Reivindicação do A.C. Camargo traz à tona crise entre hospitais privados e remuneração da tabela SUS
Reivindicação do A.C. Camargo traz à tona crise entre hospitais privados e remuneração da tabela SUS
O anúncio de que o Hospital A.C. Camargo deixaria de
O anúncio de que o Hospital A.C. Camargo deixaria de atender os pacientes do SUS trouxe à tona um problema que afeta todos os prestadores privados e filantrópicos que realizam serviços em parceria com a rede pública: a defasagem da tabela SUS. A lista de remuneração de procedimentos, com orçamento transferido pelo Governo Federal, em geral paga menos do que os hospitais gastam.
No entanto, o posterior acordo do A.C. Camargo com o Estado de São Paulo e a prefeitura da capital paulista, garantindo a permanência da unidade como rede credenciada ao SUS, mostrou que existem possibilidades para amenizar a discrepância de valores. Contudo, se limita a poucos prestadores que têm poder de barganha, assim como governos e municípios com orçamentos disponíveis – o que se tratando de saúde é cada vez mais escasso.
Aliado a isso, o recém aprovado piso salarial de enfermagem promete criar um impacto enorme aos hospitais, sendo os filantrópicos e santas casas os mais afetados, já que apesar da sanção presidencial, não houve a definição da fonte de recursos. Somente essa categoria terá que absorver um aumento de custos anual de 6,3 bilhões de reais.
A saída, segundo especialistas, é criar ferramentas para garantir a atualização da tabela. Mas mais do que isso, é preciso buscar novas formas de financiamento do SUS, já que para conseguir pagar efetivamente o que uma tabela atualizada propõe, é necessário recursos financeiros.
Os mais afetados com a tabela SUS
De acordo com a Confederação Nacional da Saúde (CNSaúde), 56,5% dos hospitais privados realizam atendimento pelo SUS. Uma grande parcela desses serviços é realizada por hospitais filantrópicos e santas casas, e em mais de 800 municípios são os únicos hospitais que atendem a população.
Ocorre que para continuar realizando consultas, exames e cirurgias, esses hospitais acabam financiando do próprio bolso toda a estrutura de atendimento, já que a remuneração com base na tabela SUS está desatualizada. A Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB) aponta que a dívida já passa de 20 bilhões e a tendência é que, caso não ocorram atualizações, os hospitais comecem a demitir e fechar leitos.
“Nossos contratos com estados e municípios ainda são feitos com a base da tabela SUS. E essa tabela está defasada há mais de 20 anos sem um aumento de remuneração. Existem alguns municípios e estados que negociam em alguns procedimentos, por ser tão defasado, algum tipo de pagamento de integralidade sobre a tabela do SUS ou sobre seus convênios”, explica Mirocles Véras, presidente da CMB.
De acordo com o presidente, mesmo esse pagamento de incentivo acima da tabela realizado por algumas administrações públicas está abaixo dos custos dos hospitais. Em Pernambuco, por exemplo, Mirocles aponta que a tabela SUS paga 800 reais por internação em UTI, o Estado paga um incentivo de cerca de 1000 reais aos prestadores, mas o custo dos hospitais é entre R$2800 e R$3000. “Historicamente, existe uma defasagem média de 60% entre o que o SUS paga e o que efetivamente nós prestamos”.
Ele aponta que, apesar das dívidas e da falta de pagamento adequado, as entidades filantrópicas seguem realizando serviços ao SUS por conta da origem e da missão, mas que a situação vem se agravando cada vez mais. No entanto, o SUS é dependente desses hospitais, que realizam cerca de 50% de todos os atendimentos públicos de média complexidade e 70% da alta complexidade.
“Existem hospitais que atendem 100% SUS, que é a grande maioria, como hospitais que atendem a saúde suplementar e o sistema público. Os recursos que vêm da saúde suplementar são investidos no SUS. Da mesma forma, esses hospitais estão substituindo o Estado brasileiro”, argumenta o presidente.
Piso de enfermagem
Historicamente, a CMB vem discutindo junto ao Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) outras formas de financiamento para as santas casas e hospitais filantrópicos. A ideia é encontrar alternativas para aumentar o orçamento de estados e municípios para garantir, no mínimo, o pagamento do custo dos procedimentos. Mas até o momento, não obtiveram uma conclusão efetiva.
A aprovação do piso de enfermagem, sem a definição da fonte dos recursos para custear esse ajuste dos profissionais, deve agravar ainda mais as discussões sobre o tema e, consequentemente, ter impactos mais drásticos, como demissões, diminuição de leitos e até encerramento de unidades.
Uma pesquisa realizada pelas cinco maiores entidades do setor hospitalar brasileiro, com 2.511 instituições de saúde de todas as regiões do Brasil, apontou que, devido à aprovação sem a definição da fonte de custeio, 20 mil leitos poderão ser fechados e 83 mil colaboradores podem ser desligados. Participaram do estudo a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), Federação Brasileira de Hospitais (FBH), Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) e Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed).
“A questão do piso de enfermagem é totalmente inviável aos nossos hospitais. Estamos falando de subfinanciamento e vem mais uma conta, de 6,3 bilhões de reais, que alguém teria que entregar essa conta com a fonte do pagamento. Nós somos a favor dos enfermeiros, mas não temos como pagar”, alerta o presidente da CMB.
Mirocles acredita que com a defasagem na tabela SUS e o piso salarial, outras instituições virão a ter coragem de alertar o poder público que não possuem mais recursos para seguir atendendo o SUS. É o caso da Santa Casa de Porto Alegre, que de acordo com o presidente, já encaminhou aos gestores a diminuição do número de serviços prestados ao sistema público.
“Nós temos que preservar a sustentabilidade das nossas entidades também. A maioria das santas casas vai quebrar, e vai quebrar o Sistema Único de Saúde. O SUS são as santas casas e hospitais filantrópicos. Como está hoje, vamos seguir a tendência que já vem há 10 anos, que já fecharam mais de 500 santas casas e hospitais filantrópicos e diminuíram leitos hospitalares. Onde as pessoas que necessitam vão ser atendidas?”, defenda Mirocles.
Incentivo
Apesar dos estados e municípios poderem realizar incentivos aos prestadores privados, pagando acima da tabela SUS, depende da capacidade de negociação do hospital e do orçamento da saúde de cada local. Por isso, o próprio SUS criou uma ferramenta chamada de Incentivo de Adesão à Contratualização, para estimular que hospitais estabeleçam relações com a saúde pública, mediante ao estabelecimento de metas. Dados de 2021 do Ministério da Saúde apontam que 1.034 hospitais recebiam o incentivo, com um montante de 2 bilhões de reais ao ano.
No entanto, existem distorções mesmo entre os serviços que contam com pagamentos acima da tabela. Maria Angélica Borges dos Santos, pesquisadora docente do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, faz parte de um grupo de trabalho que está desenvolvendo um estudo sobre os gastos de internações entre o SUS e os hospitais privados.
Segundo ela, os dados analisados apontam que a média paga por internação é de 3,5 vezes o valor da tabela SUS, mas que em alguns casos, pode chegar a 400 vezes. A pesquisa afirma que apesar de isso não ocorrer com todos e haver uma defasagem da tabela SUS, é preciso levar em consideração que ela é uma referência, e não um veredicto.
“A tabela SUS só corresponde ao que o governo federal vai aportar para a internação, e o SUS é um sistema tripartite. Quando você faz uma análise pensando nos recursos próprios e como esses entes contribuem com o financiamento de internações, você percebe que os estados têm mais dinheiro para gastar, mais que o Governo Federal”, explica Maria Angélica.
Por isso, a professora avalia que o desfecho da negociação do A.C. Camargo com o Estado de São Paulo foi previsível, já que o governo compõe com cerca de 40% o orçamento para internações do sistema. Além disso, por ser um hospital referência e que exerce papel importante no atendimento oncológico, tem capacidade de negociação maior que outros prestadores.
“Discutir a tabela SUS é importante, mas é preciso discutir toda a lógica de remuneração que existe pelo SUS. Não é demonizar, ela é uma tabela de referência como qualquer outra”, afirma a pesquisadora da Fiocruz. Mas tem regras que precisam ser estabelecidas, segundo ela, para não gerar distorções. Ela cita como exemplo o que acontece com os estados que podem aumentar os recursos destinados à internação, mas dependendo do serviço, a contratação é “a preço de ouro”, enquanto outros recebem um montante abaixo do que deveriam.
Ela ainda aponta que mesmo a tabela da saúde suplementar possui defasagens, mas como o pagamento depende do orçamento e da capacidade das operadoras, é mais comum se pagar acima da tabela. O estudo realizado pelo grupo de trabalho deve ser concluído ainda este ano.
Classificação brasileira de procedimentos
Existe um projeto de lei que visa a instituir a Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHM), produzida pela Associação Médica Brasileira (AMB), como forma de atualização da tabela SUS. Atualmente ele tramita no Congresso Nacional, apensado a outro projeto que cobra a divulgação anual dos critérios e dos valores para a remuneração de serviços e dos parâmetros de cobertura assistencial no SUS.
Essa classificação já foi adotada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e é utilizada para estabelecer o valor mínimo de remuneração aos profissionais, procedimentos diagnósticos e terapêuticos.
Maria Angélica, da Fiocruz, aponta que uma das vantagens é que a CBHM estabelece critérios para reajustes, diferente da tabela SUS atual. Atualmente, a atualização da lista de procedimentos remunerados pelo sistema público é feita de forma esporádica apenas para alguns serviços, que segundo a pesquisadora está atrelado ao lobby de empresas do ramo. É necessário estabelecer regras mais claras de reajuste.
No entanto, ela discorda da proposta de adoção. Ela afirma que, em se tratando de internações, a tabela SUS permitiria adotar outros modelos de remunerações mais viáveis, como Diagnosis Related Groups (DRG), classificação que agrupa pacientes e estabelece um índice de saúde para avaliar o desempenho hospitalar. “Em vários sentidos a tabela SUS é mais evoluída que a tabela da saúde suplementar. Ela só fala das intervenções, não fala de diagnósticos. É completamente inadequada para esse modelo mais evoluído de remuneração”, explica. O ideal, na visão da pesquisadora, seria mesclar os pontos positivos de cada uma das tabelas.
Outros modelos possíveis
De acordo com André Medici, que atuou por 24 anos como economista sênior de saúde do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial e foi coordenador do grupo de financiamento da Comissão Nacional de Reforma Sanitária no Brasil, que contribuiu para o desenho do SUS, apesar das críticas à defasagem da tabela ocorrer há muito tempo, ela é apenas a ponta do iceberg da falta de recursos públicos para a saúde.
“Diante de um processo de envelhecimento da população e crescimento das demandas associadas a doenças crônicas, os gastos hospitalares tendem a crescer em proporção maior do que a inflação e do que os escassos recursos disponíveis ano a ano para o financiamento do SUS”, explica Medici. No entanto, ele acredita que ter mais recursos não soluciona o problema.
O economista alerta que é preciso estabelecer novos modelos de gestão e organização dos serviços, assim como mudar a forma que os prestadores são remunerados. Em sua análise, algumas soluções como a transferência de recursos para redes de saúde com metas de qualidade, compromisso de recuperação dos custos e premiação por resultados, que foram adotadas nos Estados Unidos através das Accountable Care Organizations (ACOs), podem trazer resultados positivos.
“Elas envolvem riscos que são compartilhados entre os prestadores e os financiadores, o que é diferente do modelo de pagamento por unidade de serviço. E quando existem riscos, é importante que o compromisso com a eficiência, melhorando os resultados e reduzindo desperdícios, esteja presente na negociação dos contratos para que esses ganhos possam ser maximizados para a população e eventuais perdas injustificadas possam ser minimizadas para os hospitais contratados”, explica.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.