Consulta pública: o papel e o real impacto dessa ferramenta na saúde

As vantagens, as limitações e os desafios por trás de uma das ferramentas mais discutidas no processo de tomada de decisões do sistema de saúde brasileiro

Por Theo Ruprecht

Uma das definições mais aceitas atualmente para a consulta pública (CP) e a forma que ela se dá no Brasil está descrita na Política Nacional de Participação Social, instituída em 2014 e revogada em 2019. Diz ela:

“Consulta pública: mecanismo participativo a se realizar em prazo definido, de caráter consultivo, aberto a qualquer interessado, que visa a receber contribuições por escrito da sociedade civil sobre determinado assunto, na forma definida no seu ato de convocação”.

Esse instrumento pode ser usado pelo setor público como um apoio para a tomada de decisões sobre os mais diversos assuntos. É, em resumo, um link onde a pessoa manifesta sua opinião e traz informações sobre um tópico levantado pelas autoridades. “Outro dia eu contribuí em uma consulta pública no portal do Senado sobre a nomeação da cidade de Antonina, no Paraná, como capital da bala de banana”, exemplifica Veronica Stasiak Bednarczuk de Oliveira, fundadora e diretora executiva do Unidos pela Vida – Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística.

Mas a verdade é que as CPs têm uma relevância especial na saúde, até por estarem inseridas formalmente em processos de decisão sobre a incorporação de tecnologias no SUS e na rede privada. Esse destaque também vem de documentos que enaltecem a participação social de forma mais ampla na organização dos sistemas de saúde.

Em 1978, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a Declaração de Alma Ata. Nesse documento, a participação social entra como diretriz na elaboração de políticas de saúde. Já em 1986, a Carta de Ottawa ratifica essa necessidade e aponta que um bem-estar físico, social e mental pleno depende também do “empoderamento […] de indivíduos ou grupos a fim de promover a […] responsabilidade dos cidadãos de todos os setores e em todos os contextos”. No Brasil, a Constituição de 1988 coloca a participação social como uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).

Mas a consulta pública como um instrumento mais próximo do que conhecemos hoje foi estruturada em 2011, com o nascimento da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, a Conitec. No ano seguinte, foram realizadas 36 CPs pelo órgão, sempre com o objetivo de fornecer insumos para a inclusão ou não de medicamentos e tecnologias no SUS. E a participação da sociedade é crescente. Em 2014, foram somadas 2.584 contribuições em consultas públicas, segundo artigo publicado na Revista de Saúde Pública. Com a divulgação das CPs em redes sociais, sites e outros locais, esse número saltou para 16.154 em 2017. Em 2021, alcançou 82.447 contribuições.

Atualmente, consultas públicas são realizadas por diferentes órgãos ligados à saúde, mas estão especialmente inseridas nos processos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regulamenta os planos de saúde e os tratamentos cobertos por eles, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da própria Conitec.

Por trás desse instrumento, escondem-se grandes desafios. Vamos entendê-los a partir de trechos da própria definição de consulta pública proposta pela Política Nacional de Participação Social.


Em 2021, foram feitas 82.447 contribuições da sociedade em consultas públicas da Conitec. Em 2014, eram apenas 2.584

Quem participa:  “qualquer interessado”

“A participação social parte do pressuposto que é necessário captar o conhecimento que está disperso na sociedade para construir políticas públicas de qualidade”, explica o advogado sanitarista Tiago Farina Matos, consultor em advocacy. “Dentro desse contexto, as consultas públicas garantem o que chamamos de participação ampliada”, completa.

Isso é diferente, por exemplo, de uma audiência pública, em que alguns atores específicos são chamados para fazer suas manifestações. “Por maior que seja a audiência, há uma limitação de participação. Isso acontece por questão de tempo ou, às vezes, de espaço”, esclarece Veronica, que é Mestranda do Programa de Ciências Farmacêuticas com ênfase em Avaliação de Tecnologias de Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Já em uma consulta pública, qualquer indivíduo ou grupo pode participar – embora cada órgão tenha suas particularidades. Na teoria, isso ajuda a trazer diferentes vozes para o processo, o que é especialmente importante em um país desigual e de dimensões continentais. Pacientes de uma região isolada do país podem salientar a importância de um tratamento que dispensa idas a centros de referência. Pesquisadores conseguem munir as autoridades com evidências que não passaram pelo radar inicial; profissionais de saúde trazem a experiência do cuidado.

No entanto, há um debate extenso sobre a qualidade e o aproveitamento das contribuições. De um lado, existe uma prática de “copia e cola”, em que pessoas pegam um mesmo texto e o submetem na consulta para inflar o número de participantes.

“A consulta pública deveria ser focada em trazer mais qualidade e mais ideias para o processo. Mas é importante ressaltar que as falas de membros de muitos órgãos públicos destacam o número de contribuições de uma forma ou de outra”, pondera Farina. Na Conitec, a própria convocação de uma audiência pública – decisão que, a rigor, fica a critério do secretário de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos – pode ser feita a partir da “comoção social”.

Ou seja, se os avaliadores de uma consulta pública desejam eliminar repetições ou contribuições que acrescentam pouco ao processo, não deveriam dar tanto peso para a quantidade de formulários preenchidos. “Por outro lado, não dá para negar que a quantidade de contribuições é um termômetro de como a sociedade enxerga essa questão”, analisa Farina.

Há impacto?

Independentemente disso, uma contribuição com posicionamentos embasados e aprofundados de fato agrega mais ao processo decisório. Em 2020, foram feitas duas consultas públicas na Conitec voltadas para a incorporação no SUS de novos tratamentos contra a fibrose cística – uma doença genética que afeta principalmente os pulmões, o pâncreas e o sistema digestivo. Veronica, que recebeu o diagnóstico dessa doença aos 23 anos de idade, sabia que isso aconteceria de antemão. Ela então mobilizou a Unidos Pela Vida, ONG que dirige, para gerar conteúdos e educar diferentes atores envolvidos com essa condição sobre a necessidade de se posicionarem nas CPs. “Nós realmente trabalhamos para qualificar o debate. Ficamos um ano falando disso”, recorda-se.

Sociedades médicas que lidam com a fibrose cística foram sensibilizadas a trazer evidências científicas. Associações de pacientes receberam orientações para dar detalhes nos relatos – principalmente nos de pessoas que já faziam uso das medicações em debate. A Unidos Pela Vida convidou a própria Conitec para, em um evento, explicar linha por linha o formulário de preenchimento.

Quando as consultas públicas foram abertas, o relatório preliminar da Conitec (falaremos mais adiante disso) veio com uma recomendação de não incorporar as medicações. Mas diante das contribuições qualificadas estimuladas pela Unidos Pela Vida, em um dos casos essa recomendação foi revertida no relatório final, elaborado após o fechamento da consulta pública. E cabe salientar que uma pesquisa da Fundação João Pinheiro aponta que, de 2012 a 2019, só 4% das recomendações iniciais foram revistas após o processo de consulta pública. “Foi uma conquista considerável”, reitera Veronica.

Ainda assim, o dado sugere que essa ferramenta de participação social não tem, na prática, exercido muita influência. Se de cada 100 relatórios preliminares emitidos, apenas quatro são alterados significativamente após uma CP, é sinal de que ela não tem contribuído tanto para o papel decisório.

Em um estudo, Veronica analisou especificamente como avaliadores da Conitec analisam as contribuições focadas em experiências pessoais e opiniões. Ela se concentrou nas duas consultas públicas já mencionadas – e em mais uma sobre fibrose cística de 2022. “Só nas CPs de 2020, tivemos cerca de 10 mil contribuições do tipo em cada”, enumera.

Diante de tantas manifestações, em duas das três consultas públicas os avaliadores optaram por consolidar esses relatos em uma simples nuvem de palavras no relatório final. “Histórias de vida potentes, que acrescentavam ao processo, foram reduzidas a um aglomerado de palavras e expressões”, lamenta Veronica. Os resultados dessa pesquisa foram apresentados em congressos e em uma mesa-redonda da Sociedade Internacional de Economia da Saúde e Pesquisa de Desfechos (a Ispor, na sigla em inglês).

É claro que relatos pessoais não configuram o mais alto grau de evidência científica. Ainda assim, eles podem trazer elementos desconsiderados em uma análise puramente técnica. “Principalmente em doenças raras, é difícil mensurar o ganho com a incorporação de certas tecnologias. O que significa qualidade de vida, por exemplo? E como eu meço essa variável para agradar os órgãos decisores?”, questiona Gustavo San Martin, diretor geral das ONGs Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e Crônicos do Dia a Dia (CDD). “A importância de ganhar mais autonomia e poder voltar a tomar banho sozinho é algo que só a voz de um paciente consegue trazer. As discussões são técnicas, mas possuem implicações sociais”, complementa.

Segundo os entrevistados desta reportagem, os avaliadores tendem a subvalorizar esse tipo de contribuição. Uma das justificativas seria a de que não é possível ler em detalhes todas as experiências de vida apresentadas nas CPs. Mas, de acordo com Veronica, hoje em dia existem softwares capazes de destrinchar as contribuições para agilizar parte do processo e permitir que o avaliador contemple esses olhares diferentes.

Outro ponto importante é que, se os órgãos desejam contribuições mais assertivas, também é necessário que façam as perguntas certas. É isso que abordaremos a seguir.

 


Apenas 4% das recomendações de relatórios preliminares da Conitec foram revistos após o processo de consulta pública entre 2012 a 2019

Não é um formulário aberto

O instrumento da consulta pública não consiste em um formulário aberto para os interessados abordarem o tema de sua preferência. São os órgãos públicos que abrem consultas a partir de necessidades específicas. Há instituições e casos em que as consultas públicas são realizadas a critério do gestor. Em outras, foi criado todo um arcabouço legal que obriga a realização da CP (a incorporação de medicamentos no SUS ou na saúde suplementar, via ANS, são exemplos disso).

Além disso, em geral há um relatório, uma minuta ou outro documento sobre o qual se manifestar. Esses materiais, criados por técnicos dos órgãos públicos, detalham o que está em jogo, quais os principais pontos analisados etc.

Ainda assim, frequentemente os participantes de uma consulta pública não sabem exatamente o que o avaliador mais deseja deles. São relatos pessoais? Estudos científicos? Avaliações de custo-efetividade? “O gestor deve ser transparente e reconhecer o que deseja. Quando ele não revela claramente o que espera da sociedade, a sociedade faz o que acha melhor”, argumenta Farina.

De acordo com ele, seria possível mostrar para a sociedade quais pontos já estão mais consolidados e quais de fato ainda levantam dúvidas no processo decisório. A partir daí, as pessoas e os grupos que participarem da CP conseguiriam se concentrar nessas questões nevrálgicas – e também, se for o caso, problematizar o motivo pelo qual certas convicções foram formadas de antemão.

“Faltam critérios para a tomada de decisão. A metodologia muda de avaliação para avaliação, de reunião para reunião”, afirma San Martin. Ele, no entanto, pede para não confundir “critérios” com “padrões”, que homogeneizam um universo tão complexo quanto o da saúde. “O que vai ser considerado quando pensamos em uma doença rara deve ser diferente do que será avaliado em condições prevalentes. Mas ambas as situações pedem critérios claros”, acrescenta.

Recentemente, a Conitec realizou a Consulta Pública 41, sobre os limiares de custo-efetividade – tema controverso que foi detalhado em uma reportagem em Futuro da Saúde. Farina vê nesse caso um exemplo positivo de consulta pública: “A adoção de critérios claros para a inclusão de novas tecnologias no SUS era uma demanda de diferentes atores. Com a abertura da consulta pública, a Conitec obrigou todos a estudarem e pensarem sobre o assunto”. De acordo com ele, há uma riqueza de informações vindas dessa CP – resta ver agora o que sairá dela.

Caráter consultivo

As consultas públicas não são uma votação. Mesmo se a maioria das contribuições apontar para o caminho X, o gestor pode seguir pelo Y, ou acatar apenas parte do que foi sugerido.

Ainda assim, há casos em que a função da consulta acaba sendo desviada. É comum, por exemplo, que ela seja empregada como uma forma de negociar preços mais baixos das tecnologias junto às empresas, principalmente na Conitec.

Exemplo fictício: o órgão emite um parecer preliminar desfavorável à incorporação de um medicamento alegando, entre outras coisas, um preço alto em relação ao benefício obtido – e abre a consulta pública. Aí, enquanto ela está correndo, a farmacêutica que produz esse remédio faz sua contribuição e aponta a possibilidade de um desconto. No relatório final, esse novo valor é considerado e, aí, o produto é aprovado para o SUS.

“A negociação é um processo fundamental para a boa gestão. Mas talvez seja o caso de criar um momento específico para isso, porque ela pode desvirtuar a consulta pública”, opina Farina. Ou seja, inúmeras pessoas e organizações gastam seu tempo fazendo contribuições quando, na realidade, o fator que interessava ao gestor era uma redução de preço, fator que depende apenas da empresa.

Indicação de que esse uso das consultas públicas é comum na Conitec está naquele mesmo estudo da Fundação João Pinheiro. Entre as poucas recomendações iniciais revistas, metade decorreu de “novas propostas de preço para os medicamentos avaliados”.

Elizabeth de Carvalhaes, presidente da Interfarma (entidade que representa farmacêuticas no Brasil) afirmou por e-mail que “é possível reverter pareceres dos relatórios preliminares a partir do momento em que a sociedade conta com este espaço para validar seus interesses. Para as farmacêuticas, trata-se de um espaço importante para contribuir com as pautas relacionadas a novos medicamentos e tecnologias de saúde.” Ela também destaca que o esse instrumento – assim como outros de participação social – contribuem para a transparência das decisões do setor público.

Metade das mudanças em pareceres preliminares na Conitec acontecem por causa de novas propostas de preço dos medicamentos, que são propostas pelas empresas

Uma entre muitas

A consulta pública não é a única forma de a sociedade contribuir com decisões do governo. Audiências, testemunhos, conselhos nacionais, cadeiras com poder de voto em instituições como a própria Conitec… Há diferentes pontos de contato entre a administração pública e a sociedade.

“Devemos fortalecer cada uma, inclusive mostrando para a população sua importância”, aponta San Martin. Esse é um dos braços do movimento A Regra É Clara, que ele coordena por meio das ONGs AME e CDD. “Nós olhamos para o sistema de saúde e tentamos aprimorar processos, entre eles os de participação social”, completa.

Foi por meio dessa iniciativa – e de pedidos feitos através da Lei de Acesso à Informação (LAI) – que San Martin descobriu que a convocação de audiências públicas feita pela Conitec não segue um critério claro para além de “comoção social”.  “O que define comoção social? Às vezes dez pessoas fazem mais barulho que um milhão. E, às vezes, uma questão que não gera comoção social é importante para a saúde pública e demanda uma audiência pública”, pondera. De acordo com ele, essa ferramenta também deve ser empregada de forma equânime, até porque teria um potencial maior de gerar mudança de rumos, uma vez que coloca o gestor frente a frente com os atores da sociedade.

Mesmo depois de tomada uma decisão, a participação social deve seguir. Atualmente, um decreto institui que, uma vez que a incorporação de uma tecnologia é publicada no Diário Oficial da União, o SUS deve disponibilizá-la ao público em até 180 dias. Mas em um relatório de 2021, a Controladoria Geral da União (CGU) estudou o caso de 25 medicamentos e constatou que nenhum foi disponibilizado no prazo previsto. A média de prazo ficou em 624 dias, um tempo 3,5 vezes maior do que estabelecido no decreto.

“Não podemos cantar vitória depois de uma aprovação ou incorporação. A fiscalização é contínua”, diz Veronica. “A consulta pública é uma entre muitas ferramentas de participação social. Todas exigem uma autocrítica, tanto dos gestores, quanto da sociedade”, conclui.

O tempo médio entre a publicação no Diário Oficial da incorporação de uma tecnologia no SUS e a sua efetiva disponibilização é de 624 dias, segundo relatório da CGU

Gostou do que acabou de ler?

Com o fim da emergência em saúde, telessaúde aguardava regulamentação definitiva.

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Consulta pública: o papel e o real impacto dessa ferramenta na saúde

As vantagens, as limitações e os desafios por trás de uma das ferramentas mais discutidas no processo de tomada de decisões do sistema de saúde brasileiro

Por Theo Ruprecht

Uma das definições mais aceitas atualmente para a consulta pública (CP) e a forma que ela se dá no Brasil está descrita na Política Nacional de Participação Social, instituída em 2014 e revogada em 2019. Diz ela:

“Consulta pública: mecanismo participativo a se realizar em prazo definido, de caráter consultivo, aberto a qualquer interessado, que visa a receber contribuições por escrito da sociedade civil sobre determinado assunto, na forma definida no seu ato de convocação”.

Esse instrumento pode ser usado pelo setor público como um apoio para a tomada de decisões sobre os mais diversos assuntos. É, em resumo, um link onde a pessoa manifesta sua opinião e traz informações sobre um tópico levantado pelas autoridades. “Outro dia eu contribuí em uma consulta pública no portal do Senado sobre a nomeação da cidade de Antonina, no Paraná, como capital da bala de banana”, exemplifica Veronica Stasiak Bednarczuk de Oliveira, fundadora e diretora executiva do Unidos pela Vida – Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística.

Mas a verdade é que as CPs têm uma relevância especial na saúde, até por estarem inseridas formalmente em processos de decisão sobre a incorporação de tecnologias no SUS e na rede privada. Esse destaque também vem de documentos que enaltecem a participação social de forma mais ampla na organização dos sistemas de saúde.

Em 1978, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a Declaração de Alma Ata. Nesse documento, a participação social entra como diretriz na elaboração de políticas de saúde. Já em 1986, a Carta de Ottawa ratifica essa necessidade e aponta que um bem-estar físico, social e mental pleno depende também do “empoderamento […] de indivíduos ou grupos a fim de promover a […] responsabilidade dos cidadãos de todos os setores e em todos os contextos”. No Brasil, a Constituição de 1988 coloca a participação social como uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).

Mas a consulta pública como um instrumento mais próximo do que conhecemos hoje foi estruturada em 2011, com o nascimento da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, a Conitec. No ano seguinte, foram realizadas 36 CPs pelo órgão, sempre com o objetivo de fornecer insumos para a inclusão ou não de medicamentos e tecnologias no SUS. E a participação da sociedade é crescente. Em 2014, foram somadas 2.584 contribuições em consultas públicas, segundo artigo publicado na Revista de Saúde Pública. Com a divulgação das CPs em redes sociais, sites e outros locais, esse número saltou para 16.154 em 2017. Em 2021, alcançou 82.447 contribuições.

Atualmente, consultas públicas são realizadas por diferentes órgãos ligados à saúde, mas estão especialmente inseridas nos processos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regulamenta os planos de saúde e os tratamentos cobertos por eles, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da própria Conitec.

Por trás desse instrumento, escondem-se grandes desafios. Vamos entendê-los a partir de trechos da própria definição de consulta pública proposta pela Política Nacional de Participação Social.


Em 2021, foram feitas 82.447 contribuições da sociedade em consultas públicas da Conitec. Em 2014, eram apenas 2.584

Quem participa:  “qualquer interessado”

“A participação social parte do pressuposto que é necessário captar o conhecimento que está disperso na sociedade para construir políticas públicas de qualidade”, explica o advogado sanitarista Tiago Farina Matos, consultor em advocacy. “Dentro desse contexto, as consultas públicas garantem o que chamamos de participação ampliada”, completa.

Isso é diferente, por exemplo, de uma audiência pública, em que alguns atores específicos são chamados para fazer suas manifestações. “Por maior que seja a audiência, há uma limitação de participação. Isso acontece por questão de tempo ou, às vezes, de espaço”, esclarece Veronica, que é Mestranda do Programa de Ciências Farmacêuticas com ênfase em Avaliação de Tecnologias de Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Já em uma consulta pública, qualquer indivíduo ou grupo pode participar – embora cada órgão tenha suas particularidades. Na teoria, isso ajuda a trazer diferentes vozes para o processo, o que é especialmente importante em um país desigual e de dimensões continentais. Pacientes de uma região isolada do país podem salientar a importância de um tratamento que dispensa idas a centros de referência. Pesquisadores conseguem munir as autoridades com evidências que não passaram pelo radar inicial; profissionais de saúde trazem a experiência do cuidado.

No entanto, há um debate extenso sobre a qualidade e o aproveitamento das contribuições. De um lado, existe uma prática de “copia e cola”, em que pessoas pegam um mesmo texto e o submetem na consulta para inflar o número de participantes.

“A consulta pública deveria ser focada em trazer mais qualidade e mais ideias para o processo. Mas é importante ressaltar que as falas de membros de muitos órgãos públicos destacam o número de contribuições de uma forma ou de outra”, pondera Farina. Na Conitec, a própria convocação de uma audiência pública – decisão que, a rigor, fica a critério do secretário de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos – pode ser feita a partir da “comoção social”.

Ou seja, se os avaliadores de uma consulta pública desejam eliminar repetições ou contribuições que acrescentam pouco ao processo, não deveriam dar tanto peso para a quantidade de formulários preenchidos. “Por outro lado, não dá para negar que a quantidade de contribuições é um termômetro de como a sociedade enxerga essa questão”, analisa Farina.

Há impacto?

Independentemente disso, uma contribuição com posicionamentos embasados e aprofundados de fato agrega mais ao processo decisório. Em 2020, foram feitas duas consultas públicas na Conitec voltadas para a incorporação no SUS de novos tratamentos contra a fibrose cística – uma doença genética que afeta principalmente os pulmões, o pâncreas e o sistema digestivo. Veronica, que recebeu o diagnóstico dessa doença aos 23 anos de idade, sabia que isso aconteceria de antemão. Ela então mobilizou a Unidos Pela Vida, ONG que dirige, para gerar conteúdos e educar diferentes atores envolvidos com essa condição sobre a necessidade de se posicionarem nas CPs. “Nós realmente trabalhamos para qualificar o debate. Ficamos um ano falando disso”, recorda-se.

Sociedades médicas que lidam com a fibrose cística foram sensibilizadas a trazer evidências científicas. Associações de pacientes receberam orientações para dar detalhes nos relatos – principalmente nos de pessoas que já faziam uso das medicações em debate. A Unidos Pela Vida convidou a própria Conitec para, em um evento, explicar linha por linha o formulário de preenchimento.

Quando as consultas públicas foram abertas, o relatório preliminar da Conitec (falaremos mais adiante disso) veio com uma recomendação de não incorporar as medicações. Mas diante das contribuições qualificadas estimuladas pela Unidos Pela Vida, em um dos casos essa recomendação foi revertida no relatório final, elaborado após o fechamento da consulta pública. E cabe salientar que uma pesquisa da Fundação João Pinheiro aponta que, de 2012 a 2019, só 4% das recomendações iniciais foram revistas após o processo de consulta pública. “Foi uma conquista considerável”, reitera Veronica.

Ainda assim, o dado sugere que essa ferramenta de participação social não tem, na prática, exercido muita influência. Se de cada 100 relatórios preliminares emitidos, apenas quatro são alterados significativamente após uma CP, é sinal de que ela não tem contribuído tanto para o papel decisório.

Em um estudo, Veronica analisou especificamente como avaliadores da Conitec analisam as contribuições focadas em experiências pessoais e opiniões. Ela se concentrou nas duas consultas públicas já mencionadas – e em mais uma sobre fibrose cística de 2022. “Só nas CPs de 2020, tivemos cerca de 10 mil contribuições do tipo em cada”, enumera.

Diante de tantas manifestações, em duas das três consultas públicas os avaliadores optaram por consolidar esses relatos em uma simples nuvem de palavras no relatório final. “Histórias de vida potentes, que acrescentavam ao processo, foram reduzidas a um aglomerado de palavras e expressões”, lamenta Veronica. Os resultados dessa pesquisa foram apresentados em congressos e em uma mesa-redonda da Sociedade Internacional de Economia da Saúde e Pesquisa de Desfechos (a Ispor, na sigla em inglês).

É claro que relatos pessoais não configuram o mais alto grau de evidência científica. Ainda assim, eles podem trazer elementos desconsiderados em uma análise puramente técnica. “Principalmente em doenças raras, é difícil mensurar o ganho com a incorporação de certas tecnologias. O que significa qualidade de vida, por exemplo? E como eu meço essa variável para agradar os órgãos decisores?”, questiona Gustavo San Martin, diretor geral das ONGs Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e Crônicos do Dia a Dia (CDD). “A importância de ganhar mais autonomia e poder voltar a tomar banho sozinho é algo que só a voz de um paciente consegue trazer. As discussões são técnicas, mas possuem implicações sociais”, complementa.

Segundo os entrevistados desta reportagem, os avaliadores tendem a subvalorizar esse tipo de contribuição. Uma das justificativas seria a de que não é possível ler em detalhes todas as experiências de vida apresentadas nas CPs. Mas, de acordo com Veronica, hoje em dia existem softwares capazes de destrinchar as contribuições para agilizar parte do processo e permitir que o avaliador contemple esses olhares diferentes.

Outro ponto importante é que, se os órgãos desejam contribuições mais assertivas, também é necessário que façam as perguntas certas. É isso que abordaremos a seguir.

 


Apenas 4% das recomendações de relatórios preliminares da Conitec foram revistos após o processo de consulta pública entre 2012 a 2019

Não é um formulário aberto

O instrumento da consulta pública não consiste em um formulário aberto para os interessados abordarem o tema de sua preferência. São os órgãos públicos que abrem consultas a partir de necessidades específicas. Há instituições e casos em que as consultas públicas são realizadas a critério do gestor. Em outras, foi criado todo um arcabouço legal que obriga a realização da CP (a incorporação de medicamentos no SUS ou na saúde suplementar, via ANS, são exemplos disso).

Além disso, em geral há um relatório, uma minuta ou outro documento sobre o qual se manifestar. Esses materiais, criados por técnicos dos órgãos públicos, detalham o que está em jogo, quais os principais pontos analisados etc.

Ainda assim, frequentemente os participantes de uma consulta pública não sabem exatamente o que o avaliador mais deseja deles. São relatos pessoais? Estudos científicos? Avaliações de custo-efetividade? “O gestor deve ser transparente e reconhecer o que deseja. Quando ele não revela claramente o que espera da sociedade, a sociedade faz o que acha melhor”, argumenta Farina.

De acordo com ele, seria possível mostrar para a sociedade quais pontos já estão mais consolidados e quais de fato ainda levantam dúvidas no processo decisório. A partir daí, as pessoas e os grupos que participarem da CP conseguiriam se concentrar nessas questões nevrálgicas – e também, se for o caso, problematizar o motivo pelo qual certas convicções foram formadas de antemão.

“Faltam critérios para a tomada de decisão. A metodologia muda de avaliação para avaliação, de reunião para reunião”, afirma San Martin. Ele, no entanto, pede para não confundir “critérios” com “padrões”, que homogeneizam um universo tão complexo quanto o da saúde. “O que vai ser considerado quando pensamos em uma doença rara deve ser diferente do que será avaliado em condições prevalentes. Mas ambas as situações pedem critérios claros”, acrescenta.

Recentemente, a Conitec realizou a Consulta Pública 41, sobre os limiares de custo-efetividade – tema controverso que foi detalhado em uma reportagem em Futuro da Saúde. Farina vê nesse caso um exemplo positivo de consulta pública: “A adoção de critérios claros para a inclusão de novas tecnologias no SUS era uma demanda de diferentes atores. Com a abertura da consulta pública, a Conitec obrigou todos a estudarem e pensarem sobre o assunto”. De acordo com ele, há uma riqueza de informações vindas dessa CP – resta ver agora o que sairá dela.

Caráter consultivo

As consultas públicas não são uma votação. Mesmo se a maioria das contribuições apontar para o caminho X, o gestor pode seguir pelo Y, ou acatar apenas parte do que foi sugerido.

Ainda assim, há casos em que a função da consulta acaba sendo desviada. É comum, por exemplo, que ela seja empregada como uma forma de negociar preços mais baixos das tecnologias junto às empresas, principalmente na Conitec.

Exemplo fictício: o órgão emite um parecer preliminar desfavorável à incorporação de um medicamento alegando, entre outras coisas, um preço alto em relação ao benefício obtido – e abre a consulta pública. Aí, enquanto ela está correndo, a farmacêutica que produz esse remédio faz sua contribuição e aponta a possibilidade de um desconto. No relatório final, esse novo valor é considerado e, aí, o produto é aprovado para o SUS.

“A negociação é um processo fundamental para a boa gestão. Mas talvez seja o caso de criar um momento específico para isso, porque ela pode desvirtuar a consulta pública”, opina Farina. Ou seja, inúmeras pessoas e organizações gastam seu tempo fazendo contribuições quando, na realidade, o fator que interessava ao gestor era uma redução de preço, fator que depende apenas da empresa.

Indicação de que esse uso das consultas públicas é comum na Conitec está naquele mesmo estudo da Fundação João Pinheiro. Entre as poucas recomendações iniciais revistas, metade decorreu de “novas propostas de preço para os medicamentos avaliados”.

Elizabeth de Carvalhaes, presidente da Interfarma (entidade que representa farmacêuticas no Brasil) afirmou por e-mail que “é possível reverter pareceres dos relatórios preliminares a partir do momento em que a sociedade conta com este espaço para validar seus interesses. Para as farmacêuticas, trata-se de um espaço importante para contribuir com as pautas relacionadas a novos medicamentos e tecnologias de saúde.” Ela também destaca que o esse instrumento – assim como outros de participação social – contribuem para a transparência das decisões do setor público.

Metade das mudanças em pareceres preliminares na Conitec acontecem por causa de novas propostas de preço dos medicamentos, que são propostas pelas empresas

Uma entre muitas

A consulta pública não é a única forma de a sociedade contribuir com decisões do governo. Audiências, testemunhos, conselhos nacionais, cadeiras com poder de voto em instituições como a própria Conitec… Há diferentes pontos de contato entre a administração pública e a sociedade.

“Devemos fortalecer cada uma, inclusive mostrando para a população sua importância”, aponta San Martin. Esse é um dos braços do movimento A Regra É Clara, que ele coordena por meio das ONGs AME e CDD. “Nós olhamos para o sistema de saúde e tentamos aprimorar processos, entre eles os de participação social”, completa.

Foi por meio dessa iniciativa – e de pedidos feitos através da Lei de Acesso à Informação (LAI) – que San Martin descobriu que a convocação de audiências públicas feita pela Conitec não segue um critério claro para além de “comoção social”.  “O que define comoção social? Às vezes dez pessoas fazem mais barulho que um milhão. E, às vezes, uma questão que não gera comoção social é importante para a saúde pública e demanda uma audiência pública”, pondera. De acordo com ele, essa ferramenta também deve ser empregada de forma equânime, até porque teria um potencial maior de gerar mudança de rumos, uma vez que coloca o gestor frente a frente com os atores da sociedade.

Mesmo depois de tomada uma decisão, a participação social deve seguir. Atualmente, um decreto institui que, uma vez que a incorporação de uma tecnologia é publicada no Diário Oficial da União, o SUS deve disponibilizá-la ao público em até 180 dias. Mas em um relatório de 2021, a Controladoria Geral da União (CGU) estudou o caso de 25 medicamentos e constatou que nenhum foi disponibilizado no prazo previsto. A média de prazo ficou em 624 dias, um tempo 3,5 vezes maior do que estabelecido no decreto.

“Não podemos cantar vitória depois de uma aprovação ou incorporação. A fiscalização é contínua”, diz Veronica. “A consulta pública é uma entre muitas ferramentas de participação social. Todas exigem uma autocrítica, tanto dos gestores, quanto da sociedade”, conclui.

O tempo médio entre a publicação no Diário Oficial da incorporação de uma tecnologia no SUS e a sua efetiva disponibilização é de 624 dias, segundo relatório da CGU

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