Falta de um tratado internacional de enfrentamento a pandemias expõe impasse para resposta à crise sanitária global mais eficiente

Falta de um tratado internacional de enfrentamento a pandemias expõe impasse para resposta à crise sanitária global mais eficiente

Receios sobre novas medidas de contenção cresceram significativamente em agosto de 2024, após a OMS declarar a Mpox como uma emergência de saúde pública de interesse internacional

By Published On: 30/10/2024
Falta de um tratado internacional de enfrentamento a novas pandemias impõe impasse para resposta à crise sanitária global mais eficiente

Foto: Pixabay

Somente este ano, notícias sobre novos vírus têm ganhado destaque na mídia. Um dos mais recentes é o surto da doença causada pelo vírus Marburg, uma febre hemorrágica com alta taxa de mortalidade, identificada em Ruanda, no centro-leste da África. Com uma mortalidade de até 88%, a doença preocupa autoridades, especialmente pela falta de vacinas ou tratamentos antivirais aprovados. Embora diversos fármacos estejam em fase de testes, os novos casos aumentam a atenção das autoridades de saúde. Em 14 de agosto, houve a declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS), que classificou a Mpox como uma emergência de saúde pública de preocupação internacional. O aumento de doenças infecciosas levantou questionamentos sobre a capacidade dos países em enfrentar futuras pandemias. Neste ano, esforços foram feitos para criar um tratado para novas pandemias para evitar erros semelhantes aos da Covid-19. Contudo, o acordo da OMS enfrenta desafios significativos, com países divergindo sobre a forma de avançar. Entre os principais obstáculos estão questões de acesso à propriedade intelectual, tecnologia, know-how e a distribuição equitativa de terapias e vacinas.

“Continuamos com a dificuldade de ter a vacina distribuída nos países mais pobres”, analisa Alberto Chebabo, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “O surto acontece na África porque ela é esquecida; então, a maior parte das empresas e dos países não têm interesse em resolver a situação lá. No entanto, isso acaba, obviamente, saindo da África e indo para outros continentes, inclusive para os países desenvolvidos. Não teremos um mundo mais saudável enquanto não houver equidade na área de saúde.”

Ele explicou que o Brasil, como país de desenvolvimento intermediário – nem rico nem pobre – tem algumas vantagens em relação, por exemplo, à África, mas muitas desvantagens em comparação com os países do hemisfério Norte, os países ricos. 

Apesar disso, a colaboração internacional para enfrentar futuras pandemias é considerada essencial por especialistas. Um artigo publicado na revista “Journal of Infection and Public Health” chama a atenção para a gestão de pandemias que deve ocorrer em múltiplos níveis, enfatizando a importância de uma liderança eficaz, comunicação clara e coordenação adequada entre medidas, dados e planos: “A OMS recomenda e descreve abordagens médicas e de emergências de saúde pública durante pandemias. Entretanto, essas recomendações precisam ser implementadas por cada nação por meio de seus níveis estratégico, tático e operacional. A estrutura organizacional, as abordagens e as prioridades de cada nação podem diferir fortemente, resultando em grandes dificuldades na sincronização de uma abordagem multinacional”, sinaliza o artigo.

Embora a preparação para futuras pandemias tenha ganhado destaque após a OMS classificar a Mpox como uma emergência de saúde pública de preocupação internacional – um anúncio considerado preciso pelos especialistas ouvidos pela reportagem – é necessário ir além das ações da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da OMS para que haja equidade e solidariedade em ações concretas para enfrentar futuras pandemias. 

“Os patógenos não respeitam fronteiras geográficas e a cooperação internacional é fundamental para a prevenção e o controle de potenciais pandemias”, afirma Luis Eugenio Portela, coordenador do Comitê de Relações Internacionais da Abrasco, ex-presidente da Federação Mundial das Associações de Saúde Pública. Ele ressalta que o ‘nacionalismo’ sanitário permanece forte, como evidenciado pela aquisição, por países ricos, da maior parte das vacinas contra a influenza H5N1, que está afetando aves e bovinos nos Estados Unidos: “O maior desafio para prevenir e enfrentar pandemias é distribuir de modo equitativo a riqueza socialmente produzida”.

Articulação dos países para enfrentamento de novas pandemias

O que deixa o cenário em alerta, é que após dois anos de negociações, o Órgão Intergovernamental de Negociação (INB) da OMS ainda não conseguiu alcançar um consenso para apresentar um acordo sobre pandemias à Assembleia Mundial da Saúde deste ano. A principal disputa gira em torno do sistema de Acesso a Patógenos e Repartição de Benefícios (PABS). A proposta discutida prevê que todos os países compartilhem patógenos identificados como possíveis causadores de pandemias e também tecnologias de prevenção ou tratamento. 

No entanto, o coordenador do Comitê de Relações Internacionais da Abrasco, aponta que países ricos obstruíram o acordo ao recusarem a repartição dos benefícios, ou seja, o compartilhamento de tecnologias derivadas da pesquisa sobre novos patógeno: “A OMS e seus países membros, no melhor interesse de todos os países do mundo, deveriam estar investindo mais no apoio aos países que são hoje focos da doença. Contudo, são conhecidas as limitações financeiras da OMS e a insuficiência do apoio dos países ricos, impedindo uma atuação internacional mais vigorosa nas regiões acometidas pela Mpox”, esclarece. Em sua opinião, as ajudas que os EUA e a União Europeia estão oferecendo são consideradas ‘gotas no oceano’.

Opinião compartilhada por Mellanie Fontes-Dutra, biomédica, professora da escola de saúde da Unisinos, pesquisadora e divulgadora científica, membro da rede Todos Pelas Vacinas. Para ela, é preciso engajar países, especialmente aqueles com recursos limitados, na preparação e prevenção de pandemias: “Ampliar redes de colaboração internacionais e o compartilhamento rápido de informações sobre patógenos é imprescindível para respostas mais assertivas daqui em diante”, aponta.

Por isso defende tornar visíveis os problemas dessas regiões para evitar que suas doenças sejam negligenciadas, para garantir que soluções cheguem até elas. Segundo ela, isso inclui fornecer acesso e doação de medicamentos e vacinas, apoiar tecnologias que aumentem a produção local e capacitar profissionais de saúde em prevenção e diagnóstico: “Não podemos esperar que essas áreas se engajem sem o devido suporte em recursos”, sinaliza.

Desde 2022, surtos globais de Mpox têm sido registrados, com o vírus se espalhando por 116 países, principalmente do clado IIb, responsável pela disseminação mundial. Recentemente, um novo clado, o clado I, surgiu, afetando a República Democrática do Congo e outros países africanos como Burundi, Quênia, Ruanda e Uganda, além de ter sido detectado na Suécia e na Tailândia. Países como China e Tailândia estão reforçando medidas de controle, especialmente em portos, aeroportos e outros pontos de entrada, para conter a disseminação do vírus.

Diante do clado Ib, que pode estar associado a uma maior transmissibilidade, a biomédica destaca que ainda faltam dados para determinar se essa variante apresenta um risco elevado de causar formas mais graves da doença. A rápida disseminação em países vizinhos à República Democrática do Congo, que enfrentam condições precárias de acesso à saúde e têm pouca ou nenhuma disponibilidade de imunizantes e medicamentos, é motivo de preocupação. “Por isso, é tão importante haver uma coordenação global para auxiliar as regiões mais afetadas por este surto, mitigando os impactos nessas populações e reduzindo o risco de dispersão para outras localidades, dentro e fora do continente africano”, ressalta.

O Brasil está preparado para novas pandemias?

“A decretação de emergência pela OMS serve principalmente como um alerta”, afirma José Cerbino Neto, infectologista e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz) e consultor científico do Richet/Rede D’Or. “Ao declarar uma emergência de saúde pública de interesse internacional, a OMS convoca todos os países a adotar medidas para prevenir a disseminação do vírus. Isso inclui preparar a estrutura para diagnóstico e tratamento, além de garantir a logística necessária. O sinal de alerta da OMS facilita a implementação dessas ações”, explica.

Conforme o infectologista, a decretação amplia a capacidade diagnóstica na região, aprimora a vigilância para identificar todos os casos e viabiliza estudos sobre os mecanismos de transmissão e fatores de risco para formas graves da doença. Também permite avaliar se o padrão de transmissão impacta os testes diagnósticos, facilitando ajustes nas estratégias de controle.

No Brasil, o Ministério da Saúde publicou uma Nota Técnica/ 29/2024-DATHI/SVSA/MS com recomendações gerais para lidar com a Mpox. No dia 15 de agosto, instalou um Centro de Operações de Emergência em Saúde para coordenar as ações de resposta à Mpox. Em nota,  a pasta respondeu que “desde 2023 tem intensificado o enfrentamento da Mpox com várias ações. Destacam-se a ampliação da capacidade de diagnóstico, incluindo a implementação de testes moleculares em todos os 27 Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) e 3 laboratórios de referência nacional. Além disso, foram realizadas oficinas sobre o sistema de informação e tratamento de pessoas com HIV/aids, cinco webinários nacionais e a produção de publicações sobre a doença, disponíveis no portal do Ministério da Saúde, como o plano de contingência, boletins epidemiológicos, protocolos e notas informativas”, diz a nota.

Já no dia da declaração da OMS, a Anvisa publicou a Nota técnica nº14/2024, tratando de medidas de intensificação da vigilância em portos, aeroportos e pontos de entrada no país. Entre outras ações, o documento recomenda a “ampla divulgação de sinais e sintomas relativos a essa doença e medidas para manejo de casos” e que “os planos de contingência locais devem contemplar protocolos para atendimento de eventos de saúde pública relacionados a Mpox”.

O anúncio também permitiu reflexões sobre o Brasil estar preparado para lidar com uma futura pandemia. “Estamos mais preparados no Brasil do que estávamos antes da Covid-19. Mas dizer que estamos preparados para uma nova pandemia é muito difícil. Eu acho que não”, afirma Alberto Chebabo, da SBI. 

Para ele, há muito a ser feito. O sistema de vigilância permanece fraco e a rede de laboratórios é pequena e mal estruturada. Além disso, o sistema de saúde continua fragilizado e sobrecarregado, o que agrava a dificuldade de atendimento em caso de aumento na demanda. De acordo com Chebabo, o país ainda enfrenta problemas semelhantes aos vividos durante a pandemia, como a falta de equipamentos de proteção individual e materiais essenciais. A baixa produção de produtos de saúde, como luvas e medicamentos, é uma preocupação, especialmente devido à dependência de importações da Índia e da China para insumos e até medicamentos prontos. “Esse talvez seja o maior desafio para nós: estruturar uma indústria nacional capaz de oferecer uma resposta rápida no país. Isso não é uma tarefa simples nem rápida, e envolve tanto a área de medicamentos quanto a de insumos de saúde”, diz o presidente da SBI.

Como resposta, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde visa expandir a produção nacional de itens prioritários para o SUS e reduzir a dependência do Brasil de insumos, medicamentos, vacinas e outros produtos de saúde importados, mas o seu desenvolvimento pode levar anos.

Sobre o Brasil estar preparado para uma crise sanitária global, Luis Eugenio Portela, da Abrasco, é mais cauteloso: “A maior preocupação é que as lições mais importantes não foram aprendidas”. Para ele, as pandemias geralmente surgem de zoonoses, em que patógenos – principalmente vírus – são transmitidos de animais para seres humanos. Porém, a sociedade continua a adotar as mesmas práticas prejudiciais, como a degradação de habitats naturais e a criação intensiva de animais para a comercialização de proteínas. “Os surtos recentes de Mpox e gripe aviária, ambos com potencial de se tornarem pandemias, são um lembrete claro dessa problemática”, justifica.

As mudanças climáticas têm sido um ponto importante na discussão sobre saúde pública, pois agravam os cenários ao alterar os padrões de precipitação e temperatura, explica Mellanie Fontes-Dutra. Segundo ela, essas mudanças afetam o ciclo reprodutivo e a distribuição geográfica de vetores, como insetos que transmitem arboviroses. Além disso, eventos extremos, como inundações, elevam o risco de doenças transmitidas pela água e podem modificar rotas migratórias de animais, expondo as populações a novos patógenos.

“Já estamos vendo a dengue, por exemplo, passar a ser mais presente em países historicamente mais frios, entre outras arboviroses e doenças conhecidamente tropicais”. Por isso, ela acredita que é crucial que países, lideranças e grandes empresas responsáveis por significativas emissões de gases de efeito estufa e impactos ambientais se comprometam com ações de mitigação eficazes para conter o avanço acelerado da crise climática.

OPAS e o preparo para pandemias

Nesse contexto, foi lançado em julho o projeto PROTECT, uma parceria entre a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e o Banco Mundial, para fortalecer a resposta a pandemias na América do Sul. Sebastián Oliel, da OPAS, revelou ao Futuro da Saúde que o projeto visa aprimorar a liderança regional, desenvolver capacidades para emergências de saúde pública e coordenar atividades de campo. “Embora o projeto esteja em seus estágios iniciais, já foram identificados vários desafios”, afirmou. Ele acrescentou que a OPAS adota uma abordagem de planejamento participativo, permitindo que as iniciativas sejam lideradas pela comunidade e respeitem os contextos locais.

O projeto prevê a doação de quase 17 milhões de dólares do Fundo Pandêmico, que será distribuído entre os sete países (Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Uruguai). Para isso, a OPAS utilizará seus relacionamentos estabelecidos com os Ministérios da Saúde e Agricultura desses países, por meio de seus escritórios regionais que irão desempenhar um papel importante no aprimoramento da coordenação em níveis nacional e local.

O projeto busca melhorar os sistemas de vigilância precoce para doenças zoonóticas ao integrar a vigilância comunitária com os sistemas nacionais, aumentando a rapidez e a sensibilidade na detecção. Com isso, a comunidade poderá relatar casos suspeitos de doenças zoonóticas, permitindo que as autoridades locais e nacionais avaliem e respondam de forma eficaz. Além disso, pretende expandir o acesso a redes de laboratórios, incluindo os especializados em vigilância genômica, aprimorando a detecção e a caracterização de doenças zoonóticas e novos patógenos.

“Isso envolverá líderes comunitários, profissionais de saúde locais e outras partes interessadas na vigilância baseada em eventos comunitários para conduzir este processo. Forças-tarefa multissetoriais serão criadas em níveis subnacional, nacional e regional para aprimorar a colaboração e a coordenação nos esforços de vigilância baseada em eventos comunitários”, explica Sebastián Oliel.

Especialistas consideram essas ações cruciais. Mellanie Fontes-Dutra destaca a importância de melhorar continuamente a qualidade do ar interno em ambientes comuns, o que ajuda a reduzir os riscos de patógenos respiratórios. Ela também enfatiza a necessidade de investir em pesquisas sobre vacinas e medicamentos, e reforça a importância de integrar o conceito de Saúde Única, que abrange a saúde humana, a preservação ambiental e a saúde animal.

O alerta é mundial. A atual epidemia de Mpox não é a única que ameaça se tornar uma pandemia. Há também a gripe aviária. O vírus H5N1 já está em circulação em quase todo o mundo, afetando não só aves silvestres e domésticas, mas expandindo a contaminação para outras espécies. Entre 2020 e 2024, o número de espécies de mamíferos infectadas pelo vírus aumentou quase cinco vezes, atingindo 64 espécies em quatro anos. “A preocupação, agora, é evitar que seres humanos sejam contaminados”, diz  Luis Eugenio Portela, da Abrasco.

Angélica Weise

Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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