de determinados tipos de plano, mas não no caso dos planos individuais. Hoje, temos carteiras de planos individuais que estão extremamente defasadas, em termos de sinistralidade, exigindo uma recomposição.
É importante analisar o impacto de determinadas decisões e reverter algumas delas? Muitas operadoras estão sensíveis a essa questão?
Vera Valente – No processo de cancelamento unilateral, fiquei numa situação confortável, pois as operadoras da FenaSaúde não adotaram essa prática. Em alguns casos, onde o cancelamento ocorreu, houve a reversão para garantir o tratamento, especialmente para aqueles que estavam em terapias. Porém, essa é uma situação difícil de se analisar. Concordo que, no caso individual, é revoltante, mas como resolver isso enquanto sociedade? É necessário um olhar mais criterioso, porque, de um lado, temos a sociedade pressionando por um rol exemplificativo, terapias ilimitadas, “tudo para todos”, enquanto, de outro, as pessoas argumentam que não podem pagar, que os reajustes são insustentáveis. Por exemplo, se uma pessoa está em uma carteira que terá que aplicar um reajuste de 100%, ninguém conseguiria arcar com isso. Mas essa carteira foi impactada por todas essas decisões. Além disso, há casos de pessoas que entram no plano visando tratamentos específicos, como a bariátrica, ou que entram pelo hospital para realizar cirurgias específicas, o que é outro tipo de conduta que enfrentamos no dia a dia. Portanto, a conscientização e a mudança de conceito são complexas e difíceis.
Você acredita que a falta de transparência sobre os custos dos tratamentos e reajustes nos planos de saúde contribui para a crise de imagem do setor? E, na sua opinião, estamos avançando na direção de maior clareza e transparência, como discutido pela ANS?
Vera Valente – A transparência tem sido cada vez mais requisitada pela sociedade, para que se possa entender melhor a dinâmica do setor. Vamos analisar grandes números: o custo assistencial médio por beneficiário na saúde suplementar, se não me engano, é de cerca de 4,6 mil reais por ano. Agora, se pegarmos um diagnóstico como o de Zolgensma, que é emblemático, e que custa em torno de 7,6 milhões de reais na saúde suplementar, esse valor seria equivalente ao custo de tratamento de 1.600 beneficiários por ano. Isso mostra como estamos lidando com um impacto financeiro significativo, e as coisas estão interconectadas. Quando, às vezes, falamos com parlamentares, eles alegam que os planos aumentaram muito, mas isso está diretamente relacionado à defesa de medidas como o rol exemplificativo e terapias ilimitadas. Quando isso acontece, os reajustes são inevitáveis, e, se forem cancelados, as operadoras podem quebrar. Por isso, a transparência também envolve a coleta de mais dados.
“Uma questão crucial para o setor, como mencionei, é a criação de prontuários eletrônicos e a interoperabilidade, pois só podemos fazer uma boa gestão quando temos acesso à informação. Quando você não é uma operadora verticalizada, essa informação não está diretamente com você, ela está nos prestadores, nos médicos, e aí surgem enormes dificuldades em acessar esses dados”.
Durante a CPI da Alerj, em que participei, perguntaram se as operadoras estavam selecionando quem seria cancelado. Minha resposta foi que a operadora não tem essa informação de forma clara. Ela pode observar que o perfil da carteira cresceu muito, o uso de terapias aumentou, e até inferir que alguns pacientes podem ser de TEA, mas a operadora não tem acesso direto aos exames ou diagnósticos.
Por que, apesar de a prevenção ser estratégica para a sustentabilidade dos planos de saúde, o investimento nessa área ainda é tão baixo, com dados da ANS apontando que os planos investem apenas 0,3% dos seus esforços em prevenção?
Vera Valente – Isso é estratégico para qualquer setor de saúde, especialmente quando se discute as dificuldades das pessoas no SUS para acessar consultas e exames. Você só pode falar de prevenção se houver uma porta de entrada no sistema de saúde; não é possível falar de prevenção sem acesso básico. Existem diferentes modelos para isso. Por exemplo, nas empresas que oferecem planos coletivos empresariais, muitas vezes, a própria empresa contratante tem iniciativas de políticas de prevenção, seja em parceria com cooperadoras ou administradoras de planos de saúde, ou ainda com corretoras. No coletivo empresarial, esse tipo de ação é comum, porque o contratante tem grande interesse em manter seus colaboradores saudáveis, para evitar o aumento da sinistralidade, já que a revisão do contrato e os reajustes estão diretamente ligados a esse fator. Então, essa iniciativa dos contratantes existe, mas não necessariamente é capturada no modelo mais amplo.
Há outros pontos a considerar?
Vera Valente – Outro ponto importante é que, hoje, em determinados perfis de carteiras, há uma rotatividade muito alta. Isso também deve ser considerado ao analisarmos o negócio de forma séria. Você tem uma carteira e faz um investimento em ações de prevenção; no entanto, daqui a um ano, essa pessoa já não está mais com você. Então, para colher os frutos dessas ações, elas precisam ser de longo prazo. A rotatividade de algumas carteiras impede ou desincentiva esse tipo de ação, mas, ainda assim, ela é essencial. E mais uma coisa: quando falamos de ecossistema, é comum ouvir sobre o “ecossistema da saúde”, que envolve diversos atores, como operadora, hospital, médico e prestador. Quando discutimos redução de custos, desperdício e fraudes, há muitos envolvidos. Mas se considerarmos a pessoa, a prevenção também passa por ela, com o engajamento no controle da obesidade, tabagismo, entre outros fatores. Esse avanço é essencial. A ANS, com o Promoprev, está incentivando essa mudança, e talvez, ao ajustar algumas formas de organização do sistema, retirando certas válvulas de escape, seja possível ter um maior incentivo a esse processo.
Você acredita que há espaço para um diálogo mais amplo entre os diversos stakeholders do ecossistema de saúde, como hospitais, indústria farmacêutica, laboratórios e outros, para tentar organizar e estruturar o sistema de forma mais harmônica, ou ainda prevalece a defesa de interesses isolados de cada setor?
Vera Valente – Primeiro, mais do que nunca, é necessário esse alinhamento, mas acredito que a possibilidade de um alinhamento real depende de uma agenda comum, o que chamo de cadeia de prestação de serviços da saúde privada. O que é essa cadeia de prestação de serviços? Ela envolve a operadora que recebe os recursos, além das clínicas, laboratórios e hospitais. Estamos todos na mesma balança de interesses. Se eu perco o beneficiário, diminuo a entrada de recursos, porque o dado é que quase 90% do faturamento vem das operadoras. Imagine que uma pessoa física não tem condições de pagar a conta de um hospital, internação ou cirurgia; a entrada para o sistema público ou privado se dá por meio da operadora. Isso está estabelecido, ninguém tem recursos para uma grande cirurgia ou internação em UTI, a menos que seja multimilionário. Durante a pandemia de Covid, tivemos casos de pessoas que ficaram mais de um mês na UTI. Isso é um custo altíssimo para qualquer indivíduo, por isso, precisamos desse fluxo via operadora. Acredito que essa cadeia precisa se unir mais do que nunca. Não dá para seguir com esse pensamento.
Mas o que fazer?
Vera Valente – Nós precisamos começar a olhar isso seriamente. Quando falamos de desperdício, fraudes e mudança no modelo de remuneração – questões que já são debatidas há muito tempo, mas que se tornam cada vez mais urgentes -, é essencial compreender que esse fluxo de entrada de produtos caros, que gera tratamentos caros e, por consequência, contas altíssimas, acaba sendo repassado ao contratante, seja pessoa física ou jurídica, por meio de reajustes. Isso está chegando ao limite. É necessário discutir essa cadeia, e eu sou totalmente aberta a isso. Acredito que podemos ganhar muita força junto ao regulador e ao legislador, mostrando a importância e a força desse setor. Não acredito, porém, em uma agenda compartilhada entre nós e a indústria farmacêutica, com a premissa de que estamos produzindo para a saúde. Por que não acredito nisso? Tenho uma origem na indústria farmacêutica: fui responsável pela implantação dos genéricos na Anvisa, fui presidente da ProGenéricos, passei pela Interfarma e participei de reuniões de pesquisa da indústria farmacêutica. O motivo pelo qual não acredito é simples: o que temos no Brasil atualmente não incentiva as indústrias a fazerem algo diferente do que já fazem. Basta registrar o produto rapidamente, obter o preço da CMED (geralmente, um preço bastante alto) e não há uma negociação real sobre esse preço, pois são utilizados comparadores internacionais.
O que precisaria mudar?
Vera Valente – Não há uma negociação real que considere o tamanho do país, a renda média da população ou a dificuldade orçamentária nacional. Nesse contexto, surge outra questão trazida pela lei que alterou o rol taxativo para exemplificativo: ao incorporar algo na Conitec, cria-se um trampolim para que entre automaticamente na saúde suplementar. Como assim? São ambientes diferentes, com impactos orçamentários distintos. Veja o caso do Zolgensma: na Conitec, foi apresentado com um acordo de compartilhamento de risco e um preço de 5 milhões e pouco. Na saúde suplementar, veio sem compartilhamento de risco e com um preço 2 milhões maior. São condições completamente diferentes. O que aconteceu? O acordo de compartilhamento de risco nunca foi assinado. No SUS, as crianças estão obtendo o produto via judicial, e o Ministério da Saúde está fornecendo dessa forma. Enquanto isso, a indústria usou o “trampolim” da Conitec para entrar na saúde suplementar em 60 dias, sem qualquer debate. E pior: a um preço maior do que o praticado em outros países, onde há negociações, ainda que secretas, entre os governos e a indústria farmacêutica.
Mas o que acontece na prática?
Vera Valente – Então, se lá o preço é secreto, aqui não é. Sem dúvida, estamos pagando muito mais caro. Entramos com um preço cheio para uma população de 200 milhões de pessoas. Na saúde suplementar, o mercado equivale ao tamanho da Espanha. Por que a indústria negociaria comigo? Afinal, sou obrigada a pagar. Quando algo entra no rol, sou obrigada a cobrir o produto dentro de uma DUT, a preço cheio. E, fora da DUT, há um incentivo à judicialização. O juiz concede porque, em casos de acesso a tratamentos, 90% das decisões são favoráveis, muitas vezes por liminar de última hora, no final de semana. Você realmente acha que a indústria tem interesse em negociar comigo? Por que ela ofereceria desconto? Sou obrigada a pagar pelo tratamento, ao preço que ela definiu. Não acredito nisso, porque nunca houve um movimento real nesse sentido. Agora, nós, que estamos aqui juntos, precisamos com urgência discutir soluções para tornar o sistema mais sustentável, ajustando aqui e ali, para trazer mais pessoas para o debate e construir algo mais viável.
Quais são as principais pautas que devemos prestar atenção em 2025 no setor de saúde?
Vera Valente – Nós falamos de coisas muito importantes, que não vão ser concluídas em 2024, algumas delas já se arrastando de anos anteriores. A questão da entrada dessas tecnologias e o preço de entrada no Brasil, para mim, é uma pauta super relevante. Houve as decisões do Supremo e, se o juiz não pode conceder um produto que não está na lista do SUS ou que é off-label, ele deveria seguir a mesma prática da saúde suplementar. São avanços que esse tema precisa conquistar, pois a velocidade com que as coisas estão chegando é assustadora. Você tem tecnologias – eles diziam que o Zolgensma era o mais caro do mundo, 7,6 milhões, e agora o Elevidys custa 16 milhões. Mesmo que o produto seja bom, como a sociedade paga por isso? Se um município for obrigado a pagar, não vai brotar 16 milhões no orçamento. Ele vai deixar de fazer uma série de coisas para muita gente para conseguir pagar essa conta. Então, para mim, essa é uma pauta muito importante, que passa pela questão de termos uma agência ou instituto. Prefiro falar dessa forma: a unificação do processo de análise e permissão de entrada desses produtos no país. E, para mim, isso envolve a Anvisa, a Conitec, a ANS, o Ministério da Fazenda e uma série de outros entes públicos. Temos também a questão da integração de dados, do fortalecimento das informações, de ter mais visibilidade dos desfechos desses tratamentos. A palavra-chave é “difusão”, ou seja, a partir do momento em que você colocou esse tratamento no rol, qual foi a sua difusão? Essa difusão corresponde ao que a indústria farmacêutica apresentou no estudo, ou, depois de entrar, o número de pacientes potenciais para esse produto triplicou? Então, a difusão, o desfecho e os dados são aspectos essenciais, e esse incentivo à discussão conjunta da cadeia privada. Até escrevi um artigo há algum tempo, intitulado “A quem interessa a morte da saúde privada?”, porque, ao fazer ataques às operadoras, muitas vezes o legislador e o judiciário não têm a visão necessária sobre a cadeia da saúde privada e acabam comprometendo a sua existência. Sem operadora, você inviabiliza esse sistema. Então, acredito que essas são pautas extremamente importantes.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.