Saúde mental na Atenção Primária, uma mensagem poderosa e um passo crucial para o SUS
Saúde mental na Atenção Primária, uma mensagem poderosa e um passo crucial para o SUS
Em artigo para Futuro da Saúde, Bernardo Baron, do ImpulsoGov, e Bruno Ziller, do Instituto Cactus, abordam o impacto das ações de saúde mental na atenção primária
“Quando você consegue medir o que está falando e expressá-lo em números, você sabe algo sobre isso; mas, quando não pode expressar em números, seu conhecimento é de um tipo insuficiente e insatisfatório”, disse o físico norte-irlandês “Sir” William Thomson, mais conhecido como Lord Kelvin, em 1883. Na era pós-internet, a frase acabou abreviada como apenas como “Aquilo que não se pode medir, não se pode melhorar”, e é usada aqui e ali por gurus do planejamento em negócios para ressaltar a importância dos números na melhoria de qualquer tipo de processo.
Uma recente pesquisa desenvolvida pela ImpulsoGov trouxe a máxima de Lord Kelvin para umas das áreas que, à primeira vista, parecem mais avessas ao uso de números: a mente humana. Ou melhor, as questões de saúde que afetam a mente humana, e que tornam a saúde mental uma das maiores preocupações da saúde pública brasileira na atualidade.
O assunto vem ganhando cada vez mais espaço no debate público, com o crescimento do ‘Setembro Amarelo’, por exemplo, e não é à toa. Em 2021, os transtornos mentais representaram 7,8% da carga total de doenças no Brasil, ocupando o quarto lugar entre todas as causas de morte e invalidez. A pandemia de COVID-19 potencializou essa situação, com um aumento de 13% na prevalência desses transtornos entre 2019 e 2021. Em um momento em que o Ministério da Saúde se prepara para discutir novos indicadores para avaliar a qualidade da Atenção Primária à Saúde (APS) – a porta de entrada de todo o sistema público de saúde – o estudo realizado pela ImpulsoGov chama a atenção para a necessidade de incluir essas questões entre as prioridades do SUS.
Diante desse cenário, foram analisadas ações já atribuídas aos profissionais da APS, como enfermeiros e agentes comunitários de saúde. Dentre elas, identificou-se aquelas com evidências mais sólidas de que funcionam e são um uso efetivo dos recursos do SUS. As conclusões destacam quatro ações mais promissoras: I) as abordagens familiares para o cuidado em saúde mental de crianças e adolescentes; II) a troca de experiências e discussão de casos entre as Equipes de Saúde da Família e as equipes multiprofissionais da Atenção Primária e dos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS); III) a realização de atendimentos conjuntos envolvendo profissionais de diferentes especialidades; e IV) o acompanhamento e orientação aos quadros de depressão e
isolamento em idosos.
Tomemos o exemplo da ação mais promissora identificada pelo estudo da ImpulsoGov: a abordagem familiar para questões de saúde mental com foco em crianças e adolescentes. Trata-se de um problema especialmente urgente: os transtornos mentais representam quase um quinto da carga de doenças encontradas na faixa etária de 10 a 19 anos, ou 2,4x a proporção encontrada na população como um todo. Revisando um total de 29 estudos sobre o tema, a pesquisa revelou que intervenções psicossociais ou educacionais envolvendo pais e responsáveis são capazes de reverter em média 35% mais casos de transtornos de saúde mental entre crianças e adolescentes do que o cuidado usual, a um custo para o SUS de apenas R$ 114,77 por caso atendido.
Outras ações recomendadas no documento falam de outros públicos com questões emergentes de saúde mental, como os casos de depressão e isolamento entre idosos, ou de formas já bem conhecidas no SUS de aumentar a efetividade do sistema por meio do cuidado compartilhado e multiprofissional. Para essas últimas, além de permitir que casos mais complexos sejam discutidos e manejados de forma colaborativa, evita-se encaminhamentos desnecessários e aumenta-se a capacidade resolutiva dos profissionais da rede primária em lidar com casos semelhantes no futuro.
Apesar de já estarem prescritas há anos como atribuições da rede de Atenção Primária em documentos de referência do Ministério da Saúde, sem indicadores específicos, a implementação efetiva dessas ações nem sempre é priorizada. A inclusão desses temas como norteadores para novos indicadores no novo modelo de financiamento da APS poderia ser um catalisador para a melhoria do cuidado em saúde mental em todo o país, já que o assunto vem cada vez mais sendo discutido em diversos âmbitos da sociedade.
Esse estudo oferece um importante ponto de partida para qualificar as discussões em torno dessa área tão importante e muitas vezes negligenciada nas discussões sobre fortalecimento da rede primária – a saúde mental. A partir dessas informações, é necessário reforçar o diálogo com especialistas na área e incluir profissionais de saúde e a população atendida na discussão, de forma a aprofundar e qualificar o debate, inclusive propondo indicadores de qualidade que incentivem a adoção efetiva dessas práticas cientificamente comprovadas e altamente custo-efetivas.
Não podemos ignorar o contexto mais amplo em que essa discussão se insere. Sabemos que o SUS tem as ferramentas para atender de forma resolutiva os casos de saúde mental sem necessidade de encaminhamentos demorados, cumprindo os princípios de acesso e integralidade do cuidado. Por outro lado, também sabemos que a saúde mental ainda enfrenta significativo estigma em nossa sociedade, e muitas vezes é vista como secundária em relação à saúde física. Por isso mesmo, a inclusão do tema entre indicadores prioritários da APS mostraria que o Ministério da Saúde escutou o centenário conselho de Lord Kelvin, enviando uma mensagem poderosa para a sociedade sobre a importância de medir e monitorar para avançarmos em direção a uma saúde mental de qualidade para toda a população.
*Bernardo Baron, especialista em Avaliação de Impacto na ImpulsoGov, e Bruno Ziller, coordenador de projetos e responsável pelo braço de advocacy do Instituto Cactus
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.