Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) optou por alterar a palavra “senilidade” por “velhice” na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). A nomenclatura tem até o ano de 2022 para entrar em vigor pela organização e começou a ser discutida pela sociedade nas últimas semanas, mas a adoção do termo é opcional para cada país.
Segundo a advogada, pesquisadora e bioeticista Luciana Dadalto, a alteração tem sido interpretada erroneamente: “Tecnicamente falando, o que a OMS fez na nova classificação não foi tornar a velhice uma doença, mas sim substituir uma nomenclatura que já existia, para falar de sintomas e condições. Como o termo foi muito criticado na atualização anterior, a OMS optou por substituir por velhice. Não é o melhor termo, mas não se trata de uma nova doença e sim de uma condição”.
A discussão sobre a palavra velhice ser incluída na lista de doenças se iniciou em 2007 na OMS, mas passa pelos centros acadêmicos através dos tópicos de filosofia, ética, ciência e negócios desde os anos 1950. A questão toda parte dos conceitos de duas palavras.
Enquanto a senescência é normalmente definida como uma forma de envelhecer sem doenças, o seu real significado “tem a ver com o envelhecimento bem sucedido. O indivíduo até pode ter algum problema de saúde, mas ainda desempenha suas funções de forma adequada, se sentindo satisfeito e realizado”, explica o médico geriatra Maurício de Miranda Ventura, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia de São Paulo. Já a senilidade está atrelada ao envelhecer com condições patológicas e limitantes para a funcionalidade, fazendo com que o idoso passe a depender do auxílio de outras pessoas.
Controvérsia
Considerando o senso comum, de que os mais velhos possuem mais doenças, pode parecer que a alteração para “velhice” não seja um problema. Contudo, os especialistas não estão em consenso com a Organização Mundial da Saúde quanto a essa decisão. Por enquanto, ainda não se sabe o que a nova nomenclatura poderá causar para os planos de saúde, previdência social e demais políticas públicas para idosos.
Mesmo assim, um dos primeiros problemas a ser citado por Ventura é o estigma em relação aos idosos: “Classificar o idoso como doente é dizer que ele é incapaz, e ele não é incapaz. O envelhecimento é uma fase da vida, assim como a infância e a puberdade. Se uma senhora é uma boa cozinheira e envelhece bem, ela continuará cozinhando bem. Se um senhor envelhece bem e é responsável por seus compromissos financeiros, ele continuará administrando bem seus recursos financeiros quando estiver com 80 ou 90 anos. Não é a idade que vai impedir”.
Para Ventura, outro grande temor dessa decisão é a tentativa de curar algo intrínseco à vida: “Se o envelhecimento for uma doença, como vamos tratar? Vamos oferecer hormônios para deixá-lo mais forte e ao mesmo tempo aumentar o risco da pessoa de ter um câncer de fígado, um ataque cardíaco ou algo assim? O que temos medo nessa proposta é que o tratamento antienvelhecimento comece a ganhar força. Surgem ‘fórmulas da juventude’, mas não é bem assim”. O médico afirma também que, pelo menos até este momento, a postura da SBGG é clara quanto à questão: velhice não é doença.
Outro ponto a ser considerado, é quando uma morte é associada ao fato do indivíduo ter envelhecido. Para o médico, isso é “uma grande bobagem. Falar que alguém morreu de velhice é colocar debaixo do pano uma situação em que não se entendeu totalmente o que aconteceu”. Como exemplo, ele cita o caso do recém falecido Príncipe Philip de Edimburgo, que faleceu aos 99 anos, após passar por uma cirurgia cardíaca e permanecer 30 dias em internação pós operatória: “Na realidade, ele já tinha histórico de doença cardíaca e aos 99 anos, uma coisa que a idade traz é a dificuldade de se recuperar após algum evento agudo, seja uma pneumonia ou intervenção cirúrgica. Aqueles 30 dias em que ele estava internado influenciaram o óbito”.
Nesse contexto, Luciana Dadalto também demonstra receios: “Acredito que essa mudança oferece munição para pessoas que consideram a velhice como uma doença propriamente dita, pois apesar de não estar em um capítulo que se classifica como doença, o termo estará dentro de um documento chamado Classificação Internacional de Doenças”.
Questionamento filosófico e cultural
Em volta deste tema há diferentes conceitos. Da pílula da juventude, ao transhumanismo (substituição de órgãos por tecnologias), ou ao nitrogênio que visa guardar o corpo durante anos até que seja a hora de acordar (escolhida pelo indivíduo), Dadalto afirma que surge a seguinte questão: “tudo isso não irá nos descaracterizar como seres humanos? o que estamos fazendo com a nossa humanidade?”
Do ponto de vista da bioética, a advogada explica que não há certo ou errado, entretanto “sabemos que temos um processo natural de envelhecimento que começa desde o dia em que nascemos. Tratar a velhice como uma patologia e, consequentemente, como algo curável, significa querer reverter a naturalidade do nosso ser”, analisa Dadalto.
Por fim, há a questão cultural. Para o médico geriatra da SBGG, no mundo “temos culturas que valorizam muito os idosos, tentam aprender com a experiência deles e se relacionar de uma forma muito saudável, aprendendo e trocando experiências”. Por outro lado, Dadalto relembra pontos do início da pandemia pelo coronavírus, onde a desvalorização dos mais velhos ganhou destaque: “Em 2020 houve a confusão com os protocolos de alocação dos recursos escassos, com diversos profissionais de saúde, pesquisadores e outros defendendo que deveríamos oferecer os leitos primeiro para os mais jovens em detrimento dos mais velhos. Isso mostra muito de quem somos em sociedade”.