VBHC avança, mas barreiras como dados e cultura precisam ser superadas para utilização efetiva

VBHC avança, mas barreiras como dados e cultura precisam ser superadas para utilização efetiva

Modelos de remuneração baseados em valor (VBHC) miram no desfecho do cuidado e enfrentam desafios na sua implementação, como a falta de acesso a dados

By Published On: 29/01/2025
VBHC

Foto: Jcomb/Freepik

Assunto recorrente na saúde privada do país, a busca pela sustentabilidade financeira deve seguir na pauta nos próximos anos, agravada pelo custo alto de novas terapias e envelhecimento acelerado da população. Neste contexto, os novos modelos de remuneração baseados em valor (Value Based Healthcare – VBHC, em inglês) avançam com foco na qualidade da jornada do paciente e análise de seu desfecho clínico. Contudo, sua implementação ainda enfrenta barreiras como a falta de dados e a cultura das organizações.

O setor privado tem se movimentado para discutir e implementar novos modelos baseados em valor. A Associação Nacional de Saúde Suplementar (ANS), inclusive, possui o Programa Modelos de Remuneração Baseados em Valor para acompanhar operadoras de saúde na implementação dessas novas modalidades. No seu segundo edital, 20 projetos de 18 operadoras de todo o país foram selecionados para acompanhamento.

Na perspectiva de César Luiz Lacerda Abicalaffe, fundador do Instituto Brasileiro de Valor em Saúde (IBRAVS), essa mentalidade de saúde baseada em valor precisa pautar o ecossistema de saúde suplementar como um todo. “Eu acho que está claro para as operadoras, os pagadores, os prestadores, que o mercado não se sustenta do jeito que está, ele tem que mudar, precisa de alternativas. A saúde baseada em valor muda a lógica da assistência, a prática, e pode resolver grande parte da ineficiência do sistema. Se eu pago por volume, por complexidade, eu recebo volume e complexidade. Eu tenho que pagar por valor para receber valor.”

O modelo baseado em valor foca no desfecho clínico e pode ser aplicado a formas distintas de remuneração. Até o fee-for-service, mais comum no mercado, pode se focar no valor, se alteradas algumas diretrizes de sua estrutura. “Eu pego parte daquilo que eu pago, como produto, como serviço, e crio um adicional, uma bonificação. Você não penaliza o médico, você paga mais por aquele que entregar mais valor. Transforma um modelo tradicional num modelo de pagamento por valor. Sempre com essa lógica híbrida de você medir o valor e pagar diferente em função dessas métricas”, explica Abicalaffe.

A bonificação seria, portanto, uma forma de recompensar o valor gerado por um paciente, olhando para o custo e também para o desfecho. Para que isso funcione, no entanto, os prestadores não devem gerar mais volume de serviços — o que não é tão simples, segundo avalia o fundador do IBRAVS, já que os sistemas são configurados para faturar dessa forma.

“Há algum tempo já existe uma preocupação com a sustentabilidade do sistema de saúde, como um todo”, analisa Vanessa Teich, especialista em economia da saúde e diretora de transformação da oncologia e hematologia do Hospital Israelita Albert Einstein. “O que acho que falta ainda, e nós prestadores de serviços temos um papel a desempenhar, é como passamos a ter informação de pertinência do cuidado ao longo da jornada do paciente.”

VBHC: a medição do valor desfecho clínico

Uma das características do modelo de valor na saúde é fazer com que o paciente receba um tratamento melhor e, em consequência, tenha resultados clínicos melhores. Para medir o valor entregue, ganha centralidade a avaliação do paciente.

Modalidades que calculam uma espécie de escore de valor em saúde ajudam a gerar essa avaliação, por meio de uma análise baseada em critérios como métricas de processo de trabalho, de desfecho clínico, de reportes do paciente e de custo. Com base em estatística, a metodologia considera “scores” para cada componente do sistema, seja o médico, o paciente, o hospital ou operadora, que será recompensado de forma variável de acordo sua pontuação. 

Essa medição é complexa, pois existem inúmeras condições de saúde, com necessidades variáveis. Uma cirurgia bariátrica poderia ser medida na perda de peso e no ganho de qualidade de vida, enquanto a cirurgia de quadril ou joelho por osteoartrose já se enquadra em outro tipo de atendimento e de indicadores. O ganho para o paciente, nesse caso, seria no nível de diminuição da dor e de aumento de função motora, por exemplo. Segundo Teich, um indicador único possivelmente não seria a melhor decisão para abarcar todas essas condições. Outro exemplo que ela cita é de um paciente que tem insuficiência cardíaca. A sua piora ao longo tempo pode não estar relacionada a um mau cuidado do atendimento à saúde, mas sim à progressão da doença. 

Uma proposta debatida por especialistas é comparar os dados da própria instituição e monitorar a jornada do paciente. “Mesmo que eu não consiga num primeiro momento comparar as instituições porque elas podem ter pacientes com perfis de gravidade muito diferentes, se eu estou dentro de uma mesma instituição e o seu perfil de paciente não muda radicalmente ao longo do tempo, se pode usar esses dados para comparação. E a instituição pode ter como benefício melhorar ao longo do tempo com o seu próprio benchmark. Isso já seria muito útil”, comenta. 

Segundo Márcia Makdisse, mestre em Cardiologia e em Transformação de Sistema pelo Value Institute for Health and Care da Universidade do Texas, o resultado da mensuração do desfecho deve vir acompanhado de ações que promovam a melhoria do cuidado, o compartilhamento de dados com os pacientes e a remuneração distinta para quem entrega mais valor. “Não existe pagamento baseado em valor se eu medir desfecho, mas não atrelar uma porcentagem do pagamento ao desfecho”, explica.

A especialista menciona que o que diferencia o pagamento baseado em valor de outros modelos é, justamente, a mensuração dos resultados. “Seja o modelo de pagamento de fee-for-service, pagamento por episódio ou outros, se tiver um pagamento por performance, mas não tiver desfecho, ele não se configura como um modelo de pagamento baseado em valor, e sim um modelo de pagamento com incentivo à performance”. Se torna essencial, então, fazer essa medição, com base na qualidade e na eficiência do processo de cuidado.

Um dos obstáculos, segundo Makdisse, consiste em promover um entendimento sobre o modelo de remuneração baseado em valor entre gestores e profissionais de saúde. Isso exige, por exemplo, sair da mentalidade de se fazer apenas melhorias incrementais e ir para a prática da mensuração — e da aplicação dos aprendizados dessas análises no cuidado com o paciente. “Não é só ficar fazendo melhoria incremental. Se você não mede, você não melhora. E se você não mede a coisa certa, não adianta. E tem outro ponto que é medir para melhorar”, explica.

Passos da agenda de saúde baseada em valor

Um dos primeiros passos da agenda de valor é focar em um modelo de cuidado integrado e não apenas a um serviço isolado. Assim, esse processo engloba pensar no apoio ao período de cuidado e pós-cuidado. “O valor se materializa na hora em que o time presta cuidado para o paciente ou família. Não é quando se assina um contrato ou novo modelo de remuneração. O pagador tem a capacidade de apoiar esse prestador para que ele faça os investimentos necessários e atenda o paciente durante esse período?”, comenta Makdisse. 

Um ponto sensível de avaliação em relação ao valor que o modelo de remuneração entrega ao usuário final são as novas tecnologias em saúde, como terapias avançadas gênicas e celulares, que têm preços elevados. Teich comenta que é necessário fazer uma análise levando em conta a experiência com o paciente. “Chega um momento em que precisamos ter certeza de que o paciente que tem potencial de se beneficiar está usando as tecnologias, porque elas são muito caras. E, nesse sentido, acho que o prestador tem um papel a desempenhar nesse tipo de avaliação na indicação adequada”, comenta. 

Na visão dela, o trabalho de definição sobre protocolos e critérios de indicação de procedimentos deveria envolver operadoras e prestadores de serviços de saúde — e ser pautado pelo combate ao uso desnecessário de tratamentos, sobretudo quando envolvem terapias de alto custo. “Queremos que a inovação aconteça. Só que, a princípio, o aumento de custo está sendo tão rápido que isso pode tornar o sistema insustentável. E o que temos que evitar? O custo desnecessário, que às vezes não é uma indicação errada, mas uma indicação para um paciente com pouco potencial de benefício.”

Ainda assim, a redução de custos deve avaliar o impacto no paciente. E a medição do desfecho clínico ao longo do tempo ajuda a revelar se a escolha por determinada modalidade de pagamento está beneficiando o usuário final. “É preciso tomar cuidado para não prejudicar o paciente com esses novos modelos. Porque se o incentivo de reduzir custo começa a ser tão grande que o prestador tem que restringir o acesso à tecnologia, rever materiais e o padrão de cuidado, eu posso prejudicar as pessoas em vez de beneficiar. A única forma de medir se eu estou prejudicando ou beneficiando seria medir o desfecho ao longo do tempo”, explica Teich.

De acordo com Ablicalafe, a falta de acesso aos dados que registram a experiência dos pacientes pode dificultar a implementação do modelo baseado em valor. Dados de medidas de experiência relatadas pelo paciente — o PREM (Patient-Reported Experience Measures, em inglês) — e de medidas de desfecho reportados pelo paciente — o PROM (Patient-Reported Outcome Measures) — são casos de informações relevantes para o modelo que, por vezes, podem não ser registrados em sistema ou serem de difícil acesso. Sua própria implementação também não é simples, pois altera padrões já conhecidos e, por isso, exigem uma adaptação da equipe.

Em direção a modelos baseados em valor

Implantar o VBHC exige a criação de uma estrutura para gerenciar esse processo. Para fomentar esse modelo em organizações, já há até mesmo a criação de departamentos de valor em saúde — os Value Management Office (VMO) –, com times que lideram ações de implementação em planos de saúde, prestadores de serviço, indústria, governo e outras instâncias. Neste processo, há um aprendizado com quem aplica modelos que geram bons resultados.  

Um exemplo neste âmbito é o da Unimed Porto Alegre, implantado em junho de 2023. Com o propósito de acelerar soluções de alto valor em saúde, ele teve uma expansão de seu projeto inicial para abarcar toda a rede de cuidado.

Utilizando como exemplo a cirurgia de coluna, o projeto avalia parte do procedimento cirúrgico, mas observa, de uma forma mais ampla, a rede de atendimento da dor lombar, aplicando o conceito de valor. “O sistema de atendimento vai desde a detecção do paciente com dor lombar à definição se ele vai se alocar num episódio de cuidado conservador, se é um caso leve, moderado ou grave. Seriam, então, três bundles (pacotes diferentes). A partir disso, desenham-se episódios de tratamento com focos específicos, com a equipe de fisioterapeutas”, explica Makdisse. Um dashboard de valor ajuda a organizar esse sistema, com inspeção, driver de custo e processo.

O modelo, desenhado em conjunto com o time de linha de frente e prestadores de serviços, pode ser escalado e modificado à medida em que entram novos prestadores. A sua definição, defende Makdisse, deve ser feita ao final, após ouvir os pacientes e o time clínico. Nessa escuta, podem surgir grupos com necessidades próprias, o que deve levar a um redesenho do modelo de pagamento. E esse processo deve ter transparência para funcionar efetivamente. “Os dados do dashboard devem ser transparentes para todos os players. Se não tiver transparência total, ninguém faz valor. Todo mundo tem que discutir as melhorias”, pontua a especialista. 

No contexto da América Latina, ainda existe um caminho a ser percorrido na implantação de iniciativas e programas baseados em valor. É o que mostra um estudo publicado no periódico “BMJ Open”, em 2022, que investigou a situação da VBHC na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México. Cerca de 81% das 70 organizações entrevistadas relatam a existência de 179 iniciativas que consideravam alinhadas com o conceito de valor. No entanto, segundo a análise, apenas um terço são, efetivamente, amparados no VBHC — ligadas a prestação de cuidados (57%), medição de resultados (22%) e de custos (10%) e pagamentos agrupados (10%). E, na maioria dos casos, os dados de desfechos não eram utilizados para orientar a melhoria do processo, assim como itens de unidade prática integrada não haviam sido totalmente desenvolvidos.

Para quem quer avançar no estabelecimento de modelos baseados em valor, Makdisse sugere começar gradualmente, para não comprometer a experiência do usuário, nem colocar em risco prestadores de serviços e pagadores. “Temos que começar pequeno e escalar depois, testar esse tipo de sistema com uma condição, do começo ao final, e ver o que precisa em termos de tecnologia, de demanda de pessoal, de navegação do cuidado”, pontua. Outro conselho é fazer contratos de curto prazo, para ir ajustando o processo. “Às vezes, o pagador vem e transforma um monte de condições de uma única vez. Ninguém tem experiência e começa a colocar o pagador e o prestador em risco. Assim o VBHC não funciona”. 

No Brasil, o movimento em direção a VBHC acontece com incentivo de organizações como o IBRAVS. Ele foi um dos selecionados no chamamento público da ANS e trabalhará por cinco anos com a agência para elaborar componentes para viabilizar a implementação de modelos de valor. Uma das primeiras funções é elaborar um guia prático de implantação e, depois, um sistema de informação para que a agência colete dados das operadoras e os traduza em informações gerenciais, que serão analisados e divulgados para o mercado. A cooperação também prevê o estudo de cases do exterior e a realização de uma capacitação voltada para esses modelos.

“Com a escrita de melhores práticas, o convite a operadores e a divulgação dessas informações ao mercado, eu acredito que a ANS vai incentivar as operadoras a melhorarem seus índices de ranqueamento. Eu creio que a estratégia é que a agência faça essa sugestão, e o mercado entenda isso como uma grande alternativa e aplique”, comenta o fundador da IBRAVS.

Isabella Marin Silva
Isabella Marin

Jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da USP, passou pela área de Comunicação da Braskem e atuou com Jornalismo de Dados na empresa Lagom Data. Integra o time como repórter do Futuro da Saúde, onde atua desde março de 2024.

About the Author: Isabella Marin

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One Comment

  1. Laura Berquo 05/02/2025 at 17:04 - Reply

    Ótima matéria sobre VBHC e a complexidade de sua implantação no modelo de saúde brasileiro.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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