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Residências terapêuticas crescem em número, mas estigma ainda é um desafio

Serviço estimula o resgate de identidade e autonomia de quem esteve em internação psiquiátrica de longa permanência

               

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Residências terapêuticas

Ao longo das últimas décadas, o cuidado de pessoas com problemas de saúde mental passou por um movimento de mudanças que envolveu políticas públicas e uma transformação do olhar social, econômico e de práticas de cuidado. Impulsionada pela reforma psiquiátrica, esta nova visão veio com o objetivo de superar o modelo anterior, que era manicomial e asilar. No Brasil, uma das iniciativas que surgiram deste contexto é o Serviço de Residências Terapêuticas (SRT), que existe há mais de 20 anos. São casas localizadas no espaço urbano e organizadas para responder às necessidades de pessoas portadoras de transtornos mentais graves. Contudo, mesmo após duas décadas de existência, o estigma ainda é um desafio presente.

Atualmente, segundo o Ministério da Saúde, o país possui 870 residências terapêuticas. Desde março, 55 novas unidades foram habilitadas pela pasta, e há potencial para a ampliação deste serviço. Durante a 17º Conferência Nacional de Saúde (CNS), que ocorreu em julho deste ano, a ministra Nísia Trindade assinou portarias para repassar R$ 414 milhões no período de um ano para recompor o orçamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) – da qual as SRTs fazem parte –, para melhorar a assistência na rede de saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS).

Na ocasião, a ministra reforçou que “há muito tempo abandonamos a visão de tutela pela visão do cuidado e da participação”. É neste contexto que as residências terapêuticas atuam. O serviço abrange todo o território, através do SUS.

Para compreender o papel social das residências terapêuticas, é preciso compreender antes a quem elas se destinam. O público-alvo contempla pessoas que permaneceram em internações psiquiátricas de longa duração (dois anos ininterruptos ou mais) e que, ao saírem, não possuem mais vínculo social ou laços familiares, o que impede a reinserção destes indivíduos na sociedade.

Além disso, a forma de assistência das SRTs divide-se em duas modalidades. No tipo 1, as moradias são destinadas a pessoas com transtorno mental em processo de desinstitucionalização – que é a desospitalização para a reinserção na sociedade –, devendo acolher no máximo oito moradores. No tipo 2, as unidades são destinadas às pessoas com transtorno mental com acentuado nível de dependência, que necessitam de cuidados permanentes específicos, devendo acolher no máximo dez moradores.

As residências terapêuticas surgem como um dispositivo estratégico no processo de desinstitucionalização, como afirma Amanda Menon, coordenadora da gestão de serviços de saúde mental do Einstein. “Por anos utilizamos os manicômios para isolar pessoas que não se ajustavam à ‘norma’. Entretanto, esta ‘norma’ era construída socialmente, ou seja, qualquer pessoa que não se adequasse à determinado padrão social era isolado nessas instituições”.

O Einstein faz a gestão atualmente de quatro Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e dois Serviços de Residência Terapêutica, em São Paulo, em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

Olhar humanizado e ressocialização

O principal diferencial de uma residência terapêutica é que, embora esteja inserida na Rede de Atenção Psicossocial como um serviço de saúde, o funcionamento é como uma casa. “É um espaço de moradia que promove a oportunidade de novos vínculos sociais e afetivos, habilidades de comunicação e modos de fazer suas atividades da vida diária e, por consequência, um investimento no projeto de reabilitação psicossocial de cada morador”, explica Menon. “Fazer isso tem seus encantos pelo resgate de direitos, a construção de pertencimento e sua complexidade por pensar de forma criativa e transformadora em práticas que incentivem o protagonismo de viver fora das rotinas hospitalares.”

Todo o processo é pensado desde o início, quando as residências são construídas e abertas para os novos moradores. Antes disso, a equipe da SRT, que conta com supervisor, técnicos de enfermagem e acompanhante terapêutico de outras áreas não necessariamente ligadas à saúde – para assegurar um olhar integral para a pessoa –, é responsável por fazer as medições e articulações na comunidade e seus recursos formais e informais para receber a moradia.

Menon salienta que as SRTs coordenadas pelo Einstein são do tipo II, localizadas na Zona Sul de São Paulo, e possuem moradores mais dependentes e com média de internação de 25 anos. Por isso, atividades simples, como ir à padaria, dependem do processo de contratualidade com o morador e disponibilidade da comunidade local para recebê-lo e apoiá-lo, quando necessário.

“A equipe estava estimulando um morador a comprar pão sozinho. Devido aos anos de internação, há muito tempo ele não usava dinheiro ou até mesmo havia ido a uma padaria. O papel da equipe da SRT é mediar a oportunidade. Então, vamos à padaria antes, conversamos com o trabalhador do local, explicamos que tal pessoa está aprendendo uma nova habilidade e perguntamos se é possível ajudá-lo quando ele vier, sobre preço e valores”, afirma a mestre em Saúde Pública, Saúde e Educação em Saúde pela Universidade de São Paulo (USP).

Segundo ela, olhar para cada pessoa de forma humanizada, empática e praticar escuta ativa é a chave para compreender as necessidades do processo de ativar a identidade e autonomia de cada morador. “Temos que aprender a redefinir a nossa escuta o tempo todo, porque todo o processo inclui acolher, respeitar e incluir. Estas três ações envolvem a escuta para que esse morador tenha protagonismo em suas escolhas e projetos de vida. A lógica de trabalho é um investimento diário para que nossos esforços estejam dirigidos ao ponto de partida do morador, e não a do profissional, para não desqualificar o poder de escolha. Temos que estar atentos aos detalhes e exercitar o poder de fazer um pouco todos os dias para legitimar o que são”, pontua Menon.

Como parte da estratégia de reabilitação psicossocial, o Governo Federal repassa recursos para cada morador através do município. Pelo princípio da autonomia, o auxílio pode ser utilizado conforme a necessidade do morador, como para aquisição de pertences pessoais, vestimenta, festa de aniversário, cursos, restaurantes de interesse, dentre outros.

Estigma das residências terapêuticas ainda é principal desafio

Questões de saúde mental sempre foram alvos de estigma social e, apesar das transformações nos últimos anos, ainda há um caminho longo a ser percorrido. Parte da sociedade ainda classifica pessoas com transtornos mentais graves como agressivas e violentas. “O estigma aparece o tempo todo, de diversas formas. A sociedade, os serviços de saúde, os recursos do território precisam rever suas práticas para construir caminhos, formas que possibilitem dar visibilidade aos portadores de transtorno mental”, aponta a coordenadora.

Um relatório publicado pela ONU em 2022 chamou a atenção para o tema. De acordo com os dados levantados, 71% das pessoas com psicose em todo o mundo não acessam serviços de saúde mental. A ausência de cuidado aumenta o potencial de evolução de quadros leves e moderados para graves. Hoje, os transtornos mentais já são a principal causa de incapacidade, causando um em cada seis anos vividos com incapacidade, segundo o documento.

“Como qualquer outro cidadão, a pessoa que tem um transtorno mental tem uma série de desafios, porque ter direito muitas vezes não é garanti-lo”, argumenta Menon. “É um trabalho de fazer um pouco todo dia em busca do protagonismo e vida digna. A reforma psiquiátrica foi um marco, mas o dia a dia de fazer com que esse morador converse com o seu vizinho, vá até a padaria, participe de uma aula, se sinta acolhido e pertencente ao território onde mora também fazem parte desse desafio”.

Para ela, um dos benefícios das residências terapêuticas e da construção de vínculos com a comunidade local é a supervisão compartilhada por todos em relação às práticas adotadas pelos profissionais das casas. “Há uma vigilância popular, que é o vizinho que pergunta sobre o morador quando não o vê, o padre que pergunta por que fulano não foi à missa. Cria-se um espaço com uma série de possibilidades de viver e conviver, com um olhar de várias pessoas.”