Pessoas com retenção urinária crônica enfrentam barreiras no acesso ao padrão ouro de tratamento

Pessoas com retenção urinária crônica enfrentam barreiras no acesso ao padrão ouro de tratamento

Cateter hidrofílico foi incorporado ao SUS ainda em 2019, mas a ausência de protocolos e diretrizes ainda dificultam acesso à tecnologia

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By Published On: 22/08/2024
Episódio no Podcast Futuro da Saúde sobre retenção urinária.

A retenção urinária é uma condição pouco conhecida da população, mas estima-se que afeta cerca de 350 mil pessoas no país. Ela se caracteriza pelo fato de que a pessoa não consegue urinar ou esvaziar completamente a bexiga e, quando não tratada adequadamente, pode levar a complicações como infecções urinárias de repetição, deterioração da função renal e evolução para a necessidade de diálise e reconstrução da bexiga. Hoje, os principais desafios relacionados à retenção urinária são a falta de informação geral, a baixa capacitação dos profissionais de saúde para lidar com essa condição e a dificuldade de acesso ao tratamento padrão ouro.

As causas são variadas e vão desde lesão medular, esclerose múltipla e mielomeningocele até obstrução no trato urinário. O quadro ainda pode ser agudo ou crônico, quando os sintomas se desenvolvem de maneira gradativa, o que pode fazer com que o diagnóstico leve meses, prejudicando a saúde e a qualidade de vida do paciente. Além disso, a falta de controle sobre o fluxo urinário provoca também consequências na esfera social e psicológica, já que as pessoas, quando não são assistidos, sofrem limitações para trabalhar, socializar e se relacionar.

O Podcast Futuro da Saúde aprofundou essas questões no novo episódio, que foi oferecido pela Coloplast. Para isso, o programa recebeu Eduardo de Melo Carvalho Rocha, médico fisiatra e especialista em medicina física e reabilitação e presidente da Associação Brasileira de Medicina Física e Reabilitação, Lucas Junqueira, paratleta da Seleção Brasileira de rugby em cadeira de rodas, e Gilberto Koehler, gerente de relações institucionais governamentais e grupos de defesa de pacientes da Coloplast.

“Existem várias formas de retenção urinária crônica, e normalmente ela está associada a doenças neurológicas, ou seja, alguma doença que dificulta a capacidade do paciente perceber que a bexiga está cheia e esvaziar totalmente a urina”, explica Rocha. “Esse ponto é importante, porque muitas vezes a pessoa consegue sentir a vontade de ir ao banheiro e urinar, mas há um resíduo de urina que não é eliminado. E, a longo prazo, esse resíduo é suficiente para causar algumas complicações, principalmente infecções urinárias.”

Lacunas no diagnóstico da retenção urinária

O diagnóstico é essencialmente clínico, a partir de queixas e relatos do paciente. Segundo o especialista, é considerada crônica a retenção com duração de três meses ou mais. E naqueles em que há a eliminação incompleta da urina, o diagnóstico exige mais atenção. “Quando a micção é incompleta, o diagnóstico é mais complexo. O paciente que não consegue urinar é mais fácil de perceber, porque para de ir ao banheiro, a bexiga começa a aumentar. O grande problema são aqueles pacientes que conseguem perder um pouco da urina, mas não a elimina completamente”, detalha.

O médico fisiatra explica que é comum o subdiagnóstico, até mesmo pela falta de preparo das equipes de saúde para avaliar a condição: “Nós temos alguns tabus, perguntamos pouco sobre as condições esfincterianas, sobre a parte urinária, fecal.” Por isso, segundo ele, um dos primeiros sinais da retenção mais relatados é a infecção urinária de repetição – quando ocorrem mais de três casos por ano, o que se torna um motivo de atenção.

Uma vez identificada a suspeita de diagnóstico, é seguido um protocolo para avaliar se há resíduo de urina na bexiga acima do recomendado. “Fazemos com que o paciente urine espontaneamente e então passamos um cateter na bexiga, para medir o resíduo de urina. Uma sobra de até 50 mililitros é considerada normal. Quando o volume encontrado é maior, isso já pode ser um indicativo de retenção urinária”, aponta Rocha.

Tratamento disponível para retenção urinária crônica

Hoje, o principal recurso terapêutico para retenção urinária crônica é o cateterismo intermitente, que consiste na inserção de um cateter na bexiga pela uretra, o que possibilita a eliminação completa da urina. O médico relata que há 20 anos, era comum o uso de cateteres que permaneciam em uso por meses, o que aumentava o risco de infecção. “O cateterismo intermitente é diferente, o seu uso imita as idas normais ao banheiro. Então, a cada quatro ou seis horas, a depender da dieta da pessoa, ela vai até o banheiro fazer esse esvaziamento”, completa.

Chamado de padrão ouro, o cateterismo intermitente deve ser feito com um cateter ou sonda vesical descartável, ou seja, a cada ida ao banheiro, um cateter é utilizado. Essa solução tem passado por uma evolução ao longo dos anos e hoje se apresenta em diferentes opções. Na convencional, é necessário ter o cuidado no manuseio para evitar a contaminação do tubo que terá contato com a uretra e a bexiga, além do uso de um lubrificante anestésico para evitar lesões na uretra ao inseri-lo. Já o cateter com revestimento hidrofílico permite maior autonomia e segurança aos pacientes, pois já vem lubrificado e possui uma embalagem mais adaptada para pacientes sem os movimentos finos – o que permite a auto cateterização com mais conforto, principalmente para pacientes que não têm o movimento de pinça das mãos.

É o caso de Lucas Junqueira, atleta paralímpico da Seleção Brasileira de Rugby, que relembra o impacto que isso provocava no seu tratamento: “No hospital, o processo era feito por uma enfermeira. Quando retornei para casa, o cateterismo passou a ser feito pelos meus pais, porque por não ter os movimentos dos dedos, tenho muita dificuldade no manuseio de algumas coisas. E isso começou a me incomodar.”

Ele sofreu um acidente em 2009 ao mergulhar no mar e bater com a cabeça em um banco de areia. Uma fratura na vértebra C5 da coluna cervical o deixou tetraplégico. “Quando acordei na UTI e não consegui mexer os braços e as pernas, vi que estava usando uma sonda. Achei que fosse temporário, por causa da cirurgia na coluna. Quando fui para o quarto, retiraram a sonda e me falaram que eu precisaria fazer o cateterismo.”

Qualidade de vida

Para Junqueira, a descoberta do cateter com revestimento hidrofílico foi um divisor de águas na sua relação com a retenção urinária crônica. A princípio, o atleta relembra que teve resistência para aceitar a condição e que a limitação do cateterismo convencional acabou o impedindo de desfrutar de sua vida social e profissional de maneira plena.

“Quando eu comecei a tentar fazer o cateterismo sozinho com a sonda convencional, que é uma sonda enroladinho que geralmente a gente recebe no posto de saúde, era muito mais complicado porque não tenho o movimento dos dedos. Então, chegou um momento em que eu consegui fazer, mas demorava muito. E pela necessidade de passar o lubrificante, desembalar e higienizar, acabei tendo mais infecções, porque mesmo com todo o cuidado, a contaminação do cateter acontecia”, relembra.

Com as infecções urinárias de repetição, o atleta começou a ter a rotina de treinos afetada, já que era difícil manter a constância e conciliar as complicações médicas. Diante desse cenário, ele compartilha que o simples pensamento na dinâmica exigida para urinar fora de casa passou a lhe despertar ansiedade. “Eu pensava que se saísse, ia precisar voltar para fazer o procedimento em casa, ou que o banheiro poderia não ser adaptado para apoiar os materiais necessários para fazer o cateterismo fora de casa. Por alguns momentos, acabei não aceitando convites por esse receio de ter alguma perda”, relata o paratleta.

Em 2013, ele teve contato com o cateter com revestimento hidrofílico pela primeira vez, e viu no dispositivo um passaporte para uma maior independência: “Ele já vem pronto para o uso, lubrificado. A embalagem é fácil de transportar e muito prática, inclusive para pessoas que não tem movimento de dedos como eu. E desde então eu utilizo esse cateter, que me dá uma autonomia muito maior.”

Barreiras de acesso

O cateter com revestimento hidrofílico está disponível no Sistema Universal de Saúde (SUS) desde 2019, mas o acesso ainda enfrenta desafios. “Ele passou por todo o processo da Conitec, toda a avaliação econômica e de segurança, e tem uma portaria publicada no Diário Oficial. Mas ainda não está disponível a todos os brasileiros que precisam dessa tecnologia, tanto na saúde pública quanto na privada”, explica Gilberto Koeler.

O gerente de acesso da Coloplast destaca que uma das principais barreiras para esse acesso é a falta de um programa estruturado que contemple critérios de dispensação e a criação do Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da condição:

“Agora, o que precisa agora acontecer de fato é essa pactuação tripartite, com representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Esse é o ponto crucial para que as pessoas possam ter de fato acesso a essa tecnologia.”

Ele destaca que o avanço nesse sentido, além de garantir melhores desfechos clínicos e melhora na qualidade de vida, é também uma questão de sustentabilidade econômica para o sistema. “Temos que olhar quantas infecções urinárias poderiam ser evitadas, quantas situações de diálise poderiam ser evitadas. Esse custo vai ser muito mais alto”, conclui Koeler.

Isabelle Manzini

Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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