Medicina de precisão avança, mas acesso
ainda é barreira

Conceito utiliza tecnologia de ponta para oferecer o melhor cuidado possível para
cada paciente, do tratamento à prevenção

Por Theo Ruprecht

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Garantir o tratamento certo para o paciente certo na dose certa e no momento certo. Em linhas gerais, esse é o conceito que define a medicina de precisão. A partir de novas tecnologias e, principalmente, dos avanços da genômica, o profissional de saúde hoje consegue encontrar especificidades daquele paciente (uma mutação no DNA que promove doença, por exemplo) e oferecer soluções que miram justamente essas especificidades (um medicamento avançado que abafa a ação dessa mutação, ou mesmo a corrige). Em resumo, a medicina de precisão de hoje – se bem empregada – ajuda a antecipar diagnósticos, a determinar particularidades de diferentes condições que direcionam o tratamento, a desenvolver e aplicar fármacos modernos, a aconselhar toda a família quanto a questões de saúde e até a racionalizar o uso de recursos médicos.

A bem da verdade, a premissa de oferecer uma linha de cuidado adaptada para cada paciente diante de suas aflições não é nova – ela reina desde a época de Hipócrates, o Pai da Medicina, na Grécia Antiga. A questão é que faltavam conhecimento e opções terapêuticas para efetivamente customizar a atenção em saúde. Com o avançar dos anos – e principalmente do século 20 em diante, o leque de recursos dos profissionais de saúde, tanto do ponto de vista de diagnóstico como de tratamento, foi se ampliando. 

Ainda assim, há um consenso de que a ideia de medicina de precisão posta em prática hoje tem como “mito fundador” o Projeto Genoma. De 1990 a 2003, um conjunto de pesquisadores de quase 20 países consumiu 3 bilhões de dólares para mapear quase que completamente o genoma de um único ser humano. Foi uma proeza para a ciência, e que abriu as portas para a ideia de que, ao investigar os genes das pessoas, seria possível encontrar causas de doenças, formas de diagnóstico e particularidades que poderiam ser alvejadas com tratamentos.

Mas convenhamos: do ponto de vista médico, seria inviável pedir um exame que demora mais de uma década, ao custo do PIB de um país como Gâmbia, para tornar o cuidado de uma única pessoa mais preciso. Fora que o Projeto Genoma revelou a sopa de letrinhas do DNA, mas não traduziu o que cada uma significava para o funcionamento do corpo.

O início de uma nova era

Essas barreiras começaram a ser contornadas nos anos seguintes. Na segunda metade dos anos 2000, foram desenvolvidos os primeiros Sequenciadores de Nova Geração, equipamentos que aceleraram em milhões de vezes a capacidade de analisar o genoma humano, e a um custo mais aceitável. Sequenciamentos completos do nosso código genético custam em torno de R$ 20 mil reais hoje em dia. Já avaliar “apenas” o exoma (a parte que codifica proteínas e é mais estudada para a identificação de enfermidades) sai por menos, na ordem de R$ 5 mil. Testes que miram genes específicos – ou conjuntos limitados de genes – são ainda mais acessíveis. E os resultados são disponibilizados, dependendo da abrangência e da complexidade da análise, entre um dia e algumas semanas.

“Junto com esse desenvolvimento tecnológico, o conhecimento sobre os genes evoluiu muito nos últimos anos”, garante o biólogo Miguel Mitne-Neto, responsável pela área de genômica do Grupo Fleury. Segundo ele, a sociedade começa a colher os frutos do Projeto Genoma. Veja: uma reportagem da Revista Pesquisa Fapesp revela que, em meados dos anos 1980, apenas 40 alterações de genes haviam sido identificadas como causadoras de doenças monogênicas (que são disparadas pela alteração de um único gene). Em novembro de 2022, esse número subiu para 4 721.

De acordo com o National Institutes of Health, dos Estados Unidos, em 2017 já haviam mais de 50 mil testes genéticos criados para milhares de problemas de saúde. Essa sequência de números chamativos ilustra esse novo cenário, em que a medicina de precisão de fato ganha escala e…precisão.

Tanto que hoje ela vai além: contempla o efeito do ambiente e de certos hábitos nessa pessoa, inclui os familiares no enredo, como por meio do aconselhamento genético, e considera o sistema de saúde como um todo. Aliás, aqui vale um parêntese. Antes, costumávamos ouvir muito o termo medicina personalizada. No entanto, a palavra “personalizada” vem perdendo espaço pela possível interpretação de que a medicina adjetivada por ela se concentraria apenas no indivíduo. Como vemos, medicina de precisão engloba muito mais que o indivíduo. Se aplicada com responsabilidade, pode transformar a saúde ou aprofundar suas desigualdades. 

“A medicina de precisão depende da racionalidade. Usar o recurso apenas porque ele existe onera o sistema de saúde e leva ao acúmulo de informações fúteis e mesmo a danos”, argumenta Edgar Rizzatti, diretor executivo médico, técnico e de B2B do Grupo Fleury. Ora, não faz sentido solicitar um exame quando as evidências mostram que, para aquele perfil de paciente, os resultados não trarão um efeito prático. Curiosamente, aí mora outro grande potencial da medicina de precisão: o de diferenciar o perfil que deve se submeter a uma investigação pormenorizada ou um tratamento de ponta daquele que não teria benefícios.

66% dos norte-americanos nunca haviam ouvido falar de medicina de precisão em 2018.

A oncologia como principal expoente

A oncologia é uma das áreas em que a medicina de precisão mais traz respostas. Hoje, há literalmente centenas de indicações de medicamentos contra o câncer baseados no perfil genético do paciente e da doença. Aliás, cada vez mais a ciência mostra como tumores de pessoas diferentes, ainda que localizados em um mesmo lugar do corpo (mama, intestino, cérebro…), apresentam perfis genéticos distintos, o que traz repercussões diversas.

Antes de tudo, esse conhecimento permite aos pesquisadores desenvolverem medicamentos focados em alterações específicas. Esses fármacos, que vêm se multiplicando nos últimos anos, integram a chamada terapia-alvo, uma estratégia que funciona como um míssil teleguiado. Antes de prescrevê-los, via de regra o oncologista pede um exame que avalia o DNA tumoral a partir de uma biópsia. Se surgir uma alteração passível de ataque por alguma terapia-alvo, o paciente será beneficiado. Em áreas como o câncer de pulmão, o que mais mata no mundo, testes de DNA tumoral ajudam a identificar fármacos específicos, com alta eficácia e efeitos colaterais reduzidos, em cerca de 80% dos casos, segundo afirmou o oncologista Antonio Carlos Buzaid, diretor médico geral de oncologia da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, durante o evento Fleury Talks, no ano passado.

Quando bem indicada, a avaliação do DNA tumoral e outros testes também ajudam a entender o comportamento do câncer (se é mais agressivo e exige intervenções rápidas e intensas, ou se é indolente) e para verificar se outros tratamentos para além da terapia-alvo serão úteis. 

O exame Oncotype DX, por exemplo, averigua diferentes parâmetros biológicos do câncer de mama que antecipam se a quimioterapia trará benefícios. Em um estudo com a participação do Grupo Fleury, pesquisadores submeteram 162 mulheres que teriam indicação para a químio a esse teste. Resultado: 112 foram poupadas do tratamento, porque o exame mostrou que ele não as ajudaria. 

“Não receber um tratamento parece algo ruim. Mas é importante destacar que o exame evitou efeitos colaterais desnecessários, que viriam sem que a paciente recebesse qualquer benefício”, aponta Rizzatti. Além disso, esse tipo de informação pode fazer o médico redesenhar o plano de tratamento. 

A medicina de precisão já está chacoalhando inclusive a forma clássica como se distinguem os cânceres. Atualmente, a população tende a diferenciar os tumores pelo local: fulano teve câncer de mama, sicrano, de colo de útero, e por aí vai. “Mas, hoje, já existe o chamado tratamento agnóstico do câncer”, informa Mitne-Neto. Nesse cenário, o que importa é a presença de certas características moleculares na doença, independentemente de onde esteja no corpo. 

Existe, por exemplo, uma alteração no DNA tumoral conhecida como instabilidade de microssatélite. Se ela pipocar em um câncer, os médicos podem prescrever um imunoterápico – um fármaco que estimula as defesas do próprio organismo a atacar o tumor –, esteja ele no intestino, nos pulmões ou onde for.

Outra inovação que passa pela medicina de precisão é a biópsia líquida, um exame que flagra rastros de DNA tumoral na circulação com uma simples coleta de sangue do paciente. Embora precise evoluir bastante para se tornar uma forma de diagnóstico precoce, o método já ajuda em determinados casos a acompanhar a evolução do câncer sem a necessidade de uma biópsia tradicional, que às vezes envolve cirurgias complexas. “É possível fazer a biópsia líquida de forma recorrente para verificar se o tratamento segue funcionando ao longo do tempo, ou se será necessário realizar ajustes”, conta Mitne-Neto.

Farmacogenômica

A medicina de precisão também chegou ao ponto de, a partir de testes genéticos, definir como o organismo do paciente processará certos medicamentos. “Às vezes uma característica do código genético daquele indivíduo o faz metabolizar certas classes de fármacos muito rapidamente, o que influencia na eficácia e nas reações adversas”, diz Mitne-Neto.

Esse recurso, especialmente utilizado na neuropsiquiatria, auxilia a antever se o paciente deverá receber doses maiores ou menores, se efeitos adversos podem ser intensificados, se a eficácia será a desejada… 

É uma ferramenta muito útil em condições como a depressão, onde cerca de metade dos pacientes não responde bem ao primeiro tratamento ofertado. Contudo, esses testes também já são aplicados para antecipar a resposta do corpo a estatinas (usadas contra o colesterol alto), na cardiologia, na própria oncologia, etc. Até o uso de opioides – remédios eficazes para controlar a dor, mas que tem um risco de dependência – pode ser intermediado por essa avaliação.

A prevenção

A medicina de precisão ainda auxilia a evitar doenças ou ao menos diagnosticá-las cedo. Com base em testes que mensuram uma série de possíveis alterações genéticas, o indivíduo fica sabendo se possui uma suscetibilidade especial a um problema de saúde. A partir daí, é possível fazer um rastreamento mais próximo com outros exames e mesmo adotar tratamentos preventivos. 

Um caso que repercutiu foi o de Angelina Jolie, que descobriu carregar uma mutação no gene BRCA1 por meio de um exame genético. Por causa dessa alteração, o risco de câncer de ovário era de 50%, e o de mama, na faixa dos 80%. Com essas probabilidades, ela decidiu retirar as mamas e o ovário de forma preventiva. 

Lidar com essas probabilidades é, aliás, um desafio à parte para o paciente. Sem orientação, ele pode tirar conclusões precipitadas ou ficar ansioso além da conta. Daí a necessidade do chamado aconselhamento genético. “É uma conversa com o profissional para entender o que o laudo significa e quais os próximos passos a serem tomados, tanto do ponto de vista individual, como familiar”, esclarece Rizzatti. 

A questão da hereditariedade é relevante. Algumas das mutações patogênicas passam de pai para filho. Logo, se o paciente é o primeiro a descobrir essa alteração, a princípio seria bom alertar seus familiares mais próximos para que eles também sejam testados. Se o resultado sair positivo para algum ente querido, ele poderá se preparar, fazer exames frequentes e até refletir sobre o planejamento familiar. Atualmente, há técnicas no ramo da reprodução assistida que selecionam embriões sem as mutações que podem causar doença. 

Por meio da Sommos DNA, o Fleury oferece testes genéticos com diferentes finalidades diretamente para o consumidor, sem necessidade de indicação médica. O cliente pode adquirir exames que rastreiam a suscetibilidade a certas enfermidades ou que flagram doenças raras em recém-nascidos ou até no útero. 

Mas o diferencial é oferecer sempre, junto com o pacote, uma consulta de aconselhamento genético. “O usuário recebe o laudo e já tem a oportunidade de marcar essa consulta. Isso é valioso para tomar decisões inteligentes com base nos resultados encontrados”, ressalta Mitne-Neto. 

O desafio, aqui, é quando pedir os exames. No caso da Angelina Jolie, sua mãe havia morrido de câncer, um fator que justificava a investigação mais detalhada. “Quando bem indicado, o aconselhamento genético salva vidas”, argumenta Rizzatti. 

Já pessoas sem histórico familiar, sintomas ou outros sinais de alerta poderiam, idealmente, conversar com um profissional para checar a validade de fazer esse tipo de exame, ou outro tipo de acompanhamento. É aquela questão da racionalização de recursos que o conceito amplo de medicina de precisão envolve. 

 

Em 2017, o CDC dos Estados Unidos estimou o surgimento de cerca de três novos testes genéticos por semana.

Recursos bem empregados

O caso já citado do exame Oncotype DX ilustra como a medicina de precisão contribui para um uso racional das tecnologias em saúde. Afinal, um método que evita a aplicação de um fármaco em mulheres com câncer de mama que não se beneficiariam dele contribui para reservar esses recursos a quem realmente precisa. Algo similar vale para os testes de farmacogenômica, e para aqueles exames que detectam particularidades capazes de serem alvejadas por tratamentos modernos.

“Pedir exames de exoma ou mesmo do genoma completo sem uma justificativa clara muitas vezes não é custo-efetivo”, exemplifica Rizzatti. De acordo com ele, testes menos abrangentes, que avaliam grupos de genes específicos, podem ser recomendados para um grupo maior de pessoas – mas ainda assim uma orientação médica não faz mal.

Até porque, atualmente, existe uma dificuldade de acesso aos recursos modernos usados pela medicina de precisão. Os testes genéticos estão restritos, salvo exceções e ilhas de excelência no SUS, à rede suplementar. 

Durante o evento Fleury Talks do ano passado, Buzaid destacou que o custo dos exames genéticos é relativamente barato, quando comparado aos tratamentos que miram as mutações genéticas. Debater a precificação e, acima de tudo, firmar parcerias e negociações mais maduras com as fabricantes é essencial para garantir o acesso à medicina de precisão.

Representatividade

Neste contexto de acesso, a representatividade também ganha relevância. Os conhecimentos sobre genética partem, claro, dos genomas analisados ao redor do globo. O problema é que há uma desigualdade nesse banco de dados de DNAs avaliados. Em 2019, de todos os genomas completos examinados pela ciência, cerca de 79% tinham ancestralidade predominantemente europeia. Só pouco mais de 1% carregava ancestralidade da América Latina ou hispânica, de acordo com reportagem de VEJA SAÚDE. E, por mais que a maioria do código genético dos seres humanos seja compartilhado, há particularidades que predominam em uma ou outra população. 

Trocando em miúdos, falta representatividade no pool de genomas que é usado para associar essa mutação àquela doença ou àquele tratamento – e isso interfere em parte nos resultados das pesquisas. É possível, em resumo, que um dado exame traga conclusões menos fidedignas para a nossa população, ou que um determinado tratamento seja menos (ou mais) eficaz.

Mas há iniciativas nacionais para atacar esse contexto. Uma delas atende pelo nome de Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão, o Genomas Brasil. O projeto liderado pelo Ministério da Saúde visa, entre outras coisas, sequenciar 100 mil genomas brasileiros, entre pessoas com câncer, problemas cardíacos ou Covid-19. Há previsão de implantar exames e tratamentos com foco em medicina de precisão e ainda incitar a iniciativa privada a produzir os insumos necessários para que o Brasil seja menos dependente de materiais vindos do exterior.

Enquanto projetos como esses lançam suas bases, uma alternativa para acessar a medicina de precisão é participar como voluntário de pesquisas clínicas. Outra razão para fomentar o progresso científico nacional.

As outras “ômicas”

A genômica estuda o genoma de organismos a partir de seu sequenciamento completo. Ocorre que, hoje em dia, campos como a proteômica (que analisa o conjunto de proteínas em uma amostra biológica) e a metabolômica (que investiga os subprodutos do metabolismo) começam a ganhar tração, ao menos como uma perspectiva futura no contexto da medicina de precisão. 

“A genômica tem maior importância na prática clínica atual porque está mais evoluída, em termos de instrumentação, e com mais produtos no mercado. Os custos são menores e os métodos de investigação já estão bem estabelecidos”, pondera Rizzatti. “Mas, biologicamente, as ações acontecem mesmo é no âmbito das proteínas”, completa.

Com isso, o diretor do Grupo Fleury quer dizer que, embora os genes carreguem as instruções para as operações do organismo, são as proteínas que as executam. Se os centros médicos obtiverem a capacidade de analisar todas essas proteínas atuando em conjunto e extrair significado disso, em teoria o potencial dessas “ômicas” pode ser ainda maior. 

Isso porque essas substâncias e metabólitos variam em concentração no organismo de segundo a segundo. Se por um lado isso agrega uma complexidade sem precedentes para analisar uma quantidade incomensurável de dados, por outro ampliaria o poder de predição de doenças e mesmo de tratamentos efetivos, uma vez que agregaria informações ao sistema. A proteômica e a metabolômica ainda carregam a promessa de monitorar variações no comportamento de enfermidades e oferecer predições ajustadas “em tempo real” (ou com intervalos de tempo muito mais curtos do que os da genômica).

Recursos como inteligência artificial são imprescindíveis para vencer essa barreira. “Se tivermos sistemas sensíveis e baratos o suficiente para medir essas proteínas e esses metabólitos, o cenário da medicina de precisão pode mudar completamente”, encerra Mitne-Neto.

Testes genéticos teriam movimentado 14,8 bilhões de dólares no mundo em 2021, e projeta-se uma taxa de crescimento de 10% ao ano.

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Medicina de precisão avança, mas acesso
ainda é barreira

Conceito utiliza tecnologia de ponta para oferecer o melhor cuidado possível para
cada paciente, do tratamento à prevenção

Por Theo Ruprecht

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Garantir o tratamento certo para o paciente certo na dose certa e no momento certo. Em linhas gerais, esse é o conceito que define a medicina de precisão. A partir de novas tecnologias e, principalmente, dos avanços da genômica, o profissional de saúde hoje consegue encontrar especificidades daquele paciente (uma mutação no DNA que promove doença, por exemplo) e oferecer soluções que miram justamente essas especificidades (um medicamento avançado que abafa a ação dessa mutação, ou mesmo a corrige). Em resumo, a medicina de precisão de hoje – se bem empregada – ajuda a antecipar diagnósticos, a determinar particularidades de diferentes condições que direcionam o tratamento, a desenvolver e aplicar fármacos modernos, a aconselhar toda a família quanto a questões de saúde e até a racionalizar o uso de recursos médicos.

A bem da verdade, a premissa de oferecer uma linha de cuidado adaptada para cada paciente diante de suas aflições não é nova – ela reina desde a época de Hipócrates, o Pai da Medicina, na Grécia Antiga. A questão é que faltavam conhecimento e opções terapêuticas para efetivamente customizar a atenção em saúde. Com o avançar dos anos – e principalmente do século 20 em diante, o leque de recursos dos profissionais de saúde, tanto do ponto de vista de diagnóstico como de tratamento, foi se ampliando. 

Ainda assim, há um consenso de que a ideia de medicina de precisão posta em prática hoje tem como “mito fundador” o Projeto Genoma. De 1990 a 2003, um conjunto de pesquisadores de quase 20 países consumiu 3 bilhões de dólares para mapear quase que completamente o genoma de um único ser humano. Foi uma proeza para a ciência, e que abriu as portas para a ideia de que, ao investigar os genes das pessoas, seria possível encontrar causas de doenças, formas de diagnóstico e particularidades que poderiam ser alvejadas com tratamentos.

Mas convenhamos: do ponto de vista médico, seria inviável pedir um exame que demora mais de uma década, ao custo do PIB de um país como Gâmbia, para tornar o cuidado de uma única pessoa mais preciso. Fora que o Projeto Genoma revelou a sopa de letrinhas do DNA, mas não traduziu o que cada uma significava para o funcionamento do corpo.

O início de uma nova era

Essas barreiras começaram a ser contornadas nos anos seguintes. Na segunda metade dos anos 2000, foram desenvolvidos os primeiros Sequenciadores de Nova Geração, equipamentos que aceleraram em milhões de vezes a capacidade de analisar o genoma humano, e a um custo mais aceitável. Sequenciamentos completos do nosso código genético custam em torno de R$ 20 mil reais hoje em dia. Já avaliar “apenas” o exoma (a parte que codifica proteínas e é mais estudada para a identificação de enfermidades) sai por menos, na ordem de R$ 5 mil. Testes que miram genes específicos – ou conjuntos limitados de genes – são ainda mais acessíveis. E os resultados são disponibilizados, dependendo da abrangência e da complexidade da análise, entre um dia e algumas semanas.

“Junto com esse desenvolvimento tecnológico, o conhecimento sobre os genes evoluiu muito nos últimos anos”, garante o biólogo Miguel Mitne-Neto, responsável pela área de genômica do Grupo Fleury. Segundo ele, a sociedade começa a colher os frutos do Projeto Genoma. Veja: uma reportagem da Revista Pesquisa Fapesp revela que, em meados dos anos 1980, apenas 40 alterações de genes haviam sido identificadas como causadoras de doenças monogênicas (que são disparadas pela alteração de um único gene). Em novembro de 2022, esse número subiu para 4 721.

De acordo com o National Institutes of Health, dos Estados Unidos, em 2017 já haviam mais de 50 mil testes genéticos criados para milhares de problemas de saúde. Essa sequência de números chamativos ilustra esse novo cenário, em que a medicina de precisão de fato ganha escala e…precisão.

Tanto que hoje ela vai além: contempla o efeito do ambiente e de certos hábitos nessa pessoa, inclui os familiares no enredo, como por meio do aconselhamento genético, e considera o sistema de saúde como um todo. Aliás, aqui vale um parêntese. Antes, costumávamos ouvir muito o termo medicina personalizada. No entanto, a palavra “personalizada” vem perdendo espaço pela possível interpretação de que a medicina adjetivada por ela se concentraria apenas no indivíduo. Como vemos, medicina de precisão engloba muito mais que o indivíduo. Se aplicada com responsabilidade, pode transformar a saúde ou aprofundar suas desigualdades. 

“A medicina de precisão depende da racionalidade. Usar o recurso apenas porque ele existe onera o sistema de saúde e leva ao acúmulo de informações fúteis e mesmo a danos”, argumenta Edgar Rizzatti, diretor executivo médico, técnico e de B2B do Grupo Fleury. Ora, não faz sentido solicitar um exame quando as evidências mostram que, para aquele perfil de paciente, os resultados não trarão um efeito prático. Curiosamente, aí mora outro grande potencial da medicina de precisão: o de diferenciar o perfil que deve se submeter a uma investigação pormenorizada ou um tratamento de ponta daquele que não teria benefícios.

66% dos norte-americanos nunca haviam ouvido falar de medicina de precisão em 2018.

A oncologia como principal expoente

A oncologia é uma das áreas em que a medicina de precisão mais traz respostas. Hoje, há literalmente centenas de indicações de medicamentos contra o câncer baseados no perfil genético do paciente e da doença. Aliás, cada vez mais a ciência mostra como tumores de pessoas diferentes, ainda que localizados em um mesmo lugar do corpo (mama, intestino, cérebro…), apresentam perfis genéticos distintos, o que traz repercussões diversas.

Antes de tudo, esse conhecimento permite aos pesquisadores desenvolverem medicamentos focados em alterações específicas. Esses fármacos, que vêm se multiplicando nos últimos anos, integram a chamada terapia-alvo, uma estratégia que funciona como um míssil teleguiado. Antes de prescrevê-los, via de regra o oncologista pede um exame que avalia o DNA tumoral a partir de uma biópsia. Se surgir uma alteração passível de ataque por alguma terapia-alvo, o paciente será beneficiado. Em áreas como o câncer de pulmão, o que mais mata no mundo, testes de DNA tumoral ajudam a identificar fármacos específicos, com alta eficácia e efeitos colaterais reduzidos, em cerca de 80% dos casos, segundo afirmou o oncologista Antonio Carlos Buzaid, diretor médico geral de oncologia da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, durante o evento Fleury Talks, no ano passado.

Quando bem indicada, a avaliação do DNA tumoral e outros testes também ajudam a entender o comportamento do câncer (se é mais agressivo e exige intervenções rápidas e intensas, ou se é indolente) e para verificar se outros tratamentos para além da terapia-alvo serão úteis. 

O exame Oncotype DX, por exemplo, averigua diferentes parâmetros biológicos do câncer de mama que antecipam se a quimioterapia trará benefícios. Em um estudo com a participação do Grupo Fleury, pesquisadores submeteram 162 mulheres que teriam indicação para a químio a esse teste. Resultado: 112 foram poupadas do tratamento, porque o exame mostrou que ele não as ajudaria. 

“Não receber um tratamento parece algo ruim. Mas é importante destacar que o exame evitou efeitos colaterais desnecessários, que viriam sem que a paciente recebesse qualquer benefício”, aponta Rizzatti. Além disso, esse tipo de informação pode fazer o médico redesenhar o plano de tratamento. 

A medicina de precisão já está chacoalhando inclusive a forma clássica como se distinguem os cânceres. Atualmente, a população tende a diferenciar os tumores pelo local: fulano teve câncer de mama, sicrano, de colo de útero, e por aí vai. “Mas, hoje, já existe o chamado tratamento agnóstico do câncer”, informa Mitne-Neto. Nesse cenário, o que importa é a presença de certas características moleculares na doença, independentemente de onde esteja no corpo. 

Existe, por exemplo, uma alteração no DNA tumoral conhecida como instabilidade de microssatélite. Se ela pipocar em um câncer, os médicos podem prescrever um imunoterápico – um fármaco que estimula as defesas do próprio organismo a atacar o tumor –, esteja ele no intestino, nos pulmões ou onde for.

Outra inovação que passa pela medicina de precisão é a biópsia líquida, um exame que flagra rastros de DNA tumoral na circulação com uma simples coleta de sangue do paciente. Embora precise evoluir bastante para se tornar uma forma de diagnóstico precoce, o método já ajuda em determinados casos a acompanhar a evolução do câncer sem a necessidade de uma biópsia tradicional, que às vezes envolve cirurgias complexas. “É possível fazer a biópsia líquida de forma recorrente para verificar se o tratamento segue funcionando ao longo do tempo, ou se será necessário realizar ajustes”, conta Mitne-Neto.

Farmacogenômica

A medicina de precisão também chegou ao ponto de, a partir de testes genéticos, definir como o organismo do paciente processará certos medicamentos. “Às vezes uma característica do código genético daquele indivíduo o faz metabolizar certas classes de fármacos muito rapidamente, o que influencia na eficácia e nas reações adversas”, diz Mitne-Neto.

Esse recurso, especialmente utilizado na neuropsiquiatria, auxilia a antever se o paciente deverá receber doses maiores ou menores, se efeitos adversos podem ser intensificados, se a eficácia será a desejada… 

É uma ferramenta muito útil em condições como a depressão, onde cerca de metade dos pacientes não responde bem ao primeiro tratamento ofertado. Contudo, esses testes também já são aplicados para antecipar a resposta do corpo a estatinas (usadas contra o colesterol alto), na cardiologia, na própria oncologia, etc. Até o uso de opioides – remédios eficazes para controlar a dor, mas que tem um risco de dependência – pode ser intermediado por essa avaliação.

A prevenção

A medicina de precisão ainda auxilia a evitar doenças ou ao menos diagnosticá-las cedo. Com base em testes que mensuram uma série de possíveis alterações genéticas, o indivíduo fica sabendo se possui uma suscetibilidade especial a um problema de saúde. A partir daí, é possível fazer um rastreamento mais próximo com outros exames e mesmo adotar tratamentos preventivos. 

Um caso que repercutiu foi o de Angelina Jolie, que descobriu carregar uma mutação no gene BRCA1 por meio de um exame genético. Por causa dessa alteração, o risco de câncer de ovário era de 50%, e o de mama, na faixa dos 80%. Com essas probabilidades, ela decidiu retirar as mamas e o ovário de forma preventiva. 

Lidar com essas probabilidades é, aliás, um desafio à parte para o paciente. Sem orientação, ele pode tirar conclusões precipitadas ou ficar ansioso além da conta. Daí a necessidade do chamado aconselhamento genético. “É uma conversa com o profissional para entender o que o laudo significa e quais os próximos passos a serem tomados, tanto do ponto de vista individual, como familiar”, esclarece Rizzatti. 

A questão da hereditariedade é relevante. Algumas das mutações patogênicas passam de pai para filho. Logo, se o paciente é o primeiro a descobrir essa alteração, a princípio seria bom alertar seus familiares mais próximos para que eles também sejam testados. Se o resultado sair positivo para algum ente querido, ele poderá se preparar, fazer exames frequentes e até refletir sobre o planejamento familiar. Atualmente, há técnicas no ramo da reprodução assistida que selecionam embriões sem as mutações que podem causar doença. 

Por meio da Sommos DNA, o Fleury oferece testes genéticos com diferentes finalidades diretamente para o consumidor, sem necessidade de indicação médica. O cliente pode adquirir exames que rastreiam a suscetibilidade a certas enfermidades ou que flagram doenças raras em recém-nascidos ou até no útero. 

Mas o diferencial é oferecer sempre, junto com o pacote, uma consulta de aconselhamento genético. “O usuário recebe o laudo e já tem a oportunidade de marcar essa consulta. Isso é valioso para tomar decisões inteligentes com base nos resultados encontrados”, ressalta Mitne-Neto. 

O desafio, aqui, é quando pedir os exames. No caso da Angelina Jolie, sua mãe havia morrido de câncer, um fator que justificava a investigação mais detalhada. “Quando bem indicado, o aconselhamento genético salva vidas”, argumenta Rizzatti. 

Já pessoas sem histórico familiar, sintomas ou outros sinais de alerta poderiam, idealmente, conversar com um profissional para checar a validade de fazer esse tipo de exame, ou outro tipo de acompanhamento. É aquela questão da racionalização de recursos que o conceito amplo de medicina de precisão envolve. 

 

Em 2017, o CDC dos Estados Unidos estimou o surgimento de cerca de três novos testes genéticos por semana.

Recursos bem empregados

O caso já citado do exame Oncotype DX ilustra como a medicina de precisão contribui para um uso racional das tecnologias em saúde. Afinal, um método que evita a aplicação de um fármaco em mulheres com câncer de mama que não se beneficiariam dele contribui para reservar esses recursos a quem realmente precisa. Algo similar vale para os testes de farmacogenômica, e para aqueles exames que detectam particularidades capazes de serem alvejadas por tratamentos modernos.

“Pedir exames de exoma ou mesmo do genoma completo sem uma justificativa clara muitas vezes não é custo-efetivo”, exemplifica Rizzatti. De acordo com ele, testes menos abrangentes, que avaliam grupos de genes específicos, podem ser recomendados para um grupo maior de pessoas – mas ainda assim uma orientação médica não faz mal.

Até porque, atualmente, existe uma dificuldade de acesso aos recursos modernos usados pela medicina de precisão. Os testes genéticos estão restritos, salvo exceções e ilhas de excelência no SUS, à rede suplementar. 

Durante o evento Fleury Talks do ano passado, Buzaid destacou que o custo dos exames genéticos é relativamente barato, quando comparado aos tratamentos que miram as mutações genéticas. Debater a precificação e, acima de tudo, firmar parcerias e negociações mais maduras com as fabricantes é essencial para garantir o acesso à medicina de precisão.

Representatividade

Neste contexto de acesso, a representatividade também ganha relevância. Os conhecimentos sobre genética partem, claro, dos genomas analisados ao redor do globo. O problema é que há uma desigualdade nesse banco de dados de DNAs avaliados. Em 2019, de todos os genomas completos examinados pela ciência, cerca de 79% tinham ancestralidade predominantemente europeia. Só pouco mais de 1% carregava ancestralidade da América Latina ou hispânica, de acordo com reportagem de VEJA SAÚDE. E, por mais que a maioria do código genético dos seres humanos seja compartilhado, há particularidades que predominam em uma ou outra população. 

Trocando em miúdos, falta representatividade no pool de genomas que é usado para associar essa mutação àquela doença ou àquele tratamento – e isso interfere em parte nos resultados das pesquisas. É possível, em resumo, que um dado exame traga conclusões menos fidedignas para a nossa população, ou que um determinado tratamento seja menos (ou mais) eficaz.

Mas há iniciativas nacionais para atacar esse contexto. Uma delas atende pelo nome de Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão, o Genomas Brasil. O projeto liderado pelo Ministério da Saúde visa, entre outras coisas, sequenciar 100 mil genomas brasileiros, entre pessoas com câncer, problemas cardíacos ou Covid-19. Há previsão de implantar exames e tratamentos com foco em medicina de precisão e ainda incitar a iniciativa privada a produzir os insumos necessários para que o Brasil seja menos dependente de materiais vindos do exterior.

Enquanto projetos como esses lançam suas bases, uma alternativa para acessar a medicina de precisão é participar como voluntário de pesquisas clínicas. Outra razão para fomentar o progresso científico nacional.

As outras “ômicas”

A genômica estuda o genoma de organismos a partir de seu sequenciamento completo. Ocorre que, hoje em dia, campos como a proteômica (que analisa o conjunto de proteínas em uma amostra biológica) e a metabolômica (que investiga os subprodutos do metabolismo) começam a ganhar tração, ao menos como uma perspectiva futura no contexto da medicina de precisão. 

“A genômica tem maior importância na prática clínica atual porque está mais evoluída, em termos de instrumentação, e com mais produtos no mercado. Os custos são menores e os métodos de investigação já estão bem estabelecidos”, pondera Rizzatti. “Mas, biologicamente, as ações acontecem mesmo é no âmbito das proteínas”, completa.

Com isso, o diretor do Grupo Fleury quer dizer que, embora os genes carreguem as instruções para as operações do organismo, são as proteínas que as executam. Se os centros médicos obtiverem a capacidade de analisar todas essas proteínas atuando em conjunto e extrair significado disso, em teoria o potencial dessas “ômicas” pode ser ainda maior. 

Isso porque essas substâncias e metabólitos variam em concentração no organismo de segundo a segundo. Se por um lado isso agrega uma complexidade sem precedentes para analisar uma quantidade incomensurável de dados, por outro ampliaria o poder de predição de doenças e mesmo de tratamentos efetivos, uma vez que agregaria informações ao sistema. A proteômica e a metabolômica ainda carregam a promessa de monitorar variações no comportamento de enfermidades e oferecer predições ajustadas “em tempo real” (ou com intervalos de tempo muito mais curtos do que os da genômica).

Recursos como inteligência artificial são imprescindíveis para vencer essa barreira. “Se tivermos sistemas sensíveis e baratos o suficiente para medir essas proteínas e esses metabólitos, o cenário da medicina de precisão pode mudar completamente”, encerra Mitne-Neto.

Testes genéticos teriam movimentado 14,8 bilhões de dólares no mundo em 2021, e projeta-se uma taxa de crescimento de 10% ao ano.

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