Gonzalo Vecina, médico sanitarista: “Caminho não é refundar o SUS, mas fortalecer diretrizes e buscar eficiência”
Gonzalo Vecina, médico sanitarista: “Caminho não é refundar o SUS, mas fortalecer diretrizes e buscar eficiência”
No novo episódio de Futuro Talks, Gonzalo Vecina analisa o atual momento da saúde pública e as saídas para superar os desafios
No setor da saúde muito se fala sobre a necessidade de mudar a forma como o sistema funciona. Diante de tendências como envelhecimento, aumento do câncer e doenças crônicas e novas terapias complexas e de alto custo, o financiamento principalmente da saúde pública será cada vez mais pressionada em sua missão de oferecer acesso universal. Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina, que participou da fundação de pilares importantes como o próprio Sistema Único de Saúde (SUS) e da Anvisa, o caminho não é refundar o SUS, mas sim fortalecer suas diretrizes e buscar eficiência. Ele é o convidado do episódio mais recente de Futuro Talks.
O atual professor da faculdade de saúde pública da Universidade de São Paulo (USP) e do mestrado profissional da Fundação Getulio Vargas (FGV) explorou, durante a conversa, os caminhos para fortalecer o sistema público. Ele não vê muito espaço para um aumento do financiamento da saúde diante da situação fiscal e de outras necessidades do país, por isso reiterou a importância da busca por eficiência. Vecina inclusive comentou sobre os ajustes fiscais e criticou a existência das emendas parlamentares. “Uma excrecência em um sistema presidencialista como o Brasil”, afirmou.
Diante de tantas demandas, uma das prioridades que deveria ser seguida é a busca pela equidade. E, neste sentido, conhecer com mais profundidade a epidemiologia é o caminho para enxergar as vulnerabilidades e agir para reduzi-las. Vecina também comentou que o Brasil terá a saúde que a sociedade quiser. Mas para isso, ela precisa se manifestar. “Foi assim na Aids, a sociedade exigiu e o governo atendeu”, completou.
Ao longo do episódio o médico sanitarista abordou ainda a aproximação da saúde pública e privada e lembrou que essa relação existe há muito tempo, mas o problema é que ela não foi planejada e precisa de regulação e controle. Falou ainda sobre judicialização, sua visão a favor de uma agência única de avaliação de tecnologias e a pressão política em cima do Ministério.
Confira a entrevista a seguir:
Como você viu o novo pacote de ajustes fiscais e como isso pode beneficiar de fato o SUS?
Gonzalo Vecina – O pacote é necessário. Nós precisamos ter o mínimo de equilíbrio fiscal. A questão é como construir o equilíbrio fiscal, particularmente num país que tem uma taxa de juros como a que nós temos. O Brasil tem as necessidades básicas da economia relativamente cumpridas. A inflação está razoavelmente sob controle, embora como o país está crescendo e está crescendo o emprego, existe uma inflação, que é estimulada pela própria demanda. Mas, de qualquer sorte, há necessidade de estabelecer um equilíbrio. É lógico que esse equilíbrio é cada vez mais difícil, porque o Brasil tem uma dívida, aliás, não existe país no mundo que não tenha dívida, todos os grandes países têm dívida, só que a nossa dívida tem um juro muito alto. O Japão, por exemplo, tem juros negativos. Então, o equilíbrio fiscal é algo mais complicado, principalmente quando você tem um Banco Central com uma visão muito financista da economia brasileira. Há necessidade de estabelecer um regime de equilíbrio fiscal, porém, não da forma como a Faria Lima está nos dirigindo a fazer, sacrificando os mais pobres. O problema mais importante deste país é a desigualdade. Nós só vivemos para viver melhor, e viver melhor significa ter igualdade. Na minha opinião, há uma relação direta entre viver melhor e igualdade. E indireta, claro, quando você tem desigualdade, você tem sofrimento e fome.
E essa questão de destinar as emendas parlamentares para a saúde?
Gonzalo Vecina – É melhor do que nada. Agora, vamos deixar claro que as emendas parlamentares são uma excrescência da democracia brasileira. Em nenhum país do mundo civilizado, nós vamos ter um parlamento dirigindo o orçamento num sistema presidencialista. Num sistema parlamentarista, ok, é desse jeito que funciona, mas num sistema presidencialista, isto é uma excrescência, devido ao fato que quem elegeu o presidente elegeu um congresso que não está a serviço da mesma política. Então, um congresso, que foi eleito pelo povo, está fazendo as emendas parlamentares, está interferindo no modelo de democracia que a nossa Constituição, que foi feita por congressistas que nós elegemos em 1988. Enfim, eu gosto da ideia de que elas vão para a saúde, mas elas não são uma forma correta de governar.
O SUS é subfinanciado hoje? Como você avalia esse cenário?
Gonzalo Vecina – O orçamento do SUS de 2023 é igual a R $ 2.500, arredondando tudo, per capita por ano. O orçamento da assistência médica supletiva é de R $ 5.000,00, per capita por ano, em 2023. Será que tem muito dinheiro aqui? Tem pouco dinheiro ali? Eu deixo para quem está nos assistindo decidir isso. Agora, além disso, nós temos a informação de que nós estamos gastando mais ou menos 10% do PIB, que é o que, na média, os países da OCDE gastam, entre 10% e 15% do PIB. Mas o gasto público, ou seja, a quantidade desses 10% a 15% do PIB que é gasto público se situa em torno de 70% a 80%. A Inglaterra, por exemplo, gasta 10% do PIB na saúde e 80% disso vai para o sistema público. A França, Itália, Espanha, Portugal, nessa linha.
“O Brasil está gastando 9,6% do PIB em saúde, só que 40% são para gasto público. Tem algum número mágico sobre o que deveria ser? Não. Mas todos os indicadores mostram que o nosso gasto em saúde no setor público é inferior àquilo que seria recomendável.”
Como aumentar esse orçamento?
Gonzalo Vecina – Eu não vejo a saúde abocanhando mais recursos do que ela está abocanhando hoje. Qual é a saída? A saída é melhorar as nossas entregas. Há como fazer, temos que fazer e é à medida em que a gente conseguir melhorar essas entregas, vamos conseguir melhorar o financiamento, não só do SUS, como também dos outros setores que são fundamentais. A nossa educação é muito ruim. Primeiro, não temos atenção integral na educação. Na maior parte do país, os nossos professores são muito mal pagos. Então, tem um caminho também a ser feito em educação, saúde, segurança alimentar. Nós reinstalamos a fome no Brasil no último mandato. Nós não tínhamos mais caso de desnutrição em crianças desde os anos 2000. Essas políticas que devolvem condição de vida para a sociedade são muito dificilmente construídas. O governo anterior acabou com essas políticas e nós tivemos que reconstruir essas políticas para diminuir a fome dentro do Brasil. Mesmo assim, temos algo em torno de 15 a 20 milhões de pessoas que passam fome neste país. Num país que hoje é celeiro do mundo em proteína vegetal e animal, ou seja, é um crime o que nós estamos cometendo. Como ter mais dinheiro para a saúde, vamos ter que melhorar o Brasil.
Eu escuto às vezes de algumas fontes que o SUS, da forma como ele nasceu, não vai funcionar mais. Você acha que precisa haver uma refundação do SUS?
Gonzalo Vecina – Tem dois tipos de refundadores. Um é o refundador que quer que o SUS se transforme num jeito de as pessoas que ganham dinheiro às custas das outras pessoas ganharem mais dinheiro. Os financistas, de uma maneira geral, querem vender assistência à saúde, como é o caso da assistência médica suplementar. A assistência médica suplementar não está voltada para a assistência à saúde. Está voltada para garantir a remuneração do capital das empresas que vendem atenção à saúde. E esse é o grande problema da assistência médica suplementar. A assistência médica suplementar tem uma inflação anual da ordem de 18% a 20% quando a inflação nossa está sendo na ordem de 4% a 5%. O que é essa diferença entre o 4% e o 20%? A diferença entre o 4% e o 20% é a luxúria. Não tem outra explicação. Hoje, na assistência médica suplementar, você tem um consumo de alguma coisa em torno, é só ver os dados da INSS, de 188 ressonâncias magnéticas para cada grupo de mil beneficiários por ano. Isso na OCDE é 50. Como é que explico do 50 para o 188? Por vontade de ganhar dinheiro, se produzem exames que são muito caros. Por que que hoje a assistência médica suplementar interna 18% da sua clientela, quando a Inglaterra interna 10% e o SUS interna 8%? Qual é a razão disso? Então, o sistema privado está voltado para isso. Esse é um tipo de gente que quer uma solução diferente para a saúde pública.
E o outro tipo de refundador?
Gonzalo Vecina – Tem um outro tipo de gente, os sonhadores da esquerda. Os caras que imaginam que um dia a gente vai voltar a ser, vai ter a possibilidade de ser um país comunista. Nós vamos criar aqui a Coreia do Norte 2 ou coisa parecida. Dos dois lados nós temos um tipo diferente de sacanagem. Uma sacanagem do mal, uma sacanagem do bem. Mas nenhuma das duas vão acontecer. O que nós temos é que insistir nos princípios do SUS. Da universalidade, da integralidade e da equidade. Nós temos que insistir nas diretrizes do SUS. De descentralização e do controle social. Esse é o cerne da construção do SUS. Dá para fazer um SUS com estes comandos? Eu não tenho a menor dúvida do que dá. Mas nós temos que aperfeiçoar os instrumentos com os quais nós estamos trabalhando na construção desse SUS. Nós temos que ser mais eficientes. O Brasil tem uma administração pública extremamente ineficiente. A administração pública para comprar e contratar demora uma barbaridade. O que significa demorar para contratar? Um posto de trabalho que fique vago vai demorar para ser preenchido. O que significa demorar para comprar? Tem que ter estoques imensos. E o que é o estoque? Estoque é dinheiro parado na prateleira, não é dinheiro a serviço da produção. Então, nós temos que aumentar a eficiência do Estado.
O que é aumentar a eficiência do Estado?
Gonzalo Vecina – Comprar mais rápido e contratar mais rápido. Não significa comprar pior, nem contratar pior. É só mais rápido. É possível? Sim. Temos que melhorar a nossa capacidade de incorporar ferramentas que fazem com que a atenção à saúde flua de maneira melhor. Por exemplo, marcação de consultas e acesso a exames. A regulação do acesso é necessária ser transformada, revolucionada. Mas, para isso, nós temos que ter objetivos e um planejamento adequado para fazer essas construções. O complexo econômico e industrial da saúde pode gerar recursos para o funcionamento do Estado brasileiro da saúde, sem dúvida. Veja, nós temos o maior sistema de atenção à saúde público do mundo. São 210 milhões de brasileiros que têm direito à assistência à saúde. Isso significa dizer que eu tenho um mercado de 210 milhões de brasileiros.
“Mercado é um valor fundamental para você conseguir movimentar a economia. Temos que andar no sentido de ter um complexo que utilize a potencialidade de produção de valor desse mercado. Há caminhos, porém temos que construí-los.”
Há espaço para uma interligação entre os setores públicos e privados?
Gonzalo Vecina – Não existe uma saúde estatal no Brasil. 40% da rede hospitalar brasileira é pública, 60% privada. Hoje, 95% dos transplantes realizados no Brasil são no SUS, mas tem 5% no setor privado. São transplantes importantes também, transplantes de rim, transplantes de coração, transplantes de fígado, que são feitos pela iniciativa privada. Na hemodiálise, 85% das sessões de hemodiálise são realizadas na rede privada. Nós temos hoje no Brasil em torno de 180 mil pacientes em hemodiálise. Destes, a grande maioria, 95%, são pacientes do SUS, mas que realizam a sua hemodiálise em 85% na rede privada. Então, existe uma relação entre a rede privada e a rede estatal. Acontece que isso não foi planejado. Isso foi acontecendo. Hoje, a atenção primária à saúde, particularmente a questão da estratégia da saúde da família, 90% da estratégia da saúde da família no Brasil é executada pelo setor privado por causa do agente comunitário de saúde que não pode ser concursado na maior parte do país. Isso não foi resolvido. Existe um espaço onde o público e o privado podem se encontrar e podem produzir eficiência. Mas tenho que pensar e planejar esse encontro. É possível, mas muito difícil. Em parte difícil pelas minudências ideológicas que existem, que nós temos que ultrapassar.
Você acredita que estamos num caminho de mais diálogo para que isso aconteça?
Gonzalo Vecina – Veja, tudo isso é um processo de amadurecimento. E é um processo de amadurecimento que é alimentado pela prática. E eu acho que esses 35 anos do SUS foram um tempo de evolução. Nós nascemos sem orçamento, porque o que a Constituição disse que seria o orçamento não foi, que era o Fundo de Previdência e Assistência Social. Aí veio o CPMF, o ministro Malan passou a mão no CPMF, usou a CPMF para engordar os financistas de plantão pagando juros. Aí o Serra veio e fez a emenda constitucional 29 e o SUS respirou. Passou a receber 15% da despesa, da receita bruta dos municípios, 12% da receita bruta dos estados e o que gastou do ano passado, mais o que variou a inflação e o PIB do governo federal. Em 2015 veio uma nova emenda constitucional, emenda constitucional 86 que destina, foi um avanço, que destina 15% da receita corrente líquida do governo federal para o SUS. Aí veio o desastre em 2016 da emenda constitucional do fim do mundo, a 95, que diz que os gastos públicos estão paralisados durante 20 anos. Aí passamos o desastre da pandemia e do pandemônio e entramos na gestão Lula. O arcabouço revogou a emenda constitucional 95 e voltou a ter validade a emenda constitucional 86 que destina 15% da receita corrente líquida, que é muito melhor do que o que estava disposto na emenda constitucional 29 como gasto do governo federal. Então, o que eu vejo? Eu vejo um amadurecimento dentro das dificuldades do orçamento brasileiro, dentro das dificuldades de construir um Brasil mais igual para a sociedade. Avançamos, mas o suficiente. Tem muita batalha pela frente e precisamos entender como aproveitar os momentos que essa batalha nos oferece para caminhar e fazer um sistema de atenção à saúde que sim constrói democracia. Democracia é saúde, saúde é democracia, como disse Sérgio Arouca. Temos que caminhar nesse sentido.
E as visões ideológicas atrapalham esse caminho?
Gonzalo Vecina – Sempre vai ter uma questão ideológica. Há quem ache que não existe ideologia. Ninguém enxerga o mundo senão através de uma lente ideológica própria. Todos nós temos um olhar ideológico. Esse olhar ideológico é uma interpretação filosófica de como eu enxergo a minha realidade e quais são as consequências do meu enxergar, do ponto de vista do meu agir, que ele é informado pela minha ideologia. Quando eu digo que eu sou um sujeito que busco a igualdade na vida eu tenho uma ideologia. Essa ideologia está dando sustentação para eu dizer que igualdade é o que eu tenho que perseguir. Todos nós temos uma visão ideológica. O que nós temos que tomar cuidado é que essa visão ideológica passe para um território totalmente impossível. Com isso eu quero dizer também que a utopia é algo a ser perseguido. Ninguém transforma a realidade sem pensar na utopia, porque fazer mais do mesmo não significa mudar o mundo. Só fazemos mais do mesmo se não quisermos mudar nada. Agora, se nós quisermos mudar alguma coisa, teremos que buscar a utopia. Só que existem utopias e utopias. Imaginar um mundo socialista amanhã é uma utopia inalcançável na minha opinião hoje.
“Mas existe a possibilidade de ter um mundo mais igual? Essa é uma utopia que nós temos que perseguir dentro do sistema capitalista dentro do sistema capitalista como acontece hoje com os países civilizados na Europa.”
Temos visto movimentos de parcerias público-privadas, como gestão de hospitais públicos por instituições privadas. Qual sua opinião sobre isso?
Gonzalo Vecina – Eu participei no governo Covas aqui em São Paulo em 1995 da construção do arcabouço que deu condições do estado de São Paulo introduzir as organizações sociais na gestão dos hospitais públicos. Eu acredito nisso, é um caminho. Agora, esse caminho precisa de regulação porque onde tem dinheiro e tem gente, tem um potencial ladrão. Tem que ter controle. Mas o Instituto do Coração não seria a instituição que é hoje não fosse uma instituição privada chamada Fundação Zerbini. O Instituto Butantan é nossa sede de fabricação de vacinas no Brasil porque tem um ente privado gerenciando por meio da Fundação Butantan. A Fundação Oswaldo Cruz, uma fundação pública do governo federal, só consegue fazer vacinas e remédios em Biomanguinhos e Farmanguinhos por causa da Fiotec, uma fundação privada que foi construída por servidores da Fiocruz e que é responsável pelas transações que são realizadas entre o Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz para produzir vacina e medicamentos. Temos muitos exemplos de como é possível fazer algo que seja bom. Se você olhar a Rede Sarah Kubitschek é um serviço social autônomo que é um negócio bem próximo do privado. O caminho é esse, só que tem que ter regulação.
E esse movimento de cartões de desconto, como você tem visto isso?
Gonzalo Vecina – Vou resumir de uma forma um pouco mais dura: acho que existem pequenos mercenários e grandes mercenários. Os grandes mercenários são as operadoras, elas ganham dinheiro vendendo planos de saúde que não são assistência à saúde, elas atendem às necessidades dos empresários que querem oferecer para os seus trabalhadores um benefício salarial, esse benefício salarial chama plano de saúde. Plano de saúde tem compromisso de entregar saúde? Não, ele tem compromisso de entregar um benefício para os trabalhadores e aí vai ser uma relação trabalhador usuário com o prestador de serviço que é contratado pela operadora, mas a operadora não verifica se essa relação se traduz em saúde. Esses são os grandes mercenários que querem ganhar dinheiro e fazem isso vendendo planos de saúde normal. É do capitalismo. E existem pequenos mercenários, que são os que estão operando esse tipo de sistemas no out of pocket. É lógico que quem faz isso está desesperado, tentou no SUS e foi colocado em uma fila de dois anos e o médico falou para ele você está com um problema de câncer, você precisa correr. O cara vai tentar qualquer coisa e aí ele compra uma solução que não é solução, que são esses exames vendidos. Então, são pequenos mercenários que se aproveitam disso e que eu não vejo como regular esse tipo de atividade. Acho que a única saída para isso é o SUS funcionar. Tem jeito de o SUS funcionar. Mesmo assim vai sobrar um espaço para a medicina individual. Sempre vai ter gente que vai querer comprar alguma coisa diferente e sempre vai ter gente querendo vender alguma coisa diferente.
E não dá, por exemplo, para usar essa ferramenta de consultas e exames mais baratos para ajudar a desafogar o SUS?
Gonzalo Vecina – O que acontece no setor privado não desafoga nada, porque não tem continuidade. Você vai lá no setor privado, faz um exame, o exame te diz que você precisa fazer uma cirurgia, mas não tem dinheiro para pagar a cirurgia e aí cai no SUS. O que tenho que fazer é resolver a questão do SUS, tenho que estruturar a entrada do sistema, a regulação. Esse é um dos problemas importantes do SUS. O SUS precisa criar um sistema de regulação de acesso a consultas, a tratamento, internação e radioterapia e essas outras coisas. Como faz isso? Nós conseguimos construir um sistema de acesso adequado para transplantes? Conseguimos. Por que não conseguiremos fazer um sistema de regulação de acesso para exames e consultas? Podemos fazer. Qual é a característica mais importante? Cada estado tem uma fila. Nós temos que construir filas estaduais, filas voltadas para regiões metropolitanas. Não dá para falar da fila do município de São Paulo, por exemplo, que tem cerca de 12 milhões de habitantes e 15% das internações que são realizadas na cidade de São Paulo são de não paulistanos. 70% da APAC de câncer da cidade de São Paulo são de não paulistanos. Mas nada disso é planejado. Então, temos que planejar isso. Tem que haver uma integração entre o governo do estado e os municípios e essa integração significa ter uma governança comum aceitável pelos dois atores.
Essa discussão das filas foi uma das grandes dores do governo atual, certo?
Gonzalo Vecina – Esse é um problema vital. Veja, quantas consultas eu tenho que oferecer de cardiologia? Não sei, mas você conhece a fila. Só que essa fila é duplicada nos sistemas. Nós não temos a interoperabilidade ainda, o Open Health. Tecnologia existe para fazer isso e nós temos que caminhar para um prontuário de um hospital poder ser lido numa unidade básica de saúde independente se o hospital é público ou privado. Os prontuários têm que ter interoperabilidade, esses softwares de gestão, caminhamos para isso. É possível desde que você e eu saibamos o que nós estamos buscando.
Mas supondo que um dia a gente tenha esse sistema funcionando e interoperável, temos capacidade de serviço para atender todos?
Gonzalo Vecina – Como é que a gente faz para ter alguma coisa? Tem que planejar. Saber o que se quer e quanto se quer para construir algum tipo de acesso. Para isso, preciso ter uma noção do que está acontecendo. Por exemplo, às vezes a gente olha para os países desenvolvidos e fala “olha, a prevalência de câncer de próstata na Inglaterra é 10, aqui no Brasil é 6”. Alguma coisa está errada. Se são países relativamente semelhantes, as prevalências deveriam ser semelhantes ou eu estou medindo errado agora. Tem certas coisas que são muito difíceis. Qual é a necessidade de consultas de cardiologia?
“Dá para olhar para a Inglaterra e dizer quantas consultas eu teria que oferecer aqui? Não. A causa cardiovascular é a causa mais importante de morte no Brasil? Ainda é, mas nós teríamos que olhar para a nossa realidade conseguindo fazer um mínimo de integração regional, com base populacional, sobre as demandas.”
Na sua opinião, qual deveria ser a prioridade zero do SUS diante de todos esses desafios?
Gonzalo Vecina – Veja, epidemiologia é uma boa ciência para fazer gestão. A epidemiologia nos oferece pelo menos duas ferramentas importantes. Uma chama risco, outra chama vulnerabilidade. Então, tenho que olhar para a população em termos de risco e vulnerabilidade. Como é a mortalidade materna brasileira? A cada 100 mil nascimentos morrem 60 mães. A OMS diz que deviam morrer 10. Agora, quando eu vou olhar a vulnerabilidade, mais da metade da mortalidade é entre as mães pretas. As mães pretas morrem o dobro das mães brancas. Então, a vulnerabilidade é fundamental. Teríamos que fazer um processo de acesso a um parto e a uma condição de assistência pré-parto mais adequada para quem tem maior probabilidade de morrer, para as mais vulneráveis. Isso se chama equidade e a equidade é fundamental para construir aquilo que eu estou buscando, que é a igualdade. Equidade é diferente de igualdade. As ferramentas nós temos para operar isso, o que nós precisamos é querer criar um sistema de regulação que mostre o que é demanda. E aí eu vou trabalhar com essa demanda. Talvez o passo seja o sistema de regulação de acesso.
Só que no dia a dia, a ministra tem sido pressionada por várias forças políticas. Como fazer essas transformações com o carro andando?
Gonzalo Vecina – Não existe nenhuma surpresa nisso. Os cargos políticos têm essa característica. Eu já estive em cargos políticos. Você quando está no cargo político é atacado e você pode se defender ou atacar. Eu trabalhei, por exemplo, com o Serra. Ele é um sujeito que vivia no ataque. Foi um excelente ministro que o Brasil teve e conseguiu grandes vitórias, como o genérico, a criação da Anvisa, a emenda constitucional 29. Alguns ministros trabalham mais nesse espaço. A Nísia é uma técnica que não domina o congresso, ela nunca atuou no legislativo. Sempre teve uma vida muito competente e criativa na Fundação Oswaldo Cruz, ela tem um comportamento diferente frente a um congresso tão inamistoso como esse que nós temos. A sensação é que Nísia está acuada boa parte do tempo, porque ela não montou uma estrutura que pudesse dar apoio mais adequado a ela para convocar pessoas como o presidente do Congresso o presidente da Comissão de Saúde. Faz parte. Nada surpreende. É o jeito fazer as coisas.
Mas demora mais para avançar.
Gonzalo Vecina – Sim, demora mais para avançar. Tem solução para isso? Acho que trocar a ministra não é uma solução. Temos que fortalecer a ministra, fortalecer o Ministério da Saúde, tentar fazer com que o ministério consiga dar esse salto que precisa ser dado no relacionamento particularmente com o congresso.
A população está envelhecendo e, ao mesmo tempo, também há um custo cada vez maior das novas tecnologias, que deixam a equação do acesso mais complexa. Como resolver isso?
Gonzalo Vecina – O Brasil terá o que o Brasil quiser. E a quem quer são os brasileiros, a sociedade. O sistema de tratamento da AIDS, por exemplo. Em 1995 se tomou a decisão de que todo o caso de AIDS seria tratado com o que houvesse de tecnologia. O mundo inteiro olhou para o Brasil e perguntou que decidiu isso? Foi a sociedade, as ONGs, os portadores do vírus da AIDS, os médicos infectologistas, as pessoas que defendiam o direito à vida. Hoje, o Brasil tem um pouco menos um pouco mais de um milhão de portadores do vírus e não existe judicialização de medicamentos da AIDS, praticamente todos os medicamentos estão incorporados. Se aparecer um remédio para tratar uma doença rara, a sociedade brasileira quer? Que se manifeste. Nós precisamos é oferecer para a sociedade uma estrutura de tomar decisões. Essa estrutura hoje chama-se Conitec e tem outra para a saúde suplementar.
E a discussão de agência única?
Gonzalo Vecina – Temos que ter uma única estrutura para os ricos e para os pobres. Essa estrutura, uma vez decidida, vai ser a responsável por discutir dentro do estado o financiamento daquilo que, pressionado pela sociedade, estamos tentando oferecer para quem necessitar desse medicamento. Eu te dei uma resposta simples, mas na verdade é uma resposta extremamente complexa.
O movimento para reduzir judicialização acaba empurrando a gente para essa discussão de agência única?
Gonzalo Vecina – Essa foi uma discussão muito importante. A constituição de 88 escreveu o artigo 196 que fala de direitos e deveres. Aí veio a judicialização ao longo do tempo. O Conselho Nacional de Justiça há uns 10 anos atrás criou uma comissão para discutir judicialização. Eu fiz parte dessa comissão durante 6 anos, foi ainda quando o Lewandowski era o presidente do STF. Enfim, houve uma construção. O que o Gilmar Mendes fez foi algo natural com base nisso que foi construído ao longo do tempo. E o que ficou decidido é que medicamentos que devem ser distribuídos têm que ter sido aprovados pela Anvisa e pela Conitec, ou seja, é algo natural. No mundo inteiro é assim. Na Inglaterra você tem que ter a aprovação na agência de vigilância sanitária deles e depois tem que ser aprovado no NICE para ser entregue para a população inglesa. O que o STF fez foi o natural. Caminhemos nesse natural, vamos dar consistência para esse natural fazendo as entregas que temos que fazer para a população brasileira.
Você participou da fundação da Anvisa e agora as agências estão muito pressionadas não só pela falta de recursos, mas também politicamente. Como você avalia o papel das agências neste momento?
Gonzalo Vecina – Faz parte da vida ser complicado. Para que uma democracia exista, é natural que existam freios e contrapesos. É preciso uma ação do executivo junto com o legislativo, sob a vigilância do judiciário, para que esse sistema de freios e contrapesos funcione. O que não pode é ter a tal da dupla porta nas agências reguladoras. O único medo que tenho não é do subfinanciamento, isso faz parte, de tempos em tempos vai ter subfinanciamento. O que acho perigoso é ter agentes econômicos interessados naquela atividade reguladora. Algo que ela não deve fazer é tornar o mercado mais fácil para alguns desses operadores. Isso é o grande medo que eu tenho, de que as agências reguladoras passem a servir ao mercado.
Estamos nesse risco?
Gonzalo Vecina – Sim, e já aconteceu antes. A ANS já foi operada por pessoas da dupla porta, mas tudo passa, de quatro em quatro anos troca e aí vem uma nova geração. Então, é ruim. Tem solução? Não tem, às vezes a solução ruim chamada tempo, mas ainda bem que ela existe.
Quais são suas perspectivas para o SUS em 2025?
Gonzalo Vecina – Eu acho que o Brasil, de novo, tem dinheiro em caixa, tem o agro, tem uma balança de pagamentos bem funcionante. O que temos que ter cuidado é com esse semipresidencialismo, semiparlamentarismo. Espero que em 2025 isso continue assim e que nós consigamos fazer o que nós estamos fazendo, que é avançar continuamente dentro das adversidades que nós já conhecemos e caminhar para 2026, que é o tempo que nós vamos ter eleições para presidente e para governador. Precisamos conseguir chegar lá com um país adequadamente administrado, que a gente consiga punir aqueles que trabalharam contra a democracia em 8 de janeiro de 2023. Isso não pode ser esquecido, foi extremamente grave para a democracia brasileira.
Quais são as pautas de saúde que temos que prestar atenção aqui no Futuro da Saúde?
Gonzalo Vecina – Acho que a pauta da incorporação de tecnologia, esse negócio do Open Health, da teleconsulta, da utilização da capacidade de processamento eletrônico de dados para melhorar a vida vital fundamental. A outra é a pauta da utilização das ferramentas de geração de igualdade vulnerabilidade e risco a epidemiologia e a regulação de acesso, são fundamentais.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.