Falta de transparência e questões éticas permeiam discussão sobre venda de dados de saúde

Falta de transparência e questões éticas permeiam discussão sobre venda de dados de saúde

No Brasil, mercado de venda de dados de saúde ainda é embrionário e empresas não falam sobre o tema. Especialistas apontam riscos.

By Published On: 22/01/2025
Caso do projeto World reacende debate sobre transparência e questões éticas sobre venda de dados de saúde.

(Foto: Adobe Stock)

A monetização do escaneamento da íris pelo projeto World no Brasil para desenvolver um passaporte digital chamou a atenção de autoridades e reacendeu o debate sobre venda de informações pessoais. No setor, a venda de dados de saúde é considerado um tema sensível, apesar de existir um mercado crescente, que movimenta um valor estimado entre 1 e 2 bilhões de dólares no mundo, com potencial de atingir até U$ 20 bilhões nos próximos cinco anos, de acordo com a L.E.K. Consulting. 

Contudo, ainda há pouca transparência no setor sobre esse assunto. Apesar de já haver empresas em outros países que falam mais abertamente sobre a monetização de dados de saúde, teme-se o impacto na imagem das empresas, mesmo que utilizem as informações de forma anônima, com autorização de pacientes e dentro da legislação.

Em geral, os dados de saúde são utilizados para acelerar pesquisas clínicas pela indústria farmacêutica e de dispositivos médicos, assim como para entender o comportamento de mercado. Ainda, com o avanço da inteligência artificial, já existe demanda para aquisição de grande volume de dados para o treinamento de machine learning. Cada doença, condição ou situação de saúde demanda informações para os algoritmos, de acordo com a proposta da tecnologia desenvolvida.

Para especialistas de direito e privacidade, o compartilhamento e comercialização de dados de saúde traz riscos aos usuários. Apesar de a anonimização ser um dos principais pontos de preocupação, a falta de clareza sobre os objetivos, discriminação e assédio também preocupam. A inexistência de entendimento sobre como revogar o direito concedido a instituições também é um ponto de alerta.

No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) rege o tema, mas a comercialização não é abordada de forma explícita. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) é responsável por fiscalizar, mas recebe críticas pela falta de estrutura e morosidade em seus processos. O caso de escaneamento da íris é investigado pelo órgão desde novembro.

A expectativa é que com o avanço do mercado haja também um progresso na regulação do tema, seja para estabelecer regras ou proteger os usuários. Também espera-se que haja uma maior transparência entre as empresas. A avaliação de consultores é que a venda de dados de saúde individual não deve avançar, já que no setor o volume de dados é essencial.

“O Brasil tem um mercado muito mais embrionário que outros países. Algumas empresas fazem a comercialização desses dados, mas ainda é muito pequeno. Tem casos muito específicos de uma forma muito menos ambiciosa do que poderia ser. Na escala que existe, as empresas têm tido segurança para fazer uma monetização com os níveis de confidencialidade e agregação que os dados demandam”, afirma Rafael Freixo, diretor da L.E.K Consulting.

Legislação no Brasil e questões éticas

A LGPD não possui vedação expressa sobre a comercialização de dados de saúde. No entanto, cobra que haja o consentimento explícito do paciente para que possa ocorrer manipulação das informações e a garantia da anonimização, incluindo algumas exceções como no caso de construção de políticas públicas.

“Com certeza é um tema em constante evolução, tendo em vista que a saúde envolve tanto um direito individual como coletivo. Os avanços nesta área estão intrinsecamente relacionados ao uso de novas tecnologias e realização de pesquisas. E os dados desempenham um papel fundamental, seja para estabelecer um diagnóstico adequado, ou para o tratamento contínuo do paciente visando prevenção, além do desenvolvimento de políticas públicas e de campanhas sociais para melhoria da saúde geral da população”, afirma Patricia Peck, CEO do Peck Advogados e membro da Comissão de Proteção de Dados da Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Do ponto de vista ético, discute-se o quanto a comercialização é justa com os pacientes, principalmente em um cenário que a autorização prévia pode não ser tão explícita ou em casos que não houve de fato essa autorização. Ainda, do ponto de vista de negócios, questiona-se o retorno que o uso deste dado pode gerar.

“O quanto a empresa paga para o cidadão é um valor irrisório do potencial que ela vai gerar depois, juntando e agrupando um grupo temático de dados para depois revender e ter essa troca. A população sempre vai perder, quem vai ganhar vão ser as grandes empresas que vão ter esse montante de informação”, afirma Vinicius Silva, pesquisador da área de Assimetrias e Poder da Data Privacy Brasil. 

Em um cenário de doenças raras, por exemplo, teme-se o quanto as empresas conseguem anonimizar as informações para evitar o rastreio de quem são os seus donos. Caso não consigam fazê-lo, isso pode provocar riscos à privacidade de pacientes que compartilharam suas informações. Apesar de existirem ferramentas que fazem o processo de ocultar dados que possam identificar o proprietário, a falta de transparência sobre o tema faz acender um alerta entre especialistas.

“Imagina uma doença que acomete um a cada 300 mil pessoas, por exemplo. Deletaram nome, CPF e outras informações pessoais daqueles dados, mas em uma cidade pequena só pode ser uma pessoa. Então, consegue identificar. Muitas vezes não é tão simples anonimizar uma base de dados quando principalmente tem diagnóstico”, avalia Carlos Pedrotti, gerente médico de telemedicina do Hospital Albert Einstein e presidente da Saúde Digital Brasil.

A advogada Patricia Peck explica que casos que chegam ao Judiciário são julgados com base na validade do consentimento, na legitimidade do tratamento das informações e possíveis violações. Em caso de condenação, existe a possibilidade de indenização por danos morais. A ANPD também pode aplicar multas e sanções por descumprimento à LGPD.

“Independente dos benefícios, há vários riscos que devem ser analisados pelo titular relacionados a eventual falta de transparência sobre a finalidade do tratamento do dado, questões de segurança e como fica a possibilidade de exercer o seu direito de revogação de consentimento”, observa a advogada Patricia Peck.

Vinicius Silva, da Data Privacy Brasil, aponta que o Brasil ainda está evoluindo sobre o tema da proteção de dados. A ANPD, que foi criada em 2018, está no começo desses processos, entendendo como receber uma denúncia e os passos seguintes para atuar com empresas que estão excedendo a lei.

“Já estamos caminhando para essa segunda fase, que seria uma fase de fazer a lei acontecer. Não só fazer a lei acontecer, mas também como culturalmente vamos colocar para a sociedade que é importante também essa questão da proteção dos dados. Não só clicar lá e aceitar tudo. É preciso definir como seus dados podem ser utilizados”, explica o pesquisador.

Potencial do mercado de venda de dados de saúde e cenário mundial

“O mercado americano, talvez o maior mercado de venda de dados de saúde que temos hoje, tem ficado um pouco mais transparente. A regulação dá um pouco mais de tranquilidade também para fazer isso. Você tem empresas como a Mayo Clinic e a Quest Diagnostic, em parceria com a Health Verity, que já divulgam que compartilham dados”, explica Rafael Freixo, da  L.E.K. Consulting. 

Outro case apontado por Freixo é da Truveta, plataforma que reúne dados de prontuário eletronico de 120 milhões de pacientes não identificados. A empresa tem parceria com mais de 900 hospitais e 20 mil clínicas, e fornece informações para o setor, em especial de desenvolvimento de pesquisas clínicas. Segundo a empresa, isso permite a aceleração na disponibilidade de novas terapias e melhor atendimento a pacientes.

“Tem companhias como a Vitality Health and Life Insurance, que atua no Reino Unido e em outros lugares, que trabalha com uma monetização indireta. O beneficiário ganha um Apple Watch, que fornece dados à empresa. Assim conseguem precificar melhor o risco do seu seguro e fazem uma gamificação. Se o beneficiário caminhar dois quilômetros por dia, por exemplo, tem um desconto no seu plano”, aponta Bruno Brandi, senior manager da L.E.K. Consulting. 

Os especialistas explicam que existem casos em que as empresas não possuem o consentimento de pacientes e fazem uma amostragem de dados da base de informações. Nesse processo, é possível tirar insights de forma anonimizada, que podem ser utilizados por farmacêuticas e indústrias de dispositivos médicos de forma menos específica.

Freixo e Brandi acreditam que a venda de dados de saúde individualizada, como ocorreu no caso do escaneamento de íris do projeto World, não deve ocorrer para a saúde. A monetização das informações deve permanecer B2B, dado a importância do volume agregado para utilização. No entanto, reforçam que, se tratando de compartilhamento para pesquisas clínicas e desenvolvimento de novos tratamentos, há um alto índice de autorização dos pacientes, com índice de 95% entre pacientes oncológicos na Europa, de acordo com levantamentos da própria L.E.K. Consulting. 

“Hoje não é transparente, mas de alguma forma os pacientes se beneficiam disso, seja depois com as terapias que são lançadas, e eventualmente fora do Brasil quando uma operadora comercializa um dado consegue melhorar a margem e repassa isso em preço para o beneficiário depois”, argumenta Freixo.

Com o avanço do uso de inteligência artificial na saúde, há uma tendência de que haja mais procura de informações no mercado para treinamento de machine learning. No entanto, o diretor aponta que isso ainda é embrionário. Dados de consumo e para pesquisas clínicas ainda são os principais. Para Bruno Brandi, o avanço da regulação e a capacidade tecnológica para analisar dados é um dos principais pontos para a ampliação desse mercado nos próximos anos.

Importância dos dados em saúde

Existe uma frase batida no setor da saúde de que dados são igual petróleo, mas é preciso refinar para ter valor. Isso porque durante um atendimento médico, por exemplo, dezenas de informações são registradas sobre condições do paciente. No contexto de hospitais, clínicas e laboratórios, o volume de informações tem capacidade de contribuir com o sistema como um todo.

Por isso, a discussão sobre a interoperabilidade de dados segue na pauta de planos de saúde, Ministério da Saúde e outros agentes. A ideia é que haja um compartilhamento, com autorização prévia dos pacientes e seguindo as regras da LGPD, para que haja um melhor atendimento e uma continuidade do cuidado. 

Pedrotti, presidente da Saúde Digital Brasil, acredita que essa é uma possível solução para o setor, mas é preciso garantir a segurança para que não haja vazamentos e invasões por hackers, que podem roubar dados e interditar serviços.

“Uma vez que você tem os dados inseridos na blockchain de uma forma estruturada, usando padrões de interoperabilidade que garantem que aqueles processos estão em uma linguagem interpretável, permite, por exemplo, que o paciente tenha controle de quem tem o direito de ver aquela informação e ela se torna imutável”, observa Pedrotti.

O especialista explica que para além das operadoras, hospitais e laboratórios, o uso de dados pela indústria farmacêutica é importante não só para pesquisa clínica, mas para entender o comportamento do paciente e fazer marketing mais dirigido ao público que se quer atingir. Eles também são essenciais para o desenvolvimento e uso da inteligência artificial. “Sem dados não tem inteligência artificial. Não é só importante, é fundamental. E precisa de um grande volume quando falamos em inteligência artificial generativa, por exemplo”, afirma Pedrotti.

 

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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