Saúde no Norte do Brasil: novos investimentos não dão conta de gargalos de infraestrutura, logística e falta de médicos especialistas
Saúde no Norte do Brasil: novos investimentos não dão conta de gargalos de infraestrutura, logística e falta de médicos especialistas
Governo atual tem feito investimentos nas regiões Norte e Nordeste, mas a complexidade geográfica, aliada a falta da estrutura, dificulta o cenário
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado recentemente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, destinará R$ 30,5 bilhões para a saúde até 2026. Para a expansão do SUS, como serviços de saúde na atenção primária e especializada, serão R$ 7,4 bilhões, com a entrega de 3,6 mil Unidades Básicas de Saúde em todo Brasil (57% nas regiões Norte e Nordeste). Embora os recursos sejam bem–vindos, especificamente na Região Norte, especialistas ouvidos por Futuro da Saúde apontam que os novos investimentos não dão conta de suprir questões de infraestrutura, logística e falta de médicos especialistas, desafios complexos e multifatoriais da região.
Adriano Massuda, médico sanitarista, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP), contextualiza que, desde a implantação do SUS nos anos 90, a região Norte foi a que teve o menor avanço dos indicadores de saúde do país, o que também explica as altas taxas de mortalidade infantil e materna na região. “Houve melhoras, mas não como as demais regiões do país, sobretudo relacionado às doenças crônicas, cardiovasculares e ao câncer. Há ainda os diferentes determinantes sociais, ambientais e a estrutura do sistema de saúde”, afirma o pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão da Saúde (FGV-Saúde).
Pesquisa realizada pela PoderData para a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), intitulada “O que pensam os brasileiros sobre a saúde no Brasil?”, mostrou reprovação da saúde no Norte e Nordeste, superando a média nacional. No Norte, onde predomina a classificação “regular” (68%), o indicador de “ótimo ou bom” é o menor do país (31%). A pior avaliação ocorre no Nordeste, em que 48% classificam a assistência como “ruim ou péssima”, seguida pela região Norte, com reprovação de 47%.
A avaliação negativa se mostra na prática com as desigualdades assistenciais entre regiões geográficas do país. O estudo “A Regionalização da Saúde no Brasil” do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), destacou que, em média, Norte e Nordeste têm um número de leitos de UTI no SUS por residente (4,4 e 4,3 por 100 mil residentes) consideravelmente menor do Sul e Sudeste (11,0 e 9,6 por 100 mil residentes). Analisando leitos totais por 100 mil habitantes, as regiões de saúde do Norte possuem a menor taxa (146,2), enquanto as do Sul possuem a maior (193,3).
Dados levantados pelo Índice de Gestão Municipal Aquila (IGMA), a partir do programa Estratégia de Saúde da Família (ESF), do Ministério da Saúde, indicam que, em relação à mortalidade infantil, o Norte e Nordeste são donos da maior taxa do país. No ranking de mortalidade infantil estão Roraima (20,69%), Amazonas (19,77%), Acre (18,04%), Amapá (16,78%), Sergipe (16,76%) e Bahia (15,27%).
A regionalização é uma boa saída?
Para Massuda, um dos maiores desafios do país na saúde é construir um projeto de fortalecimento de saúde, adaptando características da região, considerando a sua dimensão, ambiente, cultura, diversidade e população. É por conta disso que ele crê na necessidade de pensar em um projeto de desenvolvimento nacional, incluindo pessoas e instituições:
“Uma regionalização diferente, levando em conta o desenho da região, as áreas de carência assistencial. Os municípios não dão conta de suprir o desenho de região. Por isso, o apoio efetivo não só no discurso. Logo, a regionalização é um caminho para organizar o sistema”, afirma.
Apesar de estar no foco do novo governo, a região Norte ainda tem desafios estruturais que não serão resolvidos com regionalização. Na realidade, há uma carência de dados, seja pelo insuficiente número de grupos de pesquisa na região analisando os dados disponíveis, insuficiente informatização dos dados em saúde, em particular nas áreas rurais, e insuficiente cobertura de atendimento à saúde para a população do Norte. Para a médica sanitarista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, Maria Luiza Garnelo Pereira, a regionalização é uma proposta excelente que facilita racionalizar o investimento. Contudo, pode enfrentar dificuldade de operacionalização em várias unidades federativas do Norte:
“Em regiões em que os municípios tenham fracas interações prévias entre si, através de fluxos já estabelecidos de redes de transporte, comunicação, cooperação econômica prévia e interligações em outros campos além da saúde, torna-se difícil regionalizar só através da saúde”.
Para a pesquisadora, há sim a expectativa de que o novo governo tenha compromisso real com a redução das desigualdades enfrentadas pelas populações do Norte, mas com o olhar principalmente para o interior da região.
Michele Rocha de Araújo El Kadri, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz – Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD – Fiocruz Amazônia), destaca que as características da área territorial conferem uma complexidade maior à região. Por essa razão, defende trabalhar com as especificidades na região Norte: “A grande questão da regionalização é o desafio do próprio sistema dar uma resposta única para um país tão continental de realidades e territórios tão diferentes”, afirma. “A região Norte acaba sendo um espaço único. É um desafio para o SUS desenhar uma política que responda a essa realidade que é muito diferente de uma realidade urbano-centrada. Tem que ter políticas diferenciadas para esse território”, sinaliza.
Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, médico e especialista em Saúde Pública do Instituto Leônidas & Maria Deane (FioCruz, Amazonas), acredita que a regionalização pode ser uma solução, em constante processo de amadurecimento, e que as grandes distâncias da Amazônia Brasileira são um desafio à parte neste processo: “É preciso que o olhar transcenda às gestões federais. O investimento em saúde, ciência, tecnologia e educação é sempre de longo prazo, o que ultrapassa os quatro anos de um governo. É necessário ter garantias de que tais investimentos serão perpetuados pelas gestões subsequentes e, mais do que isso, que a população esteja supervisionando e acompanhando a execução de tais recursos”, declara.
Para os especialistas, além de fortalecer a atenção básica e hospitalar, é preciso garantir a logística de transporte de paciente. Por esse motivo é tão importante o apoio federal, bem como a mobilização da sociedade para conseguir mais recursos para o SUS, a melhoria do acesso à informatização e estratégias sustentáveis de geração de emprego e renda.
O cenário atual da Região Norte do país
A Região Norte é composta por sete Estados, com a maior extensão territorial e área verde do Brasil. Entretanto, a logística complexa impacta o menor acesso dos pacientes ao sistema de saúde, como aconteceu no transporte durante a pandemia da Covid-19. Com dimensões continentais e poucos centros de referência para realização de exames, o desafio se torna ainda maior, tanto na atenção primária (APS) quanto na secundária. Se isso não bastasse, as desigualdades socioeconômicas contribuem para o atual cenário.
Os contrastes se sobressaem ainda mais em municípios do interior, como é o caso de Alvarães que fica a 530 km de Manaus (AM). Para chegar até a capital, é necessário ir de barco e a viagem pode levar 14 horas. Segundo o Censo 2021, Alvarães tem 16.396 habitantes e 13.672 deles não têm acesso à água. O secretário de saúde do município, Marcus Vinicius Marques, pontua que é importante distinguir a saúde de Manaus com a do interior do Estado: “Em Alvarães nós não temos estradas. Então para transferir um paciente para Manaus, por exemplo, dependendo do tipo de enfermidade, é através do barco ou lancha”.
Segundo Marques, as maiores dificuldades são as localidades distantes, a seca e a cheia dos rios, e a falta de recursos. Conforme o secretário de saúde, a verba que chega do Ministério da Saúde não é suficiente porque o município gasta muito com outros insumos que sequer chegam até a cidade: “É muito cara a saúde de um médico no interior do Estado. Pagamos quase 160.000 por mês para um cirurgião ficar 30 dias no município. Temos um ginecologista que fica 10 dias e cobra 36.000”. De acordo com ele, muitos profissionais não ficam devido à falta de estrutura básica e internet. Para ter acesso a 14 mega, a Secretaria de Saúde paga em torno de 3 mil reais por mês.
Realidade que é explicada pelo médico e especialista Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda. Para ele, a ausência de médicos especialistas, em especial nos municípios do interior, aumenta a necessidade de tratamentos fora de domicílio e, consequentemente, o custo da atenção nesta região: “Logo, não é possível manter unidades de média e alta complexidade de forma equitativa, o que tende a elevar a mortalidade de doenças já bem manejadas em regiões desenvolvidas do país”, observa.
Na opinião do secretário de saúde, a situação ainda não está melhorando politicamente porque o olhar está muito concentrado nas capitais, sem contemplar as regiões com populações ribeirinhas e indígenas. “Os nossos custos e gastos são diferentes. E o Estado do Amazonas é diferente do resto do Brasil. Nós não temos como locomover os pacientes de forma rápida e isso gera custo”, expõe.
Panorama delicado que é de conhecimento do deputado federal Sidney Leite (PSD-AM). O parlamentar afirma que a carência vai desde infraestrutura, saneamento básico e água potável. “A grande maioria dos distritos sequer tem uma UBS. Nós temos um grande vazio no interior do Estado, fazendo do Amazonas, turismo da saúde. Hoje, infelizmente, pela falta de uma estrutura de transporte aéreo, você tem uma fila em que se decide quem vive e quem morre porque não há transporte aéreo suficiente. Se isso não bastasse, temos uma fila de mais de 150 mil pessoas à espera de uma consulta com especialista de exame e também de uma cirurgia”, revela.
Para o deputado, é necessário melhorar a execução orçamentária financeira e diminuir as filas de espera e, com isso, garantir resolutividade e prevenção. Sidney Leite tem buscado na Câmara dos Deputados projetos que tragam melhorias nas áreas de saúde para a região, como a inserção da telemedicina de média complexidade no SUS para diminuir consultas e procedimentos com especialistas.
Atendimento embarcado e em terra
Devido às dimensões continentais da Região Norte do país, as Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSF) atuam na expansão e consolidação da Atenção Básica em comunidades ribeirinhas, por exemplo. Para Michele Rocha de Araújo El Kadri, pesquisadora em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz, a inclusão da UBSF foi uma grande inovação do Ministério da Saúde: “Essa política básica através das UBSF e das equipes de saúde ribeirinhas precisa ser destacada. Agora, precisamos avançar no que colocamos como alternativa além da atenção básica e especializada”, pondera.
Como exemplo de mobilização da sociedade civil, a ONG Zóe leva voluntariamente assistência médica, exames clínicos, cirurgias, infraestrutura hospitalar e profissionais de saúde de várias especialidades para populações ribeirinhas e indígenas do Norte. Criada em 2019 pelo médico-cirurgião Marcelo Averbach, a Zóe realiza expedições regulares para dar conta de uma demanda numa área em que as dificuldades são muito grandes. Mesmo atuando na rede privada de São Paulo, Averbach conhece a região desde 2009:
“São cidades pequenas e municípios grandes. O centro urbano é pequeno e as pessoas acabam se espalhando ao longo dos rios. As populações ribeirinhas acabam acontecendo. Então, tem um povoado aqui, outro ali. E como que você faz para dar um atendimento médico assim? O problema é sério, é grande e de difícil solução”.
Na última expedição, em junho, a ONG Zóe realizou 1.200 atendimentos de saúde, em apenas oito dias, nas regiões de Belterra e na do rio Mamuru, no Pará. Um time de 29 profissionais das áreas da medicina e enfermagem esteve presente. Até o momento, a ONG Zóe realizou 18 expedições e 4881 atendimentos através de 198 voluntários. A próxima expedição ocorre em setembro. De acordo com o médico-cirurgião, trata-se de um modelo de saúde humanitária para inspirar políticas públicas de populações ribeirinhas.
Para Marcelo Averbach, a mescla entre o atendimento embarcado e em terra é um caminho possível para uma saúde mais equitativa.
As dificuldades em levar uma saúde equitativa para a região
Se a pouca infraestrutura, falta de especialistas e logística complexa são alguns dos desafios, outro são as doenças erradicadas em muitas regiões do país, mas existentes no Norte. A médica sanitarista e pesquisadora Maria Luiza Garnelo Pereira, intitula de tripla carga de doenças. De acordo com ela, doenças transmissíveis, como a malária, seguem persistentes na região. Além disso, há o crescimento exponencial das doenças crônicas não transmissíveis como a hipertensão e o diabetes, que, conforme a médica, são agravadas pelo sobrepeso e obesidade, associados à uma transição alimentar caracterizada pelo elevado consumo de alimentos processados e ultraprocessados, os alimentos mais baratos e acessíveis para a população.
Por fim, um terceiro ponto é a violência, classificada na chave de Causas Externas de Doenças, expressas em acidentes, lesões por agressão e homicídios: “Essas estão profundamente associadas à pobreza, às desigualdades sociais, carências de acesso às oportunidades de melhoria das condições de vida e o aumento da atuação do narcotráfico e outras práticas ilegais como a exploração predatória do meio ambiente”, analisa Pereira. “Para melhorar a equidade em saúde em nossa região, precisamos de uma grande mobilização da sociedade (sociedade civil, parlamentares e executivo) em prol de recursos adicionais para o SUS na região Norte”.
A falta de profissionais também é um grande desafio. O Amazonas é o terceiro estado do Brasil, com menos de dois médicos por mil habitantes, segundo dados da Demografia Médica no Brasil 2023. O médico sanitarista Adriano Massuda diz que o desmonte do Mais Médicos, no governo anterior, trouxe impactos e desassistência para a região.
“As ações têm que continuar com equipes completas e atenção primária, principalmente. A retomada do Mais Médicos é um bom sinal. Mas não basta apenas colocá-los lá. Eles têm que ter condição de trabalho, investimento, infraestrutura, tecnologia, capacidade de logística e, por isso, é cada vez mais importante contar com a saúde digital”, justifica. Ele ainda pontua que o programa Mais Médicos vem como uma solução emergencial importante, mas é necessário pensar em contratação a longo prazo: “Com carreiras no SUS em áreas estratégicas, na atenção básica e hospitalar, para garantir um provimento de profissionais por carreira municipal e estadual.”
Michele Rocha de Araújo El Kadri reforça essa ideia. Segundo a pesquisadora, mesmo tendo a melhor tecnologia, são necessários profissionais para operar esses recursos: “Esse é um ponto muito sensível que o SUS ainda não conseguiu dar conta, que é a fixação e formação desses profissionais em seus territórios. É preciso um olhar diferenciado. Esse é o investimento que se faz para produzir equidade no acesso à saúde no Brasil”, esclarece.
Maria Luiza Garnelo Pereira ressalta também a importância de revisar os critérios de custeio do Ministério da Saúde para o repasse federal aos municípios: “Os critérios atualmente adotados para calcular os valores repassados não são adequados às características da região Norte”, destaca.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.