Rosana Richtmann: “PNI precisa recuperar o protagonismo”

Rosana Richtmann: “PNI precisa recuperar o protagonismo”

Em cerca de três anos a ciência conseguiu avançar muito […]

By Published On: 02/01/2023

Em cerca de três anos a ciência conseguiu avançar muito no conhecimento sobre a Covid-19 e no desenvolvimento de estratégias para lidar com o vírus. Ainda assim muitas dúvidas permanecem: a doença deixará de ser uma preocupação? As vacinas atuais ainda funcionam para as novas variantes? Qual será a sazonalidade do vírus? O que se sabe sobre a Covid longa? Por que a vacinação em crianças é importante? Essas foram apenas algumas das questões abordadas pela infectologista Rosana Richtmann no primeiro Futuro Talks de 2023.

Rosana é infectologista do Instituto Emílio Ribas, chefe do Departamento de Infectologia do Grupo Santa Joana e membro dos comitês de imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia – além de colunista do Futuro da Saúde desde seu surgimento.

Ao longo da conversa, a médica lembrou ainda que o cenário da saúde vai muito além da Covid-19. Ela apontou, por exemplo, a preocupação com a baixa cobertura vacinal, impacto das fake news na confiança das pessoas, dengue e o vírus Influenza, além de outras pautas prioritárias para 2023 e os próximos anos, como a importância de recuperar o protagonismo do Programa Nacional de Imunizações, o PNI. Confira a entrevista a seguir:

O que podemos esperar da Covid-19 para 2023? Vai sumir do mapa ou vai deixar pelo menos de ser uma preocupação?

Rosana Richtmann – Não, certamente não. O vírus já mostrou e já deu várias provas de que ele não vai nos deixar tão cedo. O que aconteceu e nós aprendemos nesses 3 anos vivendo com o SARS-CoV-2 é que o vírus vai sofrendo muitas mutações. Aquelas que perduram mais, no sentido de se tornar uma variante de preocupação como a Ômicron, Delta e Gamma, acabam ficando mais famosas e causando mais danos. Mas existem muitas outras pequenas mutações que o vírus vai causando. Então, com esta característica dele, mesmo estando todos vacinados, começamos a ter uma perda da resposta imunológica, porque a vacina que tomamos foi feita para as cepas originais. Só que daí vem as variantes Alfa, Beta, Gamma, Delta, Ômicron. A Ômicron, geneticamente, é muito diferente da cepa original. Então é fácil nós entendermos que mesmo que eu esteja vacinada, eu vou ter um escape da minha resposta imune, porque o meu anticorpo já não reconhece tão bem a Ômicron. Com isso nós acabamos nos deparando com um número de casos importante. Por outro lado, em termos de virulência e de gravidade de doença, o vírus perdeu potência. Ele ganha potência na transmissibilidade, em um grande número de pessoas adoecendo, só que de uma forma mais leve. Lógico que não 100%, mas de uma forma mais leve. Então, respondendo a pergunta, em 2023 o vírus vai continuar por aqui e ele vai continuar mudando. O objetivo do vírus é não desaparecer, então ele próprio tem mecanismos para isso. Os microrganismos, seja vírus, bactérias, fungos, eles sempre estão tentando se ajustar para escapar dos antibióticos, dos anticorpos, porque eles querem sobreviver. É muito interessante essa dinâmica da infectologia, diferente de outras especialidades, porque nós temos sempre esse dinamismo e a história de ter que se reinventar e se atualizar para o que virá.

Por que acontece esse comportamento de ondas?

Rosana Richtmann – O vírus sofre essas mudanças genéticas, daí ele consegue encontrar pessoas que não vão responder tão bem, porque ele já está diferente. Uma das grandes questões que ainda não estão respondidas é se vai existir uma sazonalidade como nós temos com a gripe. Por exemplo, com relação ao Influenza, nós sabemos que na região Norte há predomínio nos meses de janeiro e fevereiro; aí vai descendo, chega no Sudeste lá para abril e maio; vai para a região Sul em junho e julho… Esse é o caminho do vírus da gripe. Se eu for vacinar minha população, pensando que o auge da produção de anticorpos dela é em torno de 15 dias, 1 mês, preciso ver a sazonalidade para programar uma vacinação. O que nós vamos fazer com a Covid-19? Qual é a sazonalidade? A percepção que temos, se você for ver as ondas, é que é sempre no final do ano, nessa época de Natal aqui no nosso país e no meio do ano. Estamos vendo que provavelmente teremos dois picos anuais. É difícil saber quando que seria o melhor momento para fazer uma vacinação anual de Covid-19, e está todo mundo tentando entender como é que vai ser o comportamento do vírus em termos de sazonalidade, para saber qual é o melhor momento para fazer uma vacina.

Qual a importância de uma vacina mais moderna? As vacinas que hoje as pessoas estão tomando a quarta dose ou até a quinta dose, elas ainda têm algum efeito?

Rosana Richtmann – Vou começar pela última pergunta. A resposta é sim. Se você pegar os nossos números atuais em termos de hospitalização e morte, é óbvio que não dá para comparar com o que foi na era sem vacina. Mesmo com essa fuga do ponto de vista de resposta imunológica que não reconhece a atual sub variante que está circulando, você ainda tem uma imunidade que a gente chama de celular. É um outro tipo de imunidade que confere proteção para as formas graves e morte. Então, quem ainda não fez o seu reforço, seja o primeiro reforço que é terceira dose, o segundo reforço que é a quarta dose, ou a quinta dose para os imunocomprometidos, deve fazer. Isso faz uma diferença muito grande. Quando a gente compara o esquema de quem tem só a vacinação primária de 2 doses versus quem tem a primária e pelo menos um reforço, a proteção para essas subvariantes é muito maior nessas situações mais graves de severidade, hospitalização e morte. Agora, é bem-vinda uma vacina atualizada? Óbvio que sim. Quando falamos da população mais vulnerável, pacientes com mais de 60 anos, que respondem pior às vacinas e têm um risco maior de ter doença mais grave, a população com comorbidade como diabéticos, hipertensos, com doença respiratória, doença cardíaca, toda essa população é mais vulnerável para ter uma Covid-19 mais grave. O outro grupo são os imunocomprometidos, que é quem faz uma quimioterapia, uma radioterapia, toma um corticoide, toma um imunossupressor por causa de uma doença reumatologia etc. É a história de você produzir anticorpos específicos para Ômicron, que está circulando durante todo o ano de 2022, porque essa é a grande variante de preocupação. No começo era difícil falar ‘vou fazer para a Alfa, Beta ou Gamma?’. Ninguém quis bancar isso. Agora que temos uma estabilização da variante de circulação, podemos ter vacinas atualizadas. O que é isso? Em vez de ter 30 microgramas de antígeno específico para aquela cepa de Wuhan, eles colocaram 15 da ancestral e 15 para Ômicron, por isso que ela chama bivalente. Você recebe uma vacina e produz anticorpos para essas duas. Mas por que eu ainda tenho que tomar a ancestral se só tem Ômicron circulando? Daí vem o medo do passado recente de que se eu deixo de dar um estímulo imunológico para ancestral, que protegeu muito bem para Gamma, Delta, Beta e todas as outras variantes, eu vou ficar desprotegido e correr o risco de, de novo, ter problema com aquelas variantes. Resumidamente, é essa a história da bivalente.

Pensando em 2023, será que pode surgir uma nova variante diferente da Ômicron que tenha potencial de ser mais forte?

Rosana Richtmann – Pode acontecer de termos novas subvariantes ou novas variantes. Então, a Ômicron pode sair de cena e entrar uma outra variante que é geneticamente ainda mais diferente, e nos pegar com menos proteção. Mas, se eu for pensar em 2020, nós tínhamos zero anticorpos para o SARS-CoV-2, porque ninguém tinha tido a doença ainda na época e ninguém tinha vacina. Hoje não existe mais esse grupo, pois nós não temos mais alguém que seja virgem de anticorpos. Mesmo que uma pessoa não tenha sido vacinada e fale que não teve a doença, possivelmente ela possui anticorpos circulando, porque teve a forma assintomática e assim tem anticorpos, ou a pessoa foi vacinada. Então, mesmo que você tenha uma mudança dentro do SARS-CoV-2, uma outra variante que foge de novo da nossa resposta imune, eu acho pouquíssimo provável que a gente tenha o cenário inicial, porque nós não estamos mais falando de uma população sem anticorpos. E vou voltar também a falar da imunidade celular, que a gente julga hoje muito importante. Essa história de ficar fazendo exame de sangue para ver se tem anticorpos é uma bobagem. O fato de ter anticorpo não te dá nenhuma garantia de que você está protegido. Nós vimos que são outros tipos de proteções, outro tipo de imunidade. Para 2023, eu confesso que eu tenho mais medo de ter surpresas com vírus Influenza, que anda dando alguns sustos aqui na América Latina e nós começamos a ter um cenário de H5N1. Eu não estou querendo assustar ninguém, mas nós precisamos ficar atentos, porque os vírus, principalmente os vírus respiratórios, têm um grande risco de novas surpresas. Resumindo, o que precisamos fazer em 2023? Muita vigilância genômica. Eu não posso ser pega de surpresa. Nós vamos ter novos patógenos, mas o que não podemos é estar despreparados para uma pandemia e nos assustarmos a hora que vermos que está cheio de caso. O salto tecnológico que nós demos nesses últimos 3 anos nos deixa mais preparados. Um novo patógeno vai ter, o que eu não quero é uma nova pandemia.

Houve uma adesão da população nas primeiras doses da vacina, com mais de 80% tomando as 2 doses. Mas o que aconteceu para não ter essa efetividade nas doses de reforço?

Rosana Richtmann – Os estudos mostraram que a pessoa melhor protegida é aquela que imunidade híbrida. Ou seja, ela foi vacinada e ela teve a doença. Ou ela teve a doença e foi vacinada. A imunização, tanto induzida naturalmente pela doença, quanto induzida pela vacina, esse é o melhor cenário. Então, se alguém me procura falando que está vacinado e está com Covid-19, a minha resposta é que essa pessoa pode manter a calma, pois clinicamente ela está bem e vai ter uma boa defesa caso precise de novo dos anticorpos para a circulação de um novo vírus. Para quem tem somente 2 doses, acho que todos nós temos uma parcela de culpa sobre isso por falar que 2 doses seria o denominado “fully vaccinated”, ou esquema completo. Isso é uma bobagem, porque isso, na verdade, é esquema primário. Você precisa ter um reforço. Tem várias outras vacinas, como por exemplo hepatite B, que a pessoa toma duas doses e acha que está bom. Mas para hepatite B, o esquema é 2 + 1, você precisa de duas doses e um reforço. Com a Covid-19, é a mesma coisa. Acho que no início estava todo mundo ávido pela vacina, pessoas viajando inclusive para fora parar tomar a vacina, publicando foto com a carteirinha do SUS etc. Esse início foi muito bonito e quando nós falamos em 80% com vacinação primária, esse número é lindo, porque nós somos muitos. Só que nós vimos que ele não é suficiente para garantir realmente a proteção individual. Isso é bastante importante para não termos hospitalização, formas graves e, principalmente, começamos a falar sobre as sequelas da Covid-19. Você sabe o que é uma doença idiopática? Nós falamos muito isso na medicina quando se trata de alguma doença que eu não sei a etiologia, a origem etc. Nós brincamos que as doenças idiopáticas deixaram de existir, porque todo mundo acha que qualquer coisa está relacionada à Covid-19 ou à vacina. Mas voltando à dose de reforço, nós temos que realmente mudar esse discurso e considerar uma pessoa minimamente vacinada se ela tiver as 2 doses primárias e pelo menos uma dose de reforço.

O que já se sabe sobre o impacto da Covid longa?

Rosana Richtmann – A Covid longa eu acho que ainda é o mais nebuloso de tudo, porque você precisa entender a fisiopatologia, o mecanismo de como aquilo acontece para você poder ter alguma ação de prevenção. Como é que eu vou prevenir algo que eu sequer sei como acontece? Cada vez mais há teorias imaginando que o SARS-CoV-2, por ser um vírus que causa uma doença sistêmica (ou seja, causa dor muscular, febre, mal-estar, fadiga, você pode ter um problema cardíaco, renal etc.), está muito relacionado à parte vascular, então ele pode causar inflamação de pequenos vasos, que é o que chamamos de endotelite. O endotélio é aquela camada interna de um vaso sanguíneo. Se você tem uma inflamação do endotélio e tem lá uma placa de ateroma que ficou lá com os anos e não foi controlado direito colesterol, triglicérides etc., aquela inflamação pode fazer com que essa placa tenha micro coágulos que vão impactar em pequenos locais. Então, um idoso que já tem um envelhecimento do sistema nervoso, quando ele tem pequenos trombos causando pequenas áreas de infarto, isso acaba promovendo perda de cognição, perda de memória. Vem o “brain fog”. Ou seja, daí você começa a entender melhor o que pode acontecer. Então essa é uma das teorias.

Existem outras?

Rosana Richtmann – Existem outras teorias no sentido de a Covid-19 poder ser um gatilho para você desenvolver alguma doença autoimune, porque é tanta reação inflamatória que você passa a desenvolver autoanticorpos. São várias teorias para Covid longa, e eu te diria que, talvez hoje, o principal motivo para querermos prevenir a Covid em qualquer um de nós, mesmo que você não seja uma pessoa tão vulnerável para ter uma Covid mais grave, é para prevenção de Covid longa, porque realmente muda a qualidade de vida. As pessoas se sentem não compreendidas. Eu ouço relatos de pacientes, principalmente mulheres, que dizem: “Doutora, ninguém acredita em mim. Eu não consigo trabalhar, não consigo me concentrar, estou sempre cansada. E as pessoas acham que é moleza, preguiça.”. E não é. Então, nós temos que valorizar as queixas dos pacientes, por isso é fato. A Covid, além de todas as causas diretas, tem várias causas indiretas relacionadas que temos muito que aprender ainda.

A vacinação de crianças não teve uma grande adesão, talvez pela falta de informação, pela questão do medo, por acharem que as crianças não têm tanto risco assim e talvez por não pensarem nessa questão da Covid longa, por exemplo. Por que você acha que chegamos nesse ponto? É possível nós revertermos esse cenário?

Rosana Richtmann – Bom, reverter cenário sempre é possível, basta você ter esclarecimento, uma boa comunicação, uma boa campanha e ter a vacina. Nós temos plenas condições de fazer e eu acho que é para isso que estamos aqui. Eu acho que pela primeira vez na história da imunização eu vejo pais vacinados e crianças não vacinadas. Geralmente isso ocorre ao contrário. Muita gente talvez nem saiba que o adulto precisa tomar, por exemplo, vacina de tétano a cada 10 anos, mas vacina as crianças com o esquema completo. Então, é a primeira vez que a gente vê o contrário: os pais vacinados e as crianças não. Certamente isso se relaciona com alguns fatores, mas eu acho que o principal deles é a hesitação vacinal. Não que os pais sejam contra a vacinação. Isso não faz parte do DNA do brasileiro, pois nós sempre fomos um país de alta adesão à vacinação e de confiança no programa de vacinação. Mas nós chegamos em um ponto com a pandemia de tanta divergência, de tanta politização – e eu acho que politizar saúde é o pior caminho possível –, que deixaram as pessoas muito hesitantes. A palavra é hesitante, naquela ideia de que: “Eu não sou contra nem a favor, eu não sei o que eu vou fazer. Porque eu abro meu WhatsApp, ouço e leio coisas absurda de que você vai fazer uma experiência com seu filho em vaciná-lo com uma vacina de uso emergencial, uma vacina genética etc.”. São as “fake news”. E por outro lado a pessoa pensa que sempre vacinou próprio filho e sempre foi vacinada quando criança. Se hoje eu não sei o que é sarampo, é porque todo mundo foi vacinado e o sarampo diminuiu muito. Se hoje eu te pergunto se você já viu algum caso de difteria, você vai me responder que já leu sobre, mas não sabe do que eu estou falando. É uma doença gravíssima, e não é que ela decidiu ir embora, o que aconteceu é que nós vacinamos toda a população. Então, os pais estão nesse conflito, de acreditar e confiar que a história da vacinologia é inquestionável, ao mesmo tempo em que eles recebem um monte de fake news que os deixam indecisos. Eu acho que aí entra o papel do profissional da saúde. O paciente que é anti-vax, vou confessar que eu nem tento mudar a ideia, porque eu sei que ela não é uma questão. Só que eles compõem a menor porcentagem dos pacientes. Mas em geral o paciente está na dúvida pela desinformação e ele quer ouvir de alguém que ele confie.

Mas às vezes, os profissionais de saúde também estão hesitando. Você não sente isso, doutora?

Rosana Richtmann – Eu sinto, infelizmente. Daí entra em um outro assunto que é o movimento antivacinas. Praticamente 100% do movimento tem a ver com pessoas que têm interesses econômicos em se beneficiar com a não imunização e profissionais da saúde ditos médicos, os quais nós temos até a dificuldade de chamá-los de médicos. Eu acho que a gente tem um grande problema em relação a isso. São profissionais da saúde mal-intencionados em divulgar e principalmente disseminar fake news, fazendo com que você coloque em xeque coisas que são, na minha opinião, inquestionáveis. Só que nós, profissionais da saúde, não aprendemos a conversar com o paciente sobre isso. Nós somos tão seguros e acreditamos tanto naquilo que não conseguimos nos colocar no lado do paciente que está hesitante. Ter paciência de ouvir e compreender que as dúvidas dele tem motivo, ao invés de falar: “não, isso é uma bobagem”. Não é isso que ele quer ouvir. Você tem que realmente tentar explicar para ele mostrar que nunca, na história, um número tão grande de pessoas no mundo inteiro foi vacinado em um período tempo tão curto. São bilhões de doses de diferentes vacinas de Covid aplicadas no mundo inteiro em 2 anos.

Mudando de assunto, vamos falar da cobertura vacinal. Essa é uma das grandes prioridades do novo governo e já foi colocado como o tópico principal dessa retomada da cobertura, porque nós sabemos que houve uma queda. Quais os motivos pelos quais chegamos a esse ponto? O que precisamos fazer para reverter?

Rosana Richtmann – Eu participo de órgãos e sociedades e, dentro desses grupos, nós fizemos um documento das prioridades para os 100 primeiros dias de governo e com o cuidado de não colocar nada que seja um custo, porque nós sabemos que não vai ser fácil o início do governo do ponto de vista de recursos. Isso já foi entregue para o novo governo e nós fizemos sugestões baseadas em fatos que não achamos que sejam tão complicados de se mexer. Resgatar a confiança no Programa Nacional de Imunizações e dar a ele o poder que ele precisa e que foi retirado nos últimos 3 anos. Se você perguntar hoje quem coordena o PNI, é capaz que muitos não saibam. Há vários pontos em questão de estrutura em termos de vacinação que nós perdemos nesses 3 anos. É importante colocar coordenação forte e que tenha liberdade para poder realmente agir como um programa nacional. Também é importante resgatar o Comitê Técnico Assessor, que é um grupo de profissionais da saúde técnicos em vários aspectos que assessora o Ministério da Saúde e o PNI do ponto de vista de próximos passos, do que deve ser feito etc. Por exemplo, a vacina bivalente neste momento é para grupos prioritários, então devemos ter bem definido quem são esses grupos: pessoas com mais que 60 anos, gestantes, puerpério, profissional da saúde, imunocomprometido, comorbidades, indígenas, ribeirinhos e quilombolas que têm dificuldade de acesso à saúde e assim por diante. São aspectos técnicos que nós sugerimos e sempre fizemos. Esse Comitê sempre foi muito forte, mas nos últimos 3 anos ele foi praticamente destituído. Então, por exemplo, você retomar o valor do CETAI é algo que não precisa de recurso nenhum, porque todo mundo que é envolvido nisso, faz vestindo a camisa. Nós fazemos porque sabemos que é importante uma opinião técnica, conhecendo a realidade brasileira do ponto de vista econômico. Outro ponto que eu acho fundamental é a comunicação. Eu acho que o grande problema dessa hesitação vacinal foi a forma que a gente comunicou ou, pior ainda, comunicou errado.

Ou não comunicou, não é?

Rosana Richtmann – Exato. Ou não comunicou. Mas eu acho ainda que não comunicar talvez seja melhor do que comunicar errado. Acho que nós tivemos um grave problema de comunicação, e isso não é fácil em tempos digitais. Se eu quero me comunicar com o pai que é jovem, talvez não adiante eu me comunicar por meio da televisão. Eu tenho que me comunicar em mídias digitais de uma forma que ele entenda sem ser algo muito básico. Os influencers são importantes. Só que a hora que ele tiver uma pergunta de volta, ele não vai saber responder. Então, nós precisamos de uma resposta técnica, as pessoas querem saber desse ponto de vista. Precisamos melhorar muito a comunicação e eu julgo que isso não seja tão complicado. Mais um passo que estamos pedindo e reforçando muito é que, assim como você tem no Conecte SUS hoje, com a sua carteirinha da Covid com as doses e datas, você deveria ter isso para as outras vacinas. Se você tem uma coisa fácil do ponto de vista de digital hoje, você tem consigo a sua carteirinha de vacinação independentemente de onde você estiver. E você tem condições de saber o que está faltando e o que não está faltando, porque a informação fica muito mais fácil. A terceira coisa que eu sou muito a favor, o município de São Paulo tem essa experiência e nós queríamos levar para outros locais, é a história de você ter a carteirinha de vacinação na matrícula escolar, seja escola pública ou privada. Não que seja obrigatório você ter a carteirinha de vacinação, ninguém vai deixar de educar uma criança por causa disso, mas quando você pede para o pai uma declaração de atualização de vacinação, ele é obrigado a ir ao posto ou no médico para ver o que está em dia e o que está faltando. Só de ele ter essa informação, você já dá um salto para poder melhorar essa cobertura vacinal. Se você vai, por exemplo, fazer um intercâmbio para estudar em uma universidade dos Estados Unidos, você não entra se não tiver o documento preenchido que você está vacinado. Eu não chegaria nesse ponto de “se não está vacinado, não pode estudar”, não é disso que eu estou falando. Para mim, a prioridade é educação, sem dúvidas. Mas nós precisamos colocar o MEC nisso. Nós temos que colocar o Ministério da Educação junto com o Ministério da Saúde, no sentido de entender o que está faltando, o que não está e assim orientar esses pais.

Olhar esse todo faz sentido, não é? Até para nós podermos mostrar para o nosso médico, porque não é fácil nós lembrarmos de todas as vacinas que precisamos tomar.

Rosana Richtmann – E tem mais um detalhe, que dependendo da carteirinha que você pega, o próprio profissional da saúde não consegue interpretar aquilo. O nosso desenho hoje de carteirinha de vacina é complicado. Tem uma vacina, por exemplo, que você pode ter 5 siglas diferentes, então não é fácil. Acho que se você tiver algo mais digitalizado, fica melhor.

Você trouxe uma questão importante de ter campanhas mais direcionadas, inclusive com o uso de influenciadores. Mas como a população está recebendo isso? Ela está mais crítica ou demandante?

Rosana Richtmann – Eu acho muito bom ter os influenciadores e principalmente com os adolescentes, porque a comunicação é muito mais fácil, mas não é só isso. Isso não é a estratégia. Essa pandemia fez com que as pessoas entendessem muito mais como é feito uma vacina, as fases do estudo de uma vacina etc. Hoje, nós falamos fase 1, 2, 3 e as pessoas já sabem, o que é maravilhoso. Acho que é necessário. Quanto mais a população estiver junto engajada em tentar entender isso para formar a sua opinião, melhor. Ninguém está querendo impor nada. É uma questão de você explicar de uma forma que a própria pessoa forme a sua opinião no sentido de ser favorável ou não. Se ela diz que entendeu tudo, ouviu as explicações e não quer mesmo assim, eu vou respeitar. O que eu sou contra é essa coisa de você engolir uma mensagem do WhatsApp do grupo da família sem checar nada, nem a origem, nem a motivação, nada.

O quanto as fake news estão criando esse cenário em relação à hesitação vacinal?

Rosana Richtmann – No mundo digitalizado e de redes sociais, é um cenário bem preocupante e eu acho que nós subestimamos o poder dessas fake news que são veiculadas pelas redes sociais. Nós pensamos “ninguém vai acreditar nisso, não vou nem perder tempo em responder”. Mas eles são muito mais organizados. Existem 3 fases. O primeiro é o mal-intencionado que joga uma mensagem falsa no meio de verdades, o que induz a refletir “se o resto dessas informações está certo, será que isso também não está certo?”. Então esse é o mal-intencionado que tem algum interesse por trás de estar lançando essa fake news. O segundo é o “fofoqueiro”, que é quem vai disseminar aquilo. Ele não está mal-intencionado, mas ele vê e quer compartilhar. O terceiro é o inocente, porque é aquele que acredita naquilo. Então você tem alguém que cria, alguém que espalha e alguém que infelizmente acredita naquilo. Para você tirar esse ciclo é bastante complicado e nós, médicos, não sabemos fazer isso. Nós tentamos esclarecer, falar, mas a quantidade de vídeos que eu recebo perguntando se aquilo é uma verdade é enorme. E são coisas que, dependendo de quem é, eu nem ouço, porque eu já conheço o profissional e sei que ele está envolvido em ozonoterapia, cloroquina etc. É o profissional que tem outros interesses na disseminação daquilo.

Por mais bizarra que a notícia pareça, nós temos que ter a paciência de olhar, falar que não faz sentido e ir desmentindo. Mas quando estamos falando com quem é antivacina, o trabalho é mais difícil.

Rosana Richtmann – E o Ministério da Saúde, no governo anterior, tinha uma coisa que era o “fato ou fake”. Então quando você tinha alguma dúvida sobre algum produto, você entrava no site do Ministério e estava lá com a explicação. Talvez resgatar esse tipo de coisa seja útil. Se você realmente está querendo ajudar e esclarecer, na hora que você recebe, você tenta entrar em algum local que seja fácil. Porque dá até para desmentir, mas vai dar trabalho. De uma forma fácil, tem que entrar lá no órgão oficial, Ministério da Saúde, e ver já se é fato ou fake.

Outro desafio que devemos encarar em 2023 é a dengue. Tivemos resultados recentes de uma vacina para dengue e recentemente também saiu um dado do Ministério da Saúde mostrando que o Brasil registrou cerca de mil mortes em 2022, o maior número desde 2015. Por que isso aconteceu e o que podemos esperar para 2023?

Rosana Richtmann – A dengue é uma arbovirose urbana. Para mim é a mais preocupante arbovirose que temos no globo. Se você pega um mapa do mundo e vê toda a faixa dos trópicos saindo aqui da América do Sul, passando pela África, indo lá no sul da Ásia, é tudo região que tem o vetor, o Aedes aegypti que é o principal, apesar de haver outros. O Aedes aegypti é um mosquito que vive entre 35 e 40 dias e coloca 1500 ovos. Ela não quer transmitir doença, mas ela precisa do sangue para colocar os ovos. É instinto materno. Só que se ela picar alguém que está com o vírus na corrente sanguínea, ela se infecta, e uma vez que a fêmea do mosquito está infectada, toda vez que ela picar alguém, ela vai transmitir o vírus. Então assim, lógico, de um lado, nós queremos controlar o vetor, mas não é uma coisa fácil. Vamos supor, a fêmea colocou os ovos. Se ficar em um lugar seco, ele consegue sobreviver 1 ano até surgir um pouquinho de água e em 7 ou 10 dias, nasce um novo mosquito. Eu estou dando esses números só para entendermos que é muito complicado fazer o controle do Aedes aegypti. Em 2022 foi o ano mais fatal de dengue no Brasil. Nós estamos chegando a quase 1000 mortes e devemos fechar o ano com esse número, porque há vários casos ainda em investigação. Não existe um tratamento específico e nós não sabemos como prever quem vai ter dengue hemorrágica ou não, quem vai ter as complicações da doença ou não.

Você é picado e espera?

Rosana Richtmann – Você precisa ser picado por uma fêmea infectada. E muita gente tem dengue assintomática. O número de pessoas com vírus na corrente sanguínea sem sintomas é muito grande, por isso que eu te falo que a chance de a fêmea estar infectada quando você tem alguns casos de dengue é bem grande. Você não sabe como vai ser a evolução da doença. É uma doença que pode dar muita dor no corpo, mialgia, dor atrás para os olhos, dor na barriga, febre que é bem característica. Então, esse quadro é chato, mas ele não é grave e vai durar entre 3 e 5 dias. Daí você começa a ter a queda da febre e aí começa o perigo, porque você acha que a doença já passou. Só que ela é bifásica, então você tem essa fase inicial e uma porcentagem da população vai ter de novo essa segunda fase com os sinais de alerta. Se no dia que a febre começa a cair, você começa a ter tontura, algum sangramento, dor abdominal, muito vômito, palidez cutânea, confusão mental para o idoso, ou seja, sinais, você precisa voltar para o hospital, porque isso pode se transformar em uma dengue hemorrágica. Os casos fatais, em geral, estão relacionados à dengue hemorrágica. É uma doença que, infelizmente, temos pouco o que fazer neste momento e por isso que é muito bem-vindo as notícias de vacinas.

O que podemos esperar em termos de vacina?

Rosana Richtmann – Eu diria para você que é a única forma que vamos ter de controlar a dengue, na minha opinião, é através de vacinação. No Brasil, tem uma vacina licenciada, que eu já te diria que foi uma vacina muito problemática, então eu acho que não vale a pena a gente entrar nisso. E tem mais uma vacina que provavelmente vai ser licenciada em breve. Ela já está em outros países, a agência da Europa em dezembro licenciou. Na Europa não tem dengue como aqui, mas existem muitos viajantes. Então, a pessoa que vai viajar para um local onde tem dengue toma vacina. Foi anunciado recentemente pelo Instituto Butantan que a vacina do deles em parceria com a MSD e NIH dos Estados Unidos chega a cerca de 80% de evitar a doença, que é mais ou menos semelhante as outras vacinas que antecedem. E para a proteção de hospitalização e morte, estamos falando em 90 e 95%, então a notícia é ótima.

Essa vacina protege para os subtipos também?

Rosana Richtmann – Quantas vezes nós podemos ter dengue na vida? Quatro vezes, são quatro vírus da dengue. Quando eu estou falando de vacina, estou falando praticamente de quatro vacinas em uma, porque precisa funcionar para todas. Qualquer vacina candidata para dengue necessariamente tem que proteger contra os quatro subtipos. Nós sabemos que um segundo episódio de dengue costuma ser mais grave e com maior risco de ter dengue hemorrágica do que o primeiro. Se eu não tiver uma vacina que me proteja para todos, é capaz de eu não estar tão protegida para as formas graves, caso eu tenha de novo dengue. Então, é muito importante a sua pergunta e eu não conheço esse dado do Butantan porque não foi publicado ainda. O que eu queria saber, afinal, é o nível de proteção para cada dengue. O que está circulando hoje no Brasil é a dengue 1 e a dengue 2. Vi os dados e sei que para dengue 1 e dengue 2 a resposta foi boa. Isso é suficiente? Não, porque já circulou dengue 3 um dia no Brasil e é capaz dela voltar. Quando você tem a grande circulação de um dos vírus da dengue, a população fica imune contra dengue 1. Então, daqui um ou dois anos, ninguém vai ter dengue 1. Vai ter que ter uma nova coorte de pessoas sem proteção e isso demora uns anos. Então, a chance de circular dengue 3, dengue 4, algo que faz tempo que não circulou, acaba sendo maior. Eu sei que é um pouco específico, mas a hora que você vai analisar uma vacina para dengue, e por isso que nenhuma vacina da dengue tem menos que 10 anos de estudo, isso é importante. Não é fácil fazer uma vacina para dengue, por isso que a notícia é muito boa. Se você tem vacinas que têm uma capacidade de prevenção de doença de 80%, óbvio que não é igual para os 4 tipos, por isso que precisamos ver o estudo para saber. E tem mais um detalhe: quem já teve dengue, ou seja, quem já tem anticorpos em geral, responde melhor à vacina do que quem nunca teve. Tem várias peculiaridades interessantes, mas é uma doença que não vejo no horizonte algum tratamento específico, acho que é muito mais vacinação. Uma preocupação minha é em relação ao envelhecimento da população. Nossa população está envelhecendo, sabemos que para 2050, nós vamos ter 167 pessoas com mais de 60 anos para 100 pessoas com menos de 18 anos. Quer dizer, vai ter uma desproporção enorme e o Brasil é uma população que está envelhecendo muito rápido. A dengue no idoso passa batida muitas vezes porque a sintomatologia totalmente atípica é muito diferente do que aquele quadro que eu te falei. Muitas vezes o idoso toma anticoagulante porque ele tem uma doença cardíaca, daí ele pega a dengue, que é uma doença que que favorece a hemorragia, o desfecho é muito pior.

Estamos em um norte melhor do que no passado.

Rosana Richtmann – Sem dúvida. Mas quero complementar que qualquer vacina da dengue hoje são vacinas de vírus vivo atenuado. Ou seja, imunocomprometido já está de fora. Toda vacina de vírus vivo atenuado tem limitações para gestante, para imunocomprometido.

Para idoso também?

Rosana Richtmann – Para idoso esperamos que não, e os estudos estão mostrando que não, assim como a febre amarela, não é contraindicado. Nós criamos um pouco essa ideia, mas não é contraindicado. As vacinas estão sendo licenciadas de 9 até 60 anos. Então, nós não estamos pegando ainda as faixas, nem nas crianças menores, neste momento, e nem dos idosos. Mas são populações importantes. A vacina é um grande passo. Esses números são fantásticos, na minha opinião. Esse ano, nós falamos em quase 1000 mortes, mas tivemos 1,4 milhão de casos, o que é uma sobrecarga para o sistema público de saúde. Se você conseguir evitar, é muito bem-vindo.

Nós tivemos, não muito forte aqui no Brasil, uma preocupação com o que se chamou de triplodemia. O que levou a esse cenário onde parece que os vírus em geral se fortaleceram?

Rosana Richtmann – Na realidade, nós ficamos isolados e não fomos expostos aos vírus. Eles não foram embora, é que nós não fomos expostos a eles, então não criamos anticorpos e não vacinamos. Ou seja, piorou a nossa cobertura vacinal, não fomos expostos e agora que estamos sem máscara, voltando para escola, ficando em ambientes com mais pessoas, estamos mais expostos a esses vírus novamente e agora sem defesa. Nós vimos agora no mês de outubro e novembro, totalmente fora de época, crianças com o vírus respiratório, criança com influenza, criança com Covid, por isso que foi o “triplo-demic”, que eram os 3 vírus circulando ao mesmo tempo. Lógico que o resultado disso é o pior e ainda mais no Brasil que as crianças são as menos vacinadas. Eu sou totalmente a favor da vacinação de 6 meses até 2 anos. Mas voltando ao cenário, a história já nos mostrou que nos anos pós pandêmicos existe uma certa bagunça na sazonalidade das doenças respiratórias. Acho que para 2023 precisamos fazer uma boa campanha de influenza. Nós temos vacina disponível, produção nacional, está no calendário nacional de imunização gratuita. São vacinas seguras, vírus inativado. A vacina de influenza eu acho que é uma prioridade para 2023 e deve ser feita de uma forma precoce. Na região Norte, o vírus circula em janeiro e fevereiro. Eu sou totalmente a favor de em algum momento a gente fazer campanha de vacinação diferenciada no nosso país. Nós estamos falando de um país continental que tem é diferentes sazonalidades. Eu não posso ter uma campanha nacional para influenza se o vírus circulou lá já. Eu chego, em teoria, sempre atrasada na região Norte, e os números mostram isso. Em segundo lugar, a vacinação infantil tem que acontecer em 2023 contra Covid para todas as crianças brasileiras. Estou falando da imunização básica. As crianças precisam ter a vacinação da Covid e são vacinas de RNA mensageiro, os pais precisam acreditar que isso vai fazer diferença na vida das crianças. E tem um cenário que não é para 2023, mas que estamos bem animados é o seguinte: o vírus sincicial respiratório, que é a principal causa de bronquiolite nas crianças, crianças futuras com a asma, esse vírus está muito relacionado a problemas não só a curto, mas a médio e longo prazo, como a asma, também tem um grande salto para ter vacinas. Então, eu vejo para 2023 e os próximos anos, um salto enorme de imunização. Vou aproveitar para falar uma coisa que não é da infectologia, mas foi a notícia recente que eu acho fantástico que é a vacina contra o melanoma. E nós estamos falando de um câncer que tem um potencial fatal enorme que pega a população jovem, muitas vezes passa despercebido. Isso tudo através de vacina de RNA mensageiro. O futuro é isso.

Indo para outro tema, gostaria que você contasse sua experiência com o Doutores das Águas, que atua com a população ribeirinha da região amazônica.

Rosana Richtmann – O Doutores das Águas é um projeto que lida com uma população que eu acho que as pessoas não conhecem tanto. Os ribeirinhos constituem pequenas comunidades de 100, 150 pessoas, que vivem muito isolados. Eu lembro que uma criança uma vez me perguntou onde eu morava. Eu falei que morava longe, em São Paulo. Ela me perguntou quanto tempo que dava e eu respondi que eram 4 horas e meia de avião. Ela me falou “então é perto, porque para ir para Manaus são 3 dias de barco”. E ela tinha razão. Quatro horas e meia não é nada para um ribeirinho em termos de distância que eles têm que ir de barco. Eles existem por causa da época das seringueiras e extração da borracha, é ali que começa. Então, muitos deles têm origem no Nordeste. Eles vão para essa região, se adaptam e nós falamos que os verdadeiros guardiões das florestas são os ribeirinhos, porque eles sabem conviver com a floresta, sem sacrificá-la. Eles vivem da agricultura deles e de muita pesca. Ficamos preocupados quando tem extração de ouro em termos de contaminação das águas, porque eles dependem daquela água. Se você tem uma contaminação da água, nós vemos clinicamente intoxicação pelo mercúrio, que é aquela fadiga e dor no corpo. Enfim, voltando ao início, o Doutores das Águas é um projeto médico e odontológico em um barco hospital. É um barco que foi construído para ser um hospital. Tem um lado que é a parte de odontologia, um lado que é a parte médica. Nós atendemos toda a população de 2000 ribeirinhos. Nós adotamos algumas comunidades, todo ano voltamos para as mesmas comunidades e a cada ano acabamos ampliando e abraçando outras. Os únicos médicos que eles veem no ano somos nós.

É quase um dia de festa quando o barco chega, não é?

Rosana Richtmann – Sim. Nós levamos remédios, medicamentos, orientação, vacinas. Eu estou em um projeto de HPV. A região Norte do Brasil é a de maior incidência de morte por câncer do colo do útero, que está relacionado com o vírus HPV, então nós temos um projeto tanto de vacinação, e estamos agora em parceria com outros serviços para fazer a pesquisa da histologia para ver câncer, lesões pré-câncer, e poder fazer a orientação em termos de tratamento. Todo mundo acha lindo projeto, mas em termos de recursos, nós estamos cada vez com mais dificuldade. Como é muito longe, nós só vamos na época da cheia dos rios, porque vamos em lugares muito distantes e se o rio não estiver cheio, a gente não consegue chegar lá. Então, nós precisamos fazer mais parcerias. O projeto é lindo, se conseguíssemos fazer 2 viagens por ano, atenderíamos 4000 ribeirinhos. Quer dizer, nós temos os voluntários, nós temos o barco e temos condições de fazer isso, então estamos querendo fazer parceria inclusive com empresas que exploram a Amazônia para ter algum legado social em cima disso. Eu sou apaixonada pelo projeto e acho que quem está ouvindo, se quiser se informar mais, temos um site e Instagram. Nós estamos realmente fazendo algumas parcerias. Nós levamos também óculos de grau. Imagina um ribeirinho que depende da pesca não conseguir enxergar para colocar a isca? A hora que ele prova os óculos e ele enxerga, só pelo sorriso que ele abre, nós já falamos: “esse está certo para ele”.

Eu fiz questão de te perguntar sobre o projeto, porque eu sei o quanto você empenhada nele, o quanto ele transforma mesmo a vida das pessoas daquela região que geralmente estão realmente desassistidas.

Rosana Richtmann – Totalmente. Muita lesão de pele. Picada de formiga também. Bom, cobra para eles, é quase que o dia a dia, não é? E só para encerrar esse assunto e voltar um pouco na história das vacinas, infelizmente foi relacionado vacinação com jacaré em um momento da nossa história recente. Se tem um bicho que o ribeirinho tem medo, é o jacaré. Tanto é que você não vê muita gente nadando nos rios. A hora que associaram a vacinação com a possível transformação em jacaré, o que aconteceu? Vimos nas lideranças religiosas de algumas comunidades, 100% sem vacina, em um local onde você não tem nada de acesso à saúde. Você não tem um balão de oxigênio se precisar. Foi um estrago. Esta fala que a gente acha que é uma brincadeira, vocês não sabem o impacto que nós vimos, porque nós também fomos no ano de pandemia, com todos os cuidados. Todas as autoridades de saúde, você como jornalista, eu como profissional de saúde, nós temos muita responsabilidade no que a gente fala. Não dá para minimizar.

Estamos chegando ao fim da nossa conversa. Quais pautas você entende que devemos ficar de olho para 2023?

Rosana Richtmann – Olha, eu tenho sempre esperança. Sou otimista de carteirinha e eu acho que temos que viver assim. Primeiro, quanto menor a politização da saúde, melhor. Política em saúde é claro que precisa ter, mas não a politização na saúde. Espero que não tenhamos isso para 2023, já damos um passo no sentido de resgatar o protagonismo do Programa Nacional de Imunizações. Ele sempre foi o protagonista e havia sempre uma coisa de cima para baixo no sentido de um Brasil. E não sob a ideia de que “esse local vai fazer desse jeito, o outro faz do outro” etc. Nós perdemos totalmente o pé de como estava a saúde do ponto de vista de imunização no nosso país. Não só de imunização, mas de medicamentos e de tudo o que envolveu a pandemia. Acho que se voltarmos a ter o protagonismo de verdade do Ministério da Saúde e do seu PNI, eu já vou acabar 2023 muito mais feliz. Com essa visão, podemos voltar e resgatar muito desses princípios todos que acabamos de conversar. Outro lado que eu acho que é fundamental, e o Brasil tem excelentes profissionais para isso, é a parte da vigilância genômica. É aquilo que eu te falei, eu não posso mais ser pego de surpresa em 2023. Se eu for pego de surpresa, é incompetência. Isso é muito importante também. É algo que às vezes você não vê isso, isso não dá voto.

É uma coisa mais de bastidor, não é?

Rosana Richtmann – Totalmente de bastidor e é fundamental para você não ter exatamente as consequências. Eu acho que o Brasil é um país em que somos sempre bombeiros. Estamos sempre apagando o fogo. Eu tenho que prevenir o fogo. Eu acho que é um ano talvez problemático nessa possibilidade de ter novos patógenos. Eles estão cada vez mais perto. Influenza é um dos que me preocupa. Quanto mais invadimos e destruímos o meio ambiente, não é por acaso que temos mais dengue, febre amarela, novos germes, isso é consequência. Uma coisa está totalmente relacionada com a outra. Então é urgente, sem dúvida, toda a política em termos de sustentabilidade e meio ambiente. Porque senão vamos continuar tendo as enchentes, os rios, e isso traz o quê? Doenças infecciosas.

Não está desconectado.

Rosana Richtmann – Nada está desconectado. Uma coisa está intimamente relacionada com a outra. Não é algo que você tenha um resultado rápido, mas tem que ser feito com responsabilidade para a médio e longo prazo vermos os resultados do que estamos fazendo.

Natalia Cuminale

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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