Saúde mental dos profissionais de saúde ainda é desafio que demanda políticas públicas e ações das instituições
Saúde mental dos profissionais de saúde ainda é desafio que demanda políticas públicas e ações das instituições
Políticas públicas e organizacionais voltadas para a categoria devem priorizar prevenção e acolhimento dos profissionais da área
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Publicada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 2022, a maior revisão sobre saúde mental do Século XXI apontou que cerca de um bilhão de pessoas no mundo convivem com algum transtorno mental. Na saúde, entre médicos, enfermeiros, técnicos, gestores e integrantes das equipes multidisciplinares, o cenário não é diferente. Isso porque esses profissionais precisam lidar diariamente com fatores estressores complexos, como situações adversas dos pacientes, limitações provocadas pelas desigualdades e iniquidades de acesso e sobrecarga de trabalho, levando a um esgotamento. Diante deste quadro, organizações de saúde passaram a adotar estratégias para cuidar da saúde mental dos colaboradores.
Em 2022, por exemplo, o relatório “COVID-19 HEalth caRe wOrkErs Study (HEROES)”, realizado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em 11 países latino-americanos – incluindo o Brasil –, constatou que entre 14,7% e 22% dos quase 15 mil trabalhadores de saúde entrevistados durante a pandemia “apresentaram sintomas que levaram à suspeita de um episódio depressivo”. Segundo o documento, a necessidade de apoio emocional e financeiro, preocupação de contágio de familiares e mudanças nas funções habituais de trabalho foram alguns dos principais fatores que afetaram a saúde mental desses profissionais.
No entanto, embora a crise sanitária global tenha jogado luz às dores dos profissionais de saúde, esses desafios não surgiram com a pandemia. “É como se a questão de saúde mental dos trabalhadores do setor fosse uma lata de refrigerante que já estava sendo agitada. A chegada da pandemia foi apenas o rompimento deste lacre”, afirma Luiz Gustavo Zoldan, psiquiatra e médico referência da saúde populacional do Hospital Israelita Albert Einstein.
O médico afirma que há evidências que mostram que os profissionais de saúde já lidavam com um cenário preocupante em relação à saúde mental antes mesmo da pandemia, no Brasil e no mundo. Segundo Zoldan, são fatores que incluem fadiga por estresse empático ou fadiga da compaixão – associada a um desgaste mental, emocional e físico da oferta de cuidado sob condições aquém do ideal –, sensação de trabalho invisível, presença de dor e sofrimento constante e até baixa remuneração.
Alguns estudos corroboram essa ideia. Uma pesquisa documental publicada na Revista Enfermagem UERJ em 2018, por exemplo, analisou 886 registros de afastamentos da equipe de enfermagem do hospital universitário em questão, ocorridos entre janeiro e dezembro de 2015. A saúde mental já era um tópico de preocupação crescente à época: de acordo com os resultados, 22,6% dos afastamentos superiores a 15 dias se deram por transtornos mentais e comportamentais.
Outro estudo, mais recente, realizado pela Universidade Federal de São Carlos (USFCAR), acompanhou 125 trabalhadores de saúde entre 2021 e 2022, e os resultados revelaram que 86% dos entrevistados sofriam com burnout, enquanto 81% apresentavam níveis elevados de estresse. Os principais desafios mencionados pelos profissionais foram o local de trabalho e a quantidade excessiva de demandas.
Um terceiro estudo, publicado na The BMJ, constatou que, nos Estados Unidos, quatro em cada dez médicos relataram ao menos um sintoma de Burnout, enquanto no Reino Unido um terço dos médicos em treinamento afirmaram que sofrem esgotamento em um grau alto ou muito alto. O levantamento detectou ainda que os profissionais que enfrentam alguma condição psicológica são duas vezes mais propensos a se envolverem em incidentes de segurança com o paciente e mostram profissionalismo reduzido.
Estratégias para lidar com o problema
Diante desse cenário preocupante, diversas iniciativas foram lançadas nos últimos anos, até mesmo no Congresso. Em 2023 foi criado o Projeto de Lei 2290/2023, que tem o objetivo de estabelecer um programa de saúde mental e ocupacional voltado para os profissionais de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). Estão previstos na proposta a avaliação periódica e regular dos profissionais, rastreamento ativo dos casos de adoecimento por atividade profissional, reavaliação e aperfeiçoamento constante dos Programas de Controle Médico de Saúde Ocupacional, garantia de rodízio de profissionais e revisão das rotinas nos setores onde houver mais casos de adoecimento e fadiga laboral. O PL ainda está em fase inicial de tramitação e não há prazo para conclusão.
A nível internacional, o Institute for Healthcare Improvement (IHI), uma das maiores organizações de saúde independente do mundo, também passou a chamar a atenção para o tema e colocou saúde e bem-estar dos profissionais da área como uma das cinco metas para a melhoria dos sistemas de saúde. Ainda em 2020, o instituto publicou um artigo com recomendações baseadas em evidências científicas e sugestões práticas para “ações individuais e sistemáticas aos líderes de unidade e de equipe que proporcionam proteção e apoio à saúde mental do pessoal.”
“O IHI entende que, para o combate ao Burnout, para melhora do clima organizacional para os profissionais de saúde, devemos investir no que se chama de ‘joy at work’, algo como ‘alegria no trabalho’. É basicamente uma metodologia que propõe que os líderes comecem a olhar um pouco mais a fundo os interesses dos próprios colaboradores e para o propósito do trabalho”, explica Zoldan.
Passos para aplicação da estratégia
Pensando em auxiliar a implementação da metodologia proposta por eles, o IHI desenvolveu um guia de quatro passos a serem seguidos. O primeiro é baseado na pergunta “o que importa para você?” e que, embora pareça simples, pode fazer toda a diferença ao colocar o colaborador no centro da estratégia. “A gente aprende a ouvir a perspectiva daquele funcionário, o que é importante para ele no trabalho para que se sinta feliz e satisfeito”, afirma Zoldan.
O passo seguinte consiste em identificar os obstáculos atuais para a satisfação desse trabalhador no seu contexto específico e pensar em como aumentar a autonomia, melhorar processos e reduzir o estresse. O terceiro passo entra na esfera sistêmica, saindo da responsabilidade individual – do profissional ou de sua liderança imediata – e partindo para uma responsabilidade organizacional de aumentar esse cuidado.
Por fim, o quarto passo consiste em mensurar a efetividade das estratégias adotadas. Segundo o psiquiatra, não há uma métrica ideal, mas há uma série de modelos disponíveis que podem ajudar a medir a satisfação e o engajamento dos colaboradores. “Esse framework pode auxiliar as organizações a encontrarem um caminho”, diz.
Nesse contexto, Zoldan cita como exemplo o programa CalmaMente do Einstein, que nasceu como resposta às taxas elevadas de transtornos mentais e dias de trabalho perdidos na população de colaboradores. O objetivo é promover não apenas o acolhimento dos trabalhadores adoecidos como também atuar na prevenção estratégica de quadros de depressão, ansiedade, burnout e outros. “É um programa que olha desde prevenção primária até o cuidado terciário, incluindo também tratamento psicológico e psiquiátrico, além de uma série de ações de promoção da saúde mental e prevenção de transtornos mentais”, pontua.
Desgaste psicológico começa ainda na formação
Se, por um lado, os desafios de saúde mental na área médica são frequentes no dia a dia de atuação desses profissionais, por outro, sabe-se que eles começam muito antes, ainda na formação deles. Um artigo publicado pela Revista Brasileira de Educação Médica em 2020, por exemplo, analisou 355 estudantes de Medicina e apontou que 41,4% já sofriam com ansiedade, enquanto 8,2% apresentaram sintomas de depressão e 7% conviviam com as duas condições simultaneamente.
Em entrevista publicada anteriormente no Futuro da Saúde, Julio Monte, diretor acadêmico da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE), destacou a importância de colocar as habilidades socioemocionais no centro do ensino nos cursos de saúde: “No Brasil, os estudantes chegam muito novos a uma graduação como a medicina. […] É importantíssimo trabalhar essa empatia para que, ao final do curso, ele seja um profissional humanizado, capaz de ter uma boa relação interpessoal com o paciente.”
Zoldan complementa que, justamente pelo cerne do ofício dos profissionais de saúde, há uma cobrança elevada em relação à performance e ao bom desenvolvimento da formação técnica desses alunos.
“É a formação para a execução de um trabalho que não permite erros. Porque quando falamos sobre erros na saúde, estamos falando primeiro de um impacto na vida de alguém”, afirma. “Soma-se a isso a transição do modelo de ensino – que se tornou remoto ou híbrido ao longo da pandemia e isolou esse aluno –, além dos impactos negativos das redes sociais e outros desafios atuais. Tudo isso traz muito mais pressão para o estudante de hoje.”
Por isso, para ele, é preciso repensar a estrutura dos cursos de saúde, abrindo espaço para desenvolver habilidades como comunicação empática e resiliência sem, no entanto, abrir mão da excelência técnica. “O que as escolas de saúde precisam fazer hoje é reduzir essas camadas de estresse. Primeiro, oferecendo apoio psicológico e suporte psiquiátrico para os estudantes. Segundo, entendendo dentro do programa didático onde estão as oportunidades de reduzir stress, de ter um modelo de avaliação contínua, que privilegie a colaboração e reduza a competitividade, que ensine esse estudante a lidar com a frustração”, observa.
Tecnologias para cuidar da saúde mental dos profissionais de saúde
Além das estratégias de políticas organizacionais e de formação, o aprimoramento da atenção à saúde mental da força de trabalho da saúde passará também pelos avanços tecnológicos. Para Zoldan, a tecnologia pode entrar como um detrator ou promotor da saúde mental. “Quando eu falo sobre a tecnologia invadindo meu espaço de lazer, tomando o meu tempo com mensagens de trabalho fora do horário de expediente e que me deixam em uma sensação constante de alerta, estou falando de uma tecnologia que está me prejudicando.”
Contudo, como exemplo de incorporação positiva da tecnologia como auxiliar na redução de sobrecarga e trabalhos de baixa autonomia, ele cita o possível uso de inteligência artificial generativa com reconhecimento de voz para a transcrição da anamnese durante as consultas. O psiquiatra acredita que a ferramenta tem o potencial de automatizar etapas burocráticas, de modo que o profissional consiga dedicar mais tempo à prática clínica.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.