Tiago Farina, advogado sanitarista: “Advocacy tem que buscar influenciar decisões, mas que sejam justas”
Tiago Farina, advogado sanitarista: “Advocacy tem que buscar influenciar decisões, mas que sejam justas”
No mais recente episódio de Futuro Talks, Tiago Farina fala do impacto do advocacy para influenciar decisões justas em políticas públicas na saúde
A palavra advocacy talvez seja nova para muitos, mas ela representa algo que já é feito há muito tempo. Trata-se de um conjunto de ações – que envolve mobilização social, contato direto com tomadores de decisão e até mesmo levantamento de dados – para influenciar a formulação ou mudança de uma decisão, processos ou política pública. O conceito tem ganhado cada vez mais força na saúde pela possibilidade que ela cria de melhorar a jornada de pacientes em diversas condições. Esse foi o tema da conversa do mais recente episódio de Futuro Talks, quadro de entrevista do Futuro da Saúde no YouTube, que recebeu Tiago Farina Matos, advogado sanitarista e conselheiro de advocacy.
Formado em direito e com especialização na área da saúde, atualmente Matos atua como conselheiro e consultor de advocacy para o Instituto Oncoguia, Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo (FEHOSP) e da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). Ao longo de sua trajetória, ele se especializou no tema e passou a acompanhar constantemente os processos que envolvem a saúde, principalmente no que diz respeito à incorporação de novas tecnologias em saúde, tanto na saúde pública como suplementar.
Para ele, o papel do advocacy evoluiu nos últimos anos e, hoje, tem a missão de buscar soluções de maneira justa, que considere o cenário completo. Ele também explorou a necessidade de mais transparência dos processos, o papel das instituições e associações de paciente para organizar a mobilização social por meio de ferramentas como consultas e audiências públicas – e até mesmo nas redes sociais. Matos cita também a relevância de “não deixar ninguém para trás” e que, para isso, os tomadores de decisão precisam analisar o ecossistema como um todo e estressar os assuntos para buscar ações que sejam efetivas e realizáveis.
Confira a entrevista a seguir:
Como você entrou na área da saúde?
Tiago Farina – O meu primeiro contato com saúde foi com direito à saúde. Eu sou advogado, me formei em 2003. E quando eu me formei, minha mãe estava passando por um tratamento de câncer. Eu trabalhava ali no Conjunto Nacional, perto da Livraria Cultura, e estava tendo o lançamento de um livro sobre os direitos dos pacientes com câncer, de uma advogada chamada Antonieta Barbosa. Eu comprei aquele livro e fui tentando conectar a história da minha mãe com os direitos que estavam ali me sendo apresentados pela primeira vez. E eu fiquei muito empolgado com a quantidade de direitos que o paciente poderia ter e fui indo atrás, para ver o que minha mãe poderia usufruir dos benefícios que a lei garantia a ela. E nesse estudo, ela acabou também precisando de um tratamento que não estava sendo coberto pelo plano de saúde. Foi uma das minhas primeiras ações judiciais, uma ação para a minha mãe. E foi uma ação que deu muito trabalho. Eu tive que entrar com recurso porque não saía em primeira instância. Mas foi muito bom porque me obrigou a estudar profundamente o assunto. E eu fiquei apaixonado pela área do direito à saúde.
Quando o advocacy entrou na sua vida e como se tornou o que é hoje?
Tiago Farina – Praticamente um mês depois que minha mãe tinha conseguido o acesso, uma amiga dela, também com câncer, precisava da mesma tecnologia. Eu entrei com a ação e ela conseguiu também, mas aquilo me incomodou. Eu tinha acabado de mostrar que era justo para um paciente ter acesso, e aí de repente vem outro paciente e tem que fazer a mesma coisa. Não parecia justo ter que ficar insistindo e entrando com ações judiciais para cada pessoa que estava passando pela mesmíssima situação. A gente tem que ter uma mudança em que, uma vez analisada a situação e definido que é justo a pessoa ter acesso, tem que servir para todo mundo. Nessa mesma época conheci a Luciana Holtz, que é a atual presidente do Instituto Oncoguia. Eu era voluntário numa ONG de apoio a pacientes com câncer de mama, e ela estava fazendo treinamento para uma ONG americana. E dentro desse treinamento tinha um setor de advocacy. Na hora que eu vi aquilo, tudo se encaixou para mim. Pensei “é isso que eu preciso fazer”, tentar identificar os problemas que pessoas individuais estão passando e tentar transformar em uma solução que vai servir para o coletivo. A Luciana acabou formando o Instituto Oncoguia e a ONG que eu trabalhava, A Mama Info, acabou se fundindo com o instituto. Essa fusão já veio com o propósito de fazer advocacy e aqui estamos hoje.
Como você vê a evolução do advocacy desde sua criação até os dias de hoje?
Tiago Farina – Eu acho que teve uma certa evolução, e ainda podemos evoluir mais. Antes pensávamos na tradução do termo como “defesa ativa”, mas ainda assim não retratava bem. Advocacy é uma arte. Não tem ciência exata, uma receita de bolo, ou algo do tipo. É uma habilidade de diagnosticar os problemas enfrentados por grupos desfavorecidos, negligenciados, ou mesmo causas difusas, como o meio ambiente, e ir além disso. A gente passa muito tempo identificando o problema e só falando dele, mas essa postura não cabe mais, é necessário começar a pensar em soluções. Então, identificou o problema? É hora de propor soluções. “Que tipo de soluções?” Acho que é uma outra coisa importante de começar a refletir. Soluções justas, não só soluções que vão resolver o meu problema, porque às vezes uma solução que resolve o meu problema, resolve o meu, mas cria outro para o meu vizinho. Além de justas e eficazes, essas respostas precisam ser realmente realizáveis. Nunca é demais falar pelos meios éticos e legais, desenvolver ações, que normalmente são ações políticas. E políticas eu falo pensando em todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário, para influenciar quem tem o poder da caneta a tomar uma decisão em termos de políticas públicas para resolver esse problema. E aí é um trabalho também de entender um pouco do ecossistema de tomada de decisão. Quem é que tem poder para mudar uma regra de planos de saúde? Depende. Pode ser que seja alguma coisa relacionada mais a uma operacionalização, e aí estamos falando mais da ANS. Pode ser uma mudança muito estrutural, que vai depender de uma mudança legislativa. Então, é bom entender também quem é que tem o poder legítimo para gerar aquela mudança. Aí entram uma série de ações para sensibilizar aquela autoridade que pode transformar as políticas públicas.
Como você vê a questão do lobby no advocacy?
Tiago Farina – Eu entendo o advocacy como um olhar mais amplo, sistêmico, que envolve lobby direto, de você ter contato direto com o tomador de decisão. Envolve estratégia de comunicação, envolve mobilização, envolve colocar na opinião pública. E por isso que eu destaco tanto a necessidade de ser uma proposta justa. Esses dias eu estava assistindo um documentário na Netflix e me chamou a atenção que, no primeiro episódio, o livro de cabeceira de um dos personagens era sobre como fazer amigos e influenciar pessoas. E esse tipo de conteúdo é um manual para quem quer fazer advocacy. De olhar, de dar atenção para todos os atores, de escutar mais do que falar, de ter uma comunicação de respeito. Por isso acredito que a gente tem que pensar em uma proposta justa, porque senão podemos criar um problema de segunda, de terceira ordem, ainda maior, e isso é um risco para a sociedade. Acredito que o advocacy se encaixa nessa visão mais global, de poder gerar um efeito positivo para o interesse público. Usamos estratégias de lobby, de comunicação, etc. Acho que qualquer lobby é legítimo. Acredito que, para que a decisão seja a mais justa possível, o tomador de decisão deve ouvir todos os lados. Pelo menos é assim que eu me enxergaria se eu estivesse na posição dele. Certamente essa postura vai permitir que ele tenha menos pontos cegos. Sempre vão existir alguns, mas se você conseguir enxergar todos os lados, quadradinhos ali, pixels de uma imagem, melhora a sua capacidade de tomar uma decisão mais justa.
Em conclusão, o lobby é uma parte do advocacy. Talvez, hoje em dia, essa realidade esteja sendo vista de uma forma um pouco menos pejorativa. Como algo normal, numa sociedade democrática que todos têm o direito de apresentar a sua opinião, sua perspectiva a respeito de um tema.
Falando agora de redes sociais, você acha que o advocacy vai entrar em uma nova era?
Tiago Farina – Eu acho que sim. As redes sociais transformaram e potencializaram a repercussão do tema. O conteúdo atinge e mobiliza muito mais gente. Tem um antropólogo, Antônio Risério, que fala que estamos passando de uma fase de um ativismo dirigido, que seria aquele ativismo tradicional feito por sindicatos, por ONGs e por partidos, para um ativismo autoral, que é um ativismo feito por pessoas que estão ali, que têm uma opinião sobre o assunto e estão a fim de mobilizar para mudanças. Por isso é importante essa troca com todos os lados. Por exemplo, às vezes vemos pequenos movimentos de artistas super bem-intencionados, liderando grandes mobilizações com uma compreensão muito limitada do problema, reproduzindo falas que geram grande comoção, a ponto de gerar um prejuízo. Esse tipo de situação gera um efeito de segunda ordem, até de terceira, e aí, citando Martin Luther King, “o que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Na minha releitura, o que me preocupa não é o grito daqueles que menos sabem, mas o silêncio daqueles que mais sabem sobre o assunto. Aí está a importância da inserção nas redes. Temos muitos interesses sendo apresentados de forma reiterada, e às vezes, tem uma ou outra perspectiva que não está tendo voz. Só que aquela perspectiva é importante porque, talvez, quem está mais gritando não tenha a compreensão total do problema ou tenha uma compreensão limitada. O grande desafio da democracia é que todos esses grupos possam ser ouvidos.
E as redes sociais dão esse tipo de poder?
Tiago Farina – Sim. Falo até por mim. O podcast e o LinkedIn viraram um instrumento para eu apresentar aquilo que me deixa indignado ou propostas que, eventualmente, eu não teria outra forma de apresentar. Posso apresentar pelas organizações? Sim, só que as organizações também têm o seu tempo. Têm o seu modus operandi. Não vai apresentar uma proposta antes de testar, antes de conversar, é mais lento. Posições institucionais são mais lentas. E, às vezes, as pessoas não querem demorar para se posicionar, para testar alguma ideia. Eu acho que as redes sociais permitem isso. Que pessoas que não têm toda uma estrutura por trás possam apresentar ideias para que essas informações fluam e gerem outras ideias, e assim sucessivamente.
Como ouvir diferentes vozes dentro desse contexto evitando possíveis distorções?
Tiago Farina – Acho que não tenho uma resposta simples para isso. Mas sabe uma coisa que eu tenho pensado? Para os tomadores de decisão, especialmente, eles têm uma responsabilidade muito grande porque eles têm o poder da caneta. A gente tem falado muito no mundo das agências, sobretudo, de análise de impacto regulatório, que, basicamente, é tentar entender os efeitos de segundo e de terceira ordem, de alguma medida que vai ser adotada.
O que isso significa, exatamente?
Tiago Farina – Os efeitos colaterais de uma medida. Vou dar um exemplo. Lá atrás, no século passado, Oswaldo Cruz, ali no Rio de Janeiro, adotou uma medida para tentar combater a proliferação da peste [bubônica]. Ele decidiu fazer uma política pública local que era, basicamente, remunerar o cidadão para cada rato que fosse entregue morto para o governo. Depois disso, as pessoas começaram a levar ratos mortos e receberem aquele recurso. E continuaram. E você foi vendo que o índice de contagem estava realmente diminuindo. De repente, ele atingiu um platô. E o número de ratos continuava chegando. E cada vez mais. No final de tudo, descobriram que algumas pessoas estavam, na verdade, criando ratos, ou então pegando ratos em municípios que não tinham surto e levando para lá. Isso é um efeito de segunda ordem, de terceira ordem. É um efeito colateral de uma medida. Eu sinto que falta, na maioria das tomadas de decisões, uma reflexão mais aprofundada sobre qual é o impacto daquela medida. Nem sempre vai ser fácil, você não vai conseguir enxergar. Talvez, ali na hora, você não vai ter aquela informação. Só que algumas você pode ter.
Você acha que a discussão se aprofunda o suficiente?
Tiago Farina – Eu sinto que hoje a discussão é muito superficial. Acho que é um pouco de um viés de ancoragem. Parece que já sabem o que querem e só buscam informações para confirmar aquilo. O tomador de decisão, na minha opinião, tem que ter esse discernimento, esse cuidado de tentar enxergar todos os lados da história. E antes de tomar a decisão, ouvir com vontade de discutir. Ouvir com vontade de captar esses possíveis efeitos de segunda e terceira ordem. E não acho que tem que ser um negócio demorado. Acho que esse é um outro ponto. Tem que ser uma coisa rápida. Tem que ter um esforço. Não sei se você se lembra, há algum tempo, tivemos uma discussão sobre os limiares de custo-efetividade na Conitec. E aí, todo mundo falava já há muito tempo que a gente precisava ter essa discussão, mas quando a janela surgiu, pediram mais tempo. No final, foram por volta de 20 dias de consulta pública. Os documentos do processo têm mais de 300 páginas das pessoas mais inteligentes do Brasil, parando para pensar sobre aquilo, apresentando suas propostas. Isso nunca ia acontecer se a gente não tivesse um prazo definido para as pessoas pararem, estudarem, discutirem e apresentarem suas propostas. Então, acho que também não pode ser uma coisa lenta, mas eu acho que o tomador de decisão tem que ter esse cuidado de tentar fazer essa análise de impacto regulatório. Quais são os efeitos colaterais que aquela medida vai gerar? O que eu posso fazer para mitigar eventuais efeitos colaterais que eu já consigo prever?
Você sente que as agências têm tido essa preocupação em ouvir todos os lados e tornar os processos de produção mais transparentes?
Tiago Farina – Me parece que não. Me dá um pouco dessa sensação, às vezes. Ninguém está discutindo a análise do impacto regulatório. Você não vê um relatório de análise de impacto regulatório que as pessoas estão discutindo. Alguém já compartilhou com você alguma avaliação? É isso que tinha que acontecer. Em vez de recebermos relatórios setoriais, deveríamos receber relatórios de avaliação de impacto regulatório e discutir, de repente, posicionamentos em cima da análise do impacto. Eu não sinto que isso acontece. Eu queria receber mais mensagens no meu WhatsApp de análise de impacto regulatório. Porque aí eu acho que a gente consegue evoluir em termos práticos. Tem ali a proposta, há pessoas pensando nos efeitos colaterais, outras pensando em como mitigar ou anular os efeitos colaterais, ou mostrar que aquele efeito não faz tanto sentido. Eu sinto que falta.
Cobrar as instituições por mais transparência é o caminho?
Tiago Farina – Sim, e a sociedade tem algumas ferramentas para tentar estimular isso. A lei de acesso à informação, na minha opinião, é uma delas. Perguntas ajudam a mostrar para o tomador de decisão que a sociedade está atenta. A gente fala muito também sobre a desigualdade no acesso ao tratamento sistêmico, de incorporações que geram toda uma expectativa e não viram acesso. Então você começa a perguntar: “Em que pé está isso? Quais são os departamentos que têm que analisar esse tipo de disponibilização do tratamento?” Você começa a mapear aquele fluxo. Só que às vezes esse fluxo não está tão claro, desenhado no papel. Então, você começa a fazer perguntas e as respostas vão te ajudar a entender, e às vezes vão ajudar até eles mesmos a entenderem. Eles estão esperando que alguém faça alguma coisa, e às vezes esse alguém que eles estão esperando, também está esperando que alguém faça alguma coisa. Aí o negócio fica no limbo ali. Acho que esse é um dos instrumentos.
E toda oportunidade de trocar, de interagir com os tomadores de decisão, com outros atores, eu acho que são espaços. Audiências públicas, consultas públicas, você tem no legislativo, por exemplo, pouca gente sabe, mas existe uma comissão, comissão de legislação participativa.
Isso serve para qualquer instituição?
Tiago Farina – Qualquer associação formada há mais de um ano, não sei se é só associação da sociedade civil, de usuários, de órgãos representativos também, podem apresentar uma sugestão de projeto de lei, e essa comissão é obrigada a analisar essa sugestão. Se ela achar pertinente, ela transforma essa sugestão em projeto de lei. É claro que às vezes é mais fácil você falar para um deputado apresentar, mas há situações em que às vezes é melhor você lançar a ideia, e uma comissão começar a debater, para se aprofundar mais sobre o assunto. Isso é pouco usado. Eu lembro que o Oncoguia fez algumas sugestões, e elas seguiram. Aconteceram audiências públicas para discutir a sugestão, ela foi aprimorada naquele debate, depois virou projeto de lei. Então, acho que são instrumentos de interação que podem ajudar o tomador de decisão a também ter mais esse cuidado de análise dos impactos regulatórios. Enfim, acho que todo mundo tem que ajudar a alcançar esse quadro completo do problema.
Como “cidadãos comuns” podem participar dessa mudança? Considerando a complexidade do assunto.
Tiago Farina – Se você for olhar, historicamente, não é todo mundo que participa dos debates, e talvez nosso objetivo não tenha que ser os mais de 200 milhões de habitantes no Brasil, mas sim a representação desse total. É o que a gente tem discutido muito sobre o paciente participar de algumas etapas do processo decisório. Tem paciente que não quer participar, e está tudo bem. Ele pode contribuir de outra forma, disseminando conhecimento e informação. Outros já são mais participativos. Alguns escrevem bem, participam de consultas públicas. Outros contam melhor suas histórias oralmente, podem ser bons para audiências públicas. Eu acho que a gente tem que reconhecer o papel de cada perfil. As grandes mudanças também podem vir de uma pequena quantidade de pessoas que foi se posicionando com consistência. Você vê que há mudanças que são muito mais robustas e talvez justas, e outras que não. Acho que o grande objetivo do tomador de decisão, do sistema, das estruturas do poder, é tentar obter o maior número de perspectivas, mas também filtrar. Isso tem ônus político. Acho que a sociedade tem que cobrar também do tomador de decisão esse tipo de coerência. E talvez até as instituições, por exemplo, as ONGs, elas acabam sendo essa porta, essa voz mais especializada que representa essa massa de pacientes que não necessariamente tem todo esse conhecimento quando se fala, por exemplo, de incorporação de tecnologia ou mesmo discussões como limiar de custo-efetividade.
E qual o papel dessas organizações?
Tiago Farina – Eu acho que as organizações têm uma capacidade maior de entender o ecossistema. A forma como toda política pública é materializada por meio de algum ato normativo, de uma lei, de um decreto, de uma portaria. É assim que se materializa uma política pública. Não dá para a gente imaginar que uma pessoa, um cidadão que não atua com isso, vai conseguir fazer uma análise crítica do que é a ATS, do processo. Acho que até se perde muito tentando capacitar pessoas, cidadãos, pacientes que não estão preocupados com o processo de ATS. A preocupação desse grupo é ter acesso ao que realmente vai fazer bem para eles, de ocupar ambientes seguros, de ter aprovação na Anvisa. A sociedade, em geral, aqueles que não são tão atuantes naquele ecossistema, querem equilíbrio. A pessoa quer saber, sem importar a ATS, se vai ter acesso ao que foi prescrito. Eles querem ter confiança no sistema. E eu acho que as ONGs têm uma capacidade de poder identificar as fragilidades na política pública. Onde posso aprimorar aquela portaria, aquela resolução? Pontos cegos que não eram previstos inicialmente, a partir do momento que eu identifiquei, que sugestão eu tenho para mudar? Às vezes é um pequeno ajuste que pode fazer a diferença. Acho que elas têm esse papel mais técnico, mais de inteligência para esse processo.
E como garantir que todos os pacientes tenham esse acesso? Que recebam seus direitos?
Tiago Farina – Não existe uma resposta definitiva, mas considero que essa deve ser uma premissa fundamental. Não deixar ninguém para trás não implica em conceder tudo o que a pessoa deseja, mas sim em atender às suas reais necessidades. O que significa não ser deixado para trás? Imaginemos que eu tenha uma doença grave e um médico respeitado me prescreva um tratamento embasado. Então, eu me dirijo à minha operadora de saúde e descubro que o tratamento não está na lista de coberturas. Pode ser que esteja em processo de avaliação, o que não significa que seja inadequado, mas sim que ainda não passou pelo processo de análise, o que pode levar 60 ou até 90 dias. A questão é que não posso esperar 90 dias. Se eu simplesmente acreditar que o sistema está funcionando, sentirei que estou sendo deixado para trás. Não poderíamos criar algum mecanismo para situações como essa? E se, enquanto o tratamento está em análise, uma junta médica pudesse avaliar e concluir que a pessoa realmente se beneficiaria? Não é perfeito, mas é uma solução que considero até o momento. Isso evitaria a sensação de abandono. Precisamos desenvolver elementos que garantam que as pessoas sintam que estão sendo vistas pelo sistema de saúde. Podemos encontrar exemplos mais complexos, como a Conitec, que é mais fácil de estratificar. Às vezes, a Conitec avalia uma tecnologia e, embora o resultado seja positivo, o custo é proibitivo. A recomendação geralmente é de não incorporação, deixando pessoas que realmente precisam sem acesso. Mas será que essa recomendação não poderia ser mais flexível? Por exemplo, em vez de dizer não devido ao alto custo, poderíamos explorar alternativas, como negociações diferenciadas, compartilhamento de riscos ou até mesmo revisões nos modelos de precificação. Precisamos nos esforçar ao máximo para encontrar soluções que evitem deixar alguém para trás.
E como podemos fazer isso?
Tiago Farina – Não estou sugerindo que devemos chegar ao extremo, como o licenciamento compulsório, nem que aumentar os impostos seja a resposta. No entanto, essas opções devem ser consideradas caso todas as alternativas tenham sido esgotadas. Para evitar deixar alguém para trás, precisamos explorar todas as possibilidades de maneira transparente e autêntica, avaliando o impacto regulatório de cada uma delas.
Não devemos nos contentar com soluções superficiais, mas sim buscar o melhor caminho para garantir que as pessoas sejam atendidas adequadamente.
Com os avanços da tecnologia, você acredita que esse sistema será remodelado futuramente?
Tiago Farina – Eu acho difícil ser uma coisa do zero. Quando falamos sobre a criação de uma agência única, por exemplo, há muitos ajustes que precisam ser feitos para garantir que nenhum paciente se sinta negligenciado. Uma ideia que me agrada é a possibilidade de estabelecer um fundo, algo como um fundo para situações extraordinárias, como eventos catastróficos. Isso seria útil para evitar o colapso de pequenas operadoras ou ecossistemas inteiros. Embora possa ter efeitos colaterais não previstos, podemos avaliá-los ao longo do tempo. Uma agência única é uma concepção que aprecio profundamente, pois nos permite pensar no Brasil como um todo, tratando todos os brasileiros de forma igual. Atualmente, nosso sistema de saúde parece criar castas sanitárias, onde o atendimento varia de acordo com o CEP da pessoa, resultando em desigualdades significativas. Isso precisa ser abordado. Uma agência única atuaria como um fiscalizador, capaz de dialogar com todo o ecossistema e identificar problemas na precificação, por exemplo. A criação de um fundo poderia ser uma estratégia a ser explorada e refinada com o tempo, através de tentativa e erro, algo que pode parecer inadequado, mas é comum em políticas públicas. A pandemia nos ensinou que é aceitável tentar e errar para encontrar soluções eficazes. Muitas vezes, tememos mudanças radicais, como a implementação de uma agência única. Entretanto, é importante notar que muitas políticas públicas não surgem do zero, mas são desenvolvidas ao longo do tempo, ajustando-se e aprimorando-se gradualmente. Portanto, prefiro focar em pequenos ajustes que, mesmo que graduais, podem gerar mudanças positivas e controláveis. Não é suficiente apenas identificar problemas e propor soluções. Devemos agir e implementar as mudanças necessárias.
Como você tem visto isso na prática com o novo governo e como impacta a área da saúde?
Tiago Farina – Considero que o novo governo trouxe um discurso de reconstrução e de reconhecimento de problemas, o que é o primeiro passo para enfrentá-los. Em muitas situações, pelo menos aquelas com as quais eu tinha mais contato, como no campo da oncologia, não havia sequer o reconhecimento dos problemas anteriormente. Então, inicialmente, houve esse reconhecimento e uma certa esperança. No entanto, acredito que já se passou tempo suficiente. Não podemos mais culpar o passado. Deveríamos ter entregado soluções para questões que já estavam prontas para serem resolvidas. Ainda estamos muito focados no discurso e muito pouco na implementação. Por exemplo, quando um paciente passa por todo o processo de avaliação de tecnologia e é incluído em um programa, o SUS afirma que é uma boa opção e que temos a capacidade de fornecê-la. De acordo com a norma atual, em 180 dias a partir dessa decisão, a oferta efetiva deve estar disponível para o paciente, ou seja, no organismo dele. Isso não está acontecendo. Isso cria um cenário em que os hospitais, que recebem um pagamento mensal para tratar os pacientes, acabam criando seus próprios protocolos de tratamento. Aqui surge um problema: há mais de 300 hospitais habilitados em oncologia no SUS, e cada um pode seguir seu próprio protocolo, o que pode resultar em disparidades significativas. Normalmente, esses hospitais baseiam suas decisões de tratamento nos recursos financeiros que têm disponíveis. Se o tratamento custa 20 mil reais e o hospital recebe apenas 7 mil, é improvável que o ofereça.
Alguma medida já foi tomada?
Tiago Farina – Todos reconhecem esse problema, mas ainda não foram feitos ajustes efetivos para resolvê-lo ou fornecer recursos adequados. A falta de coerência é o que mais me incomoda. Se não há dinheiro, deveríamos ter considerado isso antes de incorporar uma tecnologia. Se não há recursos, então deveríamos desincorporar. Devemos ser transparentes com a sociedade e aceitar as consequências políticas de nossas decisões, em vez de mantê-las em um limbo. Hoje, parece que estamos tomando decisões que aparentam não deixar ninguém para trás, mas, na prática, essas decisões muitas vezes não se concretizam. Isso deixa as pessoas para trás. Precisamos de um processo de tomada de decisão mais coeso e autêntico, que comunique claramente à sociedade o que está faltando, o que é viável e o que não é. Isso nos permitirá desenvolver estratégias para garantir que ninguém seja negligenciado
E para agências reguladoras, Ministério da Saúde, e afins, o que você acha que deveria ser prioritário?
Tiago Farina – Os desafios que os próprios gestores estão enfrentando precisam ser escancarados ao público. Isso requer um nível de transparência mais profundo do que estamos acostumados. Precisamos compartilhar não apenas que não há dinheiro, mas também explorar maneiras de obter recursos. Devemos considerar a desincorporação? É preciso uma conversa franca para diagnosticar precisamente o problema. Sem um diagnóstico preciso, nunca conseguiremos resolvê-lo. Acredito que a honestidade sobre os gargalos que estão impedindo o progresso das decisões precisa ser mais transparente. Além disso, precisamos de ações para enfrentar os problemas, ações que sejam incrementais. Para dar um exemplo relacionado aos planos de saúde, acabamos de receber um relatório de um projeto de lei que inclui 279 outros projetos de lei em sua abrangência. Esse projeto aborda várias questões e já está gerando debate. O relatório organizou essas questões em 13 tópicos, o que tornou a análise mais acessível. Eu estava enfrentando dificuldades para avaliar 279 projetos de lei de forma organizada, mas agora estou mais confiante. Acredito que devemos analisar detalhadamente esses 13 tópicos e realizar discussões específicas sobre os relacionados à lista de procedimentos e ao reajuste dos planos de saúde. Precisamos evitar a abordagem genérica de ‘precisamos aprovar o projeto de lei dos planos de saúde’. Devemos nos concentrar em entender o que exatamente estamos tentando modificar com esses tópicos do projeto de lei. Caso contrário, corremos o risco de discutir algumas questões superficialmente e outras de forma mais intensa, o que pode resultar em problemas futuros. Debater esse assunto exige paixão pela resolução de problemas, não por ideias preconcebidas. Isso é um grande desafio para a sociedade.
Às vezes, as ideias podem ser revistas. É importante estar aberto ao debate e à crítica construtiva, pois isso nos ajuda a identificar soluções melhores. A discussão deve seguir essa linha de raciocínio.
E nem toda lei acaba sendo executada, certo?
Tiago Farina – Não exatamente. Por exemplo, existe uma lei amplamente conhecida, a lei dos 60 dias para o início do tratamento contra o câncer. Eu participei da elaboração dessa lei, então estou fazendo uma autocrítica aqui. Houve uma grande celebração quando ela foi aprovada e até mesmo um evento de comemoração de um ano da lei. Mas qual era o propósito quando essa lei foi aprovada? O que esperávamos? Esperávamos que as pessoas fossem atendidas rapidamente, porque quando se trata de câncer, o tempo é crucial. O rápido, de acordo com essa lei, era definido como 60 dias. No entanto, se me perguntarem se eu gostaria de iniciar meu tratamento em 60 dias, a resposta seria não, eu gostaria de começar o tratamento o mais rápido possível, talvez até amanhã. Mas, considerando o cenário anterior, em que as pessoas esperavam até 200 dias para começar o tratamento, os 60 dias eram uma melhoria significativa. No entanto, o propósito original quando as pessoas votaram a favor dessa lei era que ela resolveria o problema. E não foi o que aconteceu. A lei não trouxe uma solução mágica junto com ela. Para ser atendido em 60 dias, você precisa de uma infraestrutura funcional, de um fluxo de cuidados adequado. Portanto, a lei não resolveu o problema completamente. Embora tenha seus méritos ao empoderar o paciente e dar-lhe o direito de ser atendido em 60 dias, o propósito inicial da lei era resolver o problema, e isso não aconteceu. Atualmente, percebo que talvez não tenha lido com atenção essa lei na época, ou pelo menos não pensei profundamente sobre ela. A lei estabelece que o primeiro tratamento contra o câncer deve ser iniciado em 60 dias. E quanto aos tratamentos subsequentes? E o segundo? E o terceiro? Se o primeiro é em 60 dias, o segundo pode demorar 200? Isso não faz sentido. Até mesmo a forma como a lei foi redigida tem suas fragilidades e poderia ter sido mais cuidadosa na redação, priorizando a qualidade do texto ao invés de apenas aprovar por aprovar.
E a nova política nacional do câncer?
Tiago Farina – Estamos enfrentando uma situação semelhante com o projeto da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. Na minha opinião, não podemos simplesmente passar por cima de dispositivos que podem ser melhor escritos. Devemos nos perguntar se devemos nos contentar com algo mais ou menos agora, apenas para corrigi-lo posteriormente. Se já sabemos que algo não está funcionando bem, eu pessoalmente tenho resistência em aceitá-lo e adiar. Mesmo que isso signifique um pouco mais de tempo, devemos nos esforçar para criar algo mais eficaz dentro do conhecimento que temos hoje. A atenção aos detalhes na elaboração de atos normativos é fundamental e algo que não deve ser subestimado.
Caminhando para o fim, quais pautas devemos ficar de olho?
Tiago Farina – Acredito que os temas que já estão em discussão há algum tempo continuarão em destaque, como a avaliação de tecnologias em saúde. Com avanços na terapia gênica e mudanças nesse campo, acredito que isso pode estimular uma discussão mais profunda, como a possível criação de uma agência. Embora isso possa levar algum tempo, a pauta da Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) continuará em alta nos próximos anos. Quanto ao projeto de lei em questão, dependendo, é claro, do projeto de lei dos planos de saúde, vejo uma grande oportunidade de revisitar essa norma de uma maneira mais abrangente. No entanto, isso dependerá da nossa capacidade de não nos apegarmos às ideias, mas sim de nos dedicarmos à resolução do problema, reconhecendo que o conhecimento está disperso na sociedade e que precisamos considerar todos esses pontos de vista. Estou entusiasmado em participar desse exercício de estratificação, analisando todos os aspectos desse projeto em pauta e buscando aprimorá-lo da melhor maneira possível, dentro do conhecimento atual. Isso não significa que o projeto sairá perfeito, pois certamente identificaremos efeitos colaterais não previstos e pontos cegos após sua implementação. No entanto, estamos abertos a ajustes posteriores. Se conseguirmos elaborar e discutir o melhor texto possível com base no que sabemos hoje, ficarei muito satisfeito e dedicarei esforços a esse processo. Este é o próximo passo.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.