Simulação realística avança no país com capacidade de aliar treinamento técnico e habilidades sociais

Simulação realística avança no país com capacidade de aliar treinamento técnico e habilidades sociais

Metodologia de simulação realística é aplicada tanto na graduação quanto para profissionais já formados e caminha para expandir e personalizar ainda mais a capacitação

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By Published On: 20/09/2023

Imagine entregar um avião nas mãos de um piloto que, apesar de muito conhecimento teórico, nunca sequer treinou na prática. Pode dar certo, mas com exercícios de simulação, certamente a execução seria mais segura. Foi a partir dessa premissa que os primeiros simuladores de voo foram criados, ainda no início do século XX. O conceito passou a permear outras atividades e, com o advento da tecnologia, foi adquirindo uma capacidade cada vez maior de imersão e realismo. Não à toa, o método da simulação realística passou a ser implementado na medicina, uma área que também carrega muita responsabilidade ao lidar com a vida de pessoas. Com os avanços tecnológicos mais recentes, que incluem manequins de última geração, e a perspectiva de novos recursos, como inteligência artificial, o tema deve evoluir ainda mais.

Vale destacar, entretanto, que a simulação realística não se resume apenas a tecnologias e dispositivos. Ela é, antes de tudo, uma metodologia de formação. “A simulação, por conceito, é uma metodologia prática e imersiva. Muitas vezes, o que chama a atenção na prática é a tecnologia, mas embora seja muito importante, ela é apenas um componente do método de ensino como um todo”, explica Joyce Barreto, gerente do Centro de Simulação Realística do Einstein – uma das primeiras instituições a construir um CSR no Brasil, ainda em 2007. “A simulação realística é muito mais complexa, passa muito pela possibilidade de treinar não apenas habilidades técnicas, mas também soft skills, em um ambiente seguro, para trazer essa segurança psicológica para os treinandos”.

Esse é um diferencial da metodologia. Hoje, muito se discute nas escolas de medicina a necessidade de treino de habilidades interpessoais, como comunicação de notícias negativas, diálogo com pacientes de grupos minorizados e gerenciamento de decisões em equipes multidisciplinares. Mas, na simulação realística, a visão de desenvolvimento de hard e soft skills sempre caminharam juntas.

É, como destaca Barreto, parte inerente do método: “As soft skills têm sido pauta em outras metodologias e ganhado força, mas isso é a base da simulação. Desde a origem, médicos, enfermeiros e fisioterapeutas treinam em conjunto no mesmo ambiente, então sempre se falou de trabalho de equipe, liderança, comunicação, consciência situacional.”

O treinamento das habilidades não técnicas costuma contar com a participação de atores treinados para simular emoções reais nos mais variados contextos, como a comunicação de uma doença terminal ou de óbito. O aprendizado pode combinar, ainda, atores humanos e recursos tecnológicos, tudo com o propósito de se aproximar ao máximo das situações que serão encontradas no dia a dia do profissional.

Neste contexto, a inteligência artificial generativadeve aprimorar ainda mais o treinamento, “principalmente pelas técnicas de linguagem natural para simular um paciente mais realista”, segundo Ronaldo Gismondi, professor de medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) e vice-diretor do primeiro centro de simulação realística de um hospital universitário no Rio de Janeiro.. Ele destaca ainda a possibilidade de, no futuro, a tecnologia permitir uma experiência personalizada para cada estudante. A ideia seria não apenas programar um desafio médico realístico, mas também análise e feedback individualizados.

Simulação realística para formados

Embora a ideia de simulação realística ainda esteja muito associada à alunos na graduação, a metodologia é uma importante ferramenta na manutenção de habilidades de profissionais já formados, principalmente de situações de emergência que ocorrem pouco, mas que exigem protocolos e habilidades manuais complexas.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), falhas nos cuidados de saúde são responsáveis pela morte de 2,6 milhões de pessoas anualmente ao redor do mundo. A preocupação crescente com a segurança dos pacientes tem impulsionado o uso da simulação nos ambientes hospitalares. O Centro de Simulação Realística do Einstein, inclusive, foi um dos que nasceu com o foco no treinamento de profissionais já formados que atuavam na instituição.

“Ele começou focado na segurança do paciente no nosso hospital e depois se expandiu para as atividades acadêmicas”, lembra Barreto. “Hoje, usamos a simulação de diversas maneiras dentro do hospital, como recrutamento, treinamento de rotina, avaliação e validação crítica de procedimentos específicos. Se tornou algo intrínseco para a nossa operação enquanto hospital”.

As pesquisas corroboram os benefícios da prática. Uma publicação da revista Arquivos de Neuropsiquiatria avaliou o impacto de um curso de simulação realística sobre Acidente Vascular Cerebral (AVC) para profissionais de saúde de uma unidade hospitalar. A ideia era analisar se os profissionais se sentiriam mais seguros para atender a esse tipo de ocorrência após o treinamento, o que foi confirmado: todos os participantes reconheceram o aprimoramento das habilidades e a aplicabilidade do aprendizado na rotina médica.

Contudo, desenvolver um programa de treinamento para profissionais de saúde que já trabalham na área envolve a necessidade de adaptação à realidade já vivenciada por eles. Os exercícios exigem um grau de complexidade maior e é preciso demonstrar as implicações práticas de incluir os treinamentos na rotina profissional.

“O pessoal que está na ponta, já formado, às vezes precisa ser convencido da necessidade de fazer um treinamento”, salienta Thomaz Couto, especialista médico do Centro de Simulação Realística do Einstein. “Talvez por estar acostumado, por já ter um jeito de fazer as coisas. O que ajuda muito é entregar um treinamento que seja fácil de traduzir para a prática dele, algo que faça sentido de fato para a rotina daquele profissional”.

Durante a pandemia, o Einstein pôde mensurar em números o impacto prático do uso de simulação realística com o corpo clínico. Nos primeiros três meses de pandemia, a instituição mediu a taxa de infecção dos colaboradores, que foram separados em quatro grupos: sem treinamento, treinamento online, treinamento híbrido e treinamento presencial. Dentre os que não receberam treinamento, a taxa de infecção foi de 11%, comparado aos 5% entre os que receberam treinamento com simulação.

“Foi um fator extremamente protetor, e aí confirmamos o impacto do ambiente de simulação no sistema de saúde. A paramentação parecia uma coisa intuitiva, mas quando começamos os treinamentos e vimos os números, percebemos que não é bem assim”, diz Thomaz Couto.

Couto complementa que os benefícios do CSR não se restringem à classe assistencial. “Há a possibilidade de treinar não só a parte de atendimento direto à saúde, mas habilidades que compõem a demanda dos nossos outros profissionais, como negociação, liderança, gestão, entre outras”.

Custos e capacitação são entraves para a expansão

Já há algum tempo os benefícios da simulação realística estão cada vez mais conhecidos por pesquisadores, professores e alunos. Em 2014, o Ministério da Saúde publicou novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a graduação de medicina, que incluem a recomendação de “inserir o aluno precocemente em atividades práticas relevantes para a sua futura vida profissional” e “utilizar diferentes cenários de ensino-aprendizagem, permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações variadas de vida, da organização da prática e do trabalho em equipe multiprofissional”.

O acesso a estruturas como os Centros de Simulação Realística, porém, ainda ocorre de forma desigual. Os custos para adquirir e manter os equipamentos necessários ainda são altos, o que resulta em uma lacuna na implementação desses espaços em faculdades públicas e privadas.

“A universidade pública demorou mais para ter acesso em relação à educação privada. Agora que temos mais tecnologia e, principalmente, que os manequins estão mais acessíveis, as faculdades públicas estão conseguindo se equipar”, salienta Gismondi. “O maior desafio hoje é que a manutenção desses equipamentos ainda é cara, especialmente dos equipamentos em que a gente simula procedimentos cirúrgicos, de sutura, que naturalmente sofrem muito desgaste”.

Ter uma gestão que compreenda esses custos não como gasto, mas como investimento na qualidade da formação dos alunos é fundamental. Diferente de outros modelos de educação, como o ensino à distância, que permite uma escalabilidade relativamente acessível, a simulação realística tem como característica o aprendizado em pequenos grupos, tanto por disponibilidade de equipamento, quanto por metodologia.

Por isso, segundo Couto, “o apoio da alta liderança é tido como um ponto crítico. Aqui [no Einstein], temos o entendimento da importância da simulação e a instituição está constantemente investindo em novas tecnologias, expandindo as atividades, mas sabemos que para o mercado brasileiro esse é um dos principais desafios para o crescimento do uso da simulação.”

A capacitação de docentes é outra dificuldade, marcada pela velocidade em que novas tecnologias são inseridas no mercado. “Manter uma equipe que seja apta a trabalhar com essas tecnologias, que mudam e crescem muito rapidamente, exige um trabalho de estímulo também a esses profissionais”, complementa.

Mudança geracional e novas demandas

Para o diretor da UFF, há ainda outros desafios que devem ser levados em consideração para se pensar em estratégias de expansão da simulação realística como metodologia de ensino: a própria mudança no perfil de aprendizado dos novos estudantes.

“Essa geração lê menos e quer ver, ouvir e presenciar mais. Além disso, é uma geração que gosta de personalização, de coisas que atendam às suas necessidades, e não só porque são importantes. A simulação consegue trabalhar todos esses sentidos. Então, além de ser uma forma de ensino de eficácia comprovada, atende às demandas dos novos alunos”, afirma Gismondi.

Para manter expectativas e demandas alinhadas, a universidade estabeleceu um modelo de avaliação feito pelos alunos ao final das disciplinas que utilizam simulação realística, concentradas nos dois últimos anos das graduações de saúde. De acordo com o vice-diretor do CSR da UFF, o novo modelo de ensino tem sido amplamente aprovado pelos alunos.

Isabelle Manzini

Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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