Renato Casarotti: “Sem o rol da ANS, não há plano de saúde”
Renato Casarotti: “Sem o rol da ANS, não há plano de saúde”
A sociedade está cada vez mais engajada em assuntos relacionados
A sociedade está cada vez mais engajada em assuntos relacionados à saúde. Um dos mais recentes capítulos dessa história veio com a decisão do STJ pelo rol taxativo, que determinava que a lista de procedimentos não é aberta para interpretações e não contempla apenas exemplos. A sociedade se mobilizou: influenciadores fizeram campanha, hashtags proliferaram no Twitter, artigos de opinião foram publicados massacrando o resultado, protestos ocorreram em Brasília… Como o outro lado da história viu esse debate? Esse foi um dos temas abordados por Renato Casarotti, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), na entrevista do mês para Futuro da Saúde.
Formado em direito pela USP e pós-graduado em direito das relações de consumo pela PUC e em direito do estado e da regulação pela FGV, o executivo é também vice-presidente de relações institucionais do UnitedHealth Group Brasil. Ele assumiu a presidência da instituição em abril do ano passado e, agora, está à frente da principal associação que representa as operadoras de planos de saúde: hoje são 141 empresas associadas, responsáveis por 35% – ou aproximadamente 17 milhões – dos beneficiários no Brasil.
Na conversa, Casarotti foi além do rol taxativo e explorou diversos temas quentes do setor, como a retomada dos planos individuais, o papel dos planos ambulatoriais no acesso à saúde, o surgimento de healhtechs de planos de saúde, o diálogo com hospitais e outros elos do setor, os modelos de reajustes e para onde a saúde suplementar deve caminhar nos próximos anos. Confira os principais trechos da entrevista:
Você já havia visto uma movimentação pública tão orquestrada como vimos agora na recente decisão sobre o rol taxativo?
Renato Casarotti – Já vi isso acontecer em pelo menos três situações da saúde. Uma foi na discussão sobre os quimioterápicos orais. Ela começou bastante emocional, considerando a sensibilidade do tema, mas houve um momento que migrou um pouco para um caráter mais técnico. Tanto é que no fim acabou se alcançando, ainda que de uma forma atropelada, algo que estava dentro do objetivo da maioria das pessoas, que era um aprimoramento do processo de incorporação. Outra situação que vi isso de forma muito parecida foi com o piso da enfermagem. Um modelo de mobilização que envolve uma mensagem mais crua, muito objetiva, na base da pressão. Há de se reconhecer que o resultado foi efetivo. E a terceira situação agora com o rol taxativo.
E qual sua leitura desse movimento?
Renato Casarotti – Essa movimentação é recente e, obviamente, acompanha a abrangência das redes sociais. É inegável essa relação direta entre a amplitude das redes sociais e a capacidade desses movimentos se coordenarem. O receio que eu tenho é que este é um método que se provou eficaz como pressão e dá zero espaço para o contraditório. Vai muito numa linha de cancelamentos digitais, no sentido de aniquilar, não dar voz, deslegitimar outras vozes. E quando a causa tem muito clamor social, isso quase que legitima quebrar esse espaço de ter contrapontos. Como você tem à frente uma discussão que expõem pessoas numa situação de vulnerabilidade individual muito grande, crianças com autismo, que sofrem de paralisia cerebral, isso tem um apelo muito forte.
Depois dessa decisão do STJ, vários parlamentares começaram a apresentar projetos de lei com o objetivo de ampliar esses procedimentos. Qual é o risco de uma interferência do legislativo nesse processo?
Renato Casarotti – É um risco muito grande. Vemos isso com muita preocupação. Para quem não é especializado, a realidade é que ninguém sabe o que é rol taxativo ou exemplificativo. Ninguém sabe nem o que é rol. Fica uma confusão muito grande e no final, a narrativa que fica é uma luta entre operadoras capitalistas que visam lucro e os pacientes.
Como vocês avaliam essa narrativa?
Renato Casarotti – Tentamos explicar que o rol é a lista de coberturas obrigatórias e ela tem que existir. Ela pode ser dinâmica e deve ser atualizada, como tem sido, e eu entendo até que os intervalos muito longos de atualização geraram essa pressão maior.
Mas o fato é que sem a lista, não há plano de saúde. Não é uma questão de preferência. Sem essa lista, eu não consigo saber o que estou vendendo.
Isso é muito o escopo de um plano de saúde. Preciso saber quais são as coberturas e a população coberta para fazer os estudos e projetar o que haverá de despesa. Aí eu precifico esse produto. Se eu tiro algum desses elementos da equação, fica impossível precificar.
O que deve acontecer se essas interferências do legislativo prosperarem em prol do rol exemplificativo?
Renato Casarotti – Essas interferências trazem um nível de instabilidade tão grande que, na minha opinião – e sei que parece alarmista isso, mas acho que pela primeira vez é um alarmismo justificável – eu não sei se o setor se sustenta operando dessa forma. Se isso prosperar, dois extremos devem acontecer no curto prazo. Um é a sub precificação, com a manutenção dos preços. Só que com cobertura ilimitada e uma enxurrada de ações judiciais, mesmo coisas que eram consideradas improcedentes, porque você está atendendo ao que está no rol, passa a ser procedente, porque o rol nem vai existir. Seria um efeito de 2 a 3 anos que traria inviabilização econômica das operadoras.
E o outro extremo?
Renato Casarotti – Seria operadoras querendo se proteger muito e precificando isso muito alto e aí você teria a exclusão de mercado pelo preço. Tem um paralelo que faço, que não é tecnicamente preciso, que é você pedir para a companhia aérea determinar o preço da passagem aérea sem falar o destino. Neste caso, quem decidiria a passagem seria o piloto – que no caso seria o médico – na hora da decolagem. Ele pode ir para Ribeirão Preto ou para Tóquio. Se você precificar tudo para Ribeirão e o destino começar a ser Tóquio, a companhia aérea quebra. Mas se a companhia coloca preço de Tóquio para tudo, eu inviabilizo a viagem para Ribeirão Preto. Até a expressão rol exemplificativo é contraditória.
Já ouvi isso da própria ANS: para que eu preciso de rol se é apenas exemplificativo? No fim do dia, a lógica toda é criar isso para conceder coberturas que hoje não existem. Mas o processo para fazer isso existe com a Avaliação de Tecnologia em Saúde. No mundo inteiro é assim.
A própria decisão do STJ colocou uma possibilidade de os planos cobrarem uma espécie de pacote extra. Isso seria uma solução?
Renato Casarotti – Isso faria sentido se o rol fosse bem mais enxuto. Acho que o modelo ideal ainda é o tradicional de processo de incorporação tecnológica. E mesmo esse processo traz um dilema de agregar valor versus custo. Há quem diga que, na prática, ao agregar valor você reduz custo, mas não reduz. Isso acontece há dezenas de anos no Brasil e nunca houve queda. Novas tecnologias são mais caras. É um fato. Elas são incorporadas exatamente porque o que trazem de valor compensa o que trazem de custo. Isso leva a outro tema que é o reajuste e isso tende a gerar uma pressão muito grande no acesso.
Quais outros caminhos poderiam ser seguidos?
Renato Casarotti – A retomada do plano ambulatorial pode ser um caminho. A adoção de planos que tenham a lógica do médico de família, como gestor do cuidado, também. São ideias positivas para um dilema que existe no Brasil e no mundo inteiro. E ainda não temos solução. Meu receio é que a saúde em geral vai passar por algo parecido com o que houve com a previdência. E envolve a discussão de um conceito muito polêmico que é o da integralidade. Qualquer solução de longo prazo passa por aí. Mas acredito que só haverá espaço para isso quando estivermos à beira de um colapso, como foi com a previdência, que trouxe mobilização da imprensa, sociedade, políticos. Minha impressão é que a discussão sobre saúde está muito no varejo, pulverizada. Só vamos discutir a estrutura quando a realidade nos forçar a isso.
Você não acha que se os planos fossem mais transparentes na questão dos valores cobrados, a sociedade entenderia melhor esse processo?
Renato Casarotti – Temos que trazer mais transparência nesse processo, mas temos que tomar alguns cuidados para não entregar uma visão fora de contexto. Excluindo os casos excepcionais, tecnologias de centenas de milhares não vão aumentar o plano tanto assim, mas ao longo do ano são várias incorporações – só este ano já foram 24. Portanto, fazer uma análise individualizada pode tirar a visão de contexto. Outro receio é o dilema ético, que pode demonizar o paciente. Um exemplo clássico é o da atrofia muscular espinhal, que por ter um medicamento de milhões poderia levar um plano a quebrar e prejudicar um monte de gente.
O que mais pode ser feito para melhorar a transparência?
Renato Casarotti – Uma coisa que faz muito sentido é o estabelecimento de critérios, como a definição dos limiares de custo-efetividade, para analisar tecnologias. Temos que ter. Outro ponto seria poder discutir o preço de incorporação. Tivemos um caso recente de um medicamento que foi negociado e incorporado no SUS por 4 mil reais, mas o preço CMED é de 17 mil reais. E aí ele foi incorporado automaticamente na saúde suplementar por 17 mil reais. As grandes redes verticalizadas sofrem menos com isso porque compram para elas mesmas. Mas as operadoras menores, quando contratam um hospital, o que vale é a tabela CMED. Aí o que acontece? O hospital, por exemplo, negocia para comprar por 7 mil e pede o reembolso de 17 mil. É um grande buraco que a gente tem hoje. Temos levado essa discussão para outros players, como a Sindusfarma, porque faz todo sentido. Isso gera dois desvios: medicamentos que não são incorporados porque são analisados com base no preço CMED, que muitas vezes é um preço irreal, mas também não adianta analisar com base no preço de mercado e manter o preço CMED como está e isso ser o referencial para o reembolso.
Minha impressão é que, se a gente discutisse o preço de incorporação levando em conta os valores da saúde suplementar, conseguiríamos incorporar muito mais tecnologias.
Mas você sente que o processo em si está evoluindo?
Renato Casarotti – Sim, precisamos reconhecer a evolução desse processo de um ano e meio para cá. Passou a ter processo de atualização contínua, os prazos são reduzidos, há um painel com participação social muito relevante – acho que até tem hora que fica desproporcional, com pacientes levando casos individuais – mas faz parte do processo. O importante é não perder a parte técnica. Acho que o próximo passo é ter esses critérios mais objetivos de análise. O segundo ponto é levar mesmo essa questão financeira para as pessoas terem essa visão. Mas sempre que tiver que estabelecer critérios para priorizar o que será incorporado, haverá gente insatisfeita. Como sociedade, teremos que ser maduros o suficiente para lidar com isso, principalmente os gestores e os parlamentares.
Nesse contexto de melhorar o processo, além da questão da transparência na incorporação, falta informação também para a sociedade, que ainda escolhe plano de saúde com base na rede credenciada. O que a Abramge tem feito para melhorar essa relação?
Renato Casarotti – Estamos trabalhando nesse ponto, mas isso envolve uma mudança cultural. Para ser muito justo, o setor de saúde também incutiu nas pessoas que a grande referência para a compra de um plano de saúde é a rede, principalmente os hospitais vinculados. Há iniciativas hoje, todas muito positivas, de valorizar a lógica do médico de família, da coordenação do cuidado, inclusive com várias startups trazendo isso. É uma questão que tem que avançar sem demonizar as iniciativas entre si, de um modelo dizer que é melhor que o outro. Tem espaço para todos esses modelos diferentes. Precisa mudar a mentalidade das pessoas, dos departamentos de recursos humanos. E aí entramos em outro ponto que hoje é sagrado, muito pouco divulgado, que é o fato de ninguém divulgar indicadores de qualidade de forma individualizada. Você vê algumas iniciativas de divulgar isso apenas compilado.
Assim como faz a Anahp, por exemplo?
Renato Casarotti – A Anahp divulga compilado, a média dos hospitais. É um passo importantíssimo e tenho a nítida impressão que eles não querem parar por aí. Até porque as pessoas vão começar a cobrar isso. Na Abramge discutimos isso também, mas para fazer sentido para as pessoas, vai ter que ser uma divulgação individualizada daquela unidade assistencial. Isso é fundamental. Agora, eu entendo também o receio. Por que um hospital tomaria a frente nisso? Ele vai sofrer comparações, represália. Mas temos que caminhar para isso. E é fato que você encontrará unidades boas e ruins nos hospitais de mercado e nos verticalizados também. A diferença entre o bom e ruim está na gestão e não no modelo. A convergência desses modelos acontece quando sai da ideia da rede credenciada ou verticalizada e começa a trabalhar com a ideia de redes integradas.
O que seria uma rede integrada?
Renato Casarotti – É quando você estabelece metas conjuntas, seja dentro do plano assistencial verticalizado, seja em uma relação entre seguradora e rede credenciada, onde você define indicadores de qualidade, remuneração, metas conjuntas de desospitalização, reinternação, de monitoramento da qualidade de vida desses pacientes no pós. Isso pode acontecer – e já está acontecendo – nos dois modelos. Você não precisa ter a entrega de cuidado junto do plano de saúde para ter um modelo que tenha gestão no centro. No verticalizado é mais fácil porque a tomada de decisão está centralizada, mas com governança é possível no outro modelo. Essa governança tem que estar onde no modelo, no contrato, na transparência desses critérios e no objetivo. E que caminhem juntos, fazendo ajustes quando necessário.
Você acha que os players do setor estão preparados para essa mudança de mentalidade, entrando no conceito dos modelos de pagamento, ou isso ainda está muito na teoria?
Renato Casarotti – Já existe uma prática disso, mas ninguém achou uma bala de prata.
Mas de quem tem que ser a iniciativa? Dos planos de saúde ou dos hospitais?
Renato Casarotti – Dos dois. Na verdade, isso tem que partir das lideranças, das empresas líderes.
No sistema capitalista que vivemos, o papel das lideranças setoriais e empresariais é fundamental para o futuro do sistema de saúde.
Uma healthtech que não tem nada a perder pode tentar uma coisa muito disruptiva e dar certo, mas são as lideranças que podem analisar o sistema, entender que está insustentável e recuperar essa sustentabilidade. Quando uma empresa líder faz algo, a tendência é o mercado seguir. É tentar olhar uma forma diferente e encontrar soluções, com a consciência de que um modelo pode não ser perfeito, mas que é preciso ter discernimento, serenidade e visão de futuro para ajustar o que for preciso e seguir em frente.
Planos e hospitais já estão nesse diálogo mais transparente?
Renato Casarotti – Já evoluiu muito. Dialogamos o tempo todo. Tem um gesto que marcou muito e passou desapercebido de muita gente. No dia do julgamento do rol, a CNSaúde [Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços], que é historicamente um órgão dos prestadores, soltou uma nota apoiando o rol taxativo. Agora, estamos discutindo o piso da enfermagem, que já é uma realidade. Temos discutido a lógica de financiamento com as Santas Casas. Não adianta resolver o problema de um lado e deixar as Santas Casas estourar, porque elas vão estourar. A lógica tem que funcionar para todo mundo.
A questão das glosas ainda é um ponto sensível?
Renato Casarotti – Sim. Eu acho que fica todo mundo muito entrincheirado e a gente ainda se reúne pouco para tentar resolver. O mais provável é que haja glosas não fundamentadas e haja também desperdícios, mas eu tenho plena convicção que isso não é o comportamento preponderante nem de um lado e nem de outro. Mas há uma evolução e esse diálogo está mais presente. Ainda tem dois elos que precisaríamos aproximar no diálogo setorial: a indústria [farmacêutica] e as sociedades médicas.
Este ano saiu uma pesquisa feita por duas associações médicas, que dizia que 80% dos médicos já sofreram pressão ou interferência dos planos.
Renato Casarotti – Sou sempre muito refratário com pesquisas de opinião que são dadas como ciência. Opinião depende muito de como você faz a pergunta. Provavelmente se eu fizesse uma pesquisa no dia seguinte com 150 operadoras de saúde para ver qual o percentual delas acha que já sofreu fraude ou abuso por parte do médico, diria que ficaria acima de 80%. Isso quer dizer que a grande maioria dos médicos faz isso? Não. Alguma operadora já insistiu para fazer isso ou aquilo? Com certeza tem. São 700 operadoras no Brasil e não duvido que isso aconteça. Mas transformar isso em um comportamento setorial é muito ruim.
Mas há pelo menos algum diálogo com as sociedades médicas?
Renato Casarotti – Temos falado bastante principalmente com a Associação Paulista de Medicina (APM). O Dr. José Luiz Gomes do Amaral é uma referência na saúde brasileira. Há coisas que a gente pode evoluir. Eles têm que participar de forma mais efetiva da discussão do processo de incorporação de tecnologias. O Dr. Omar Abujamra, da Unimed, fala muito isso e eu concordo: tecnologias que são empurradas de forma equivocada tomam um espaço no orçamento, inclusive para honorário médico. Se você olhar o custo geral do plano de saúde, verá que 50% estão dentro do hospital. Normal. É a área de alta complexidade do setor. Depois vem medicamentos, exames e tal. E o menor está em consulta. Existe um desequilíbrio que precisa ser corrigido. Agora, essa correção não é simplesmente aumentando honorário. É preciso equilibrar em outros lugares e de uma lógica que o papel do médico se engrandeça para que a necessidade de exames complementares, o volume de hospitalização seja menor. Dessa forma você abre espaço para melhorar honorário médico.
E como é a receptividade das sociedades médicas quando vocês expõem a visão dos planos?
Renato Casarotti – Eles disseram que eram contra o rol taxativo e eu expliquei toda essa lógica de sustentabilidade. Também disseram que eram contra os planos ambulatoriais, porque haveria precarização, retirada de direitos. E explicamos que os planos vão conviver.
A ideia não é pegar quem não tem plano hospitalar e tirar o direito ao hospital. É ter uma oferta de um outro produto para a sociedade, que tem um espaço enorme de crescimento.
Elas endereçam uma demanda reprimida enorme. Existem clínicas populares que já atuam assim, muitas vezes à margem da regulação, na minha opinião. Você poderia ter um produto dentro da saúde suplementar com as mesmas proteções, as mesmas características e com responsabilidade. Hoje um dos maiores gargalos da saúde pública está na realização de exame. Elas não chegam no hospital na hora certa porque não conseguem fazer exame, aí chegam só na emergência.
Muitos argumentam que os planos ambulatoriais sobrecarregariam o SUS, porque não teriam acesso aos hospitais privados. Qual sua visão sobre isso?
Renato Casarotti – Quando ouço isso costumo dizer: então é melhor deixar como está? Porque se a pessoa não fizer consulta ou exame, ela pode acabar descobrindo algo em uma situação mais agravada e isso vai sobrecarregar o SUS do mesmo jeito. Essa é a realidade. Você demora quatro, cinco meses para ter acesso a uma consulta, depois mais 60 dias para marcar um exame, uma mamografia, por exemplo. Olha o intervalo de tempo entre uma coisa e outra. O risco de descobrir uma condição só quando estiver muito agravada é muito grande e aí tem que correr para emergência do hospital.
Mas esses planos já existem, certo?
Renato Casarotti – Já existem. Quando surgiu era muito efetivo. Mas hoje ele é inviabilizado por duas situações. Uma é a internação de emergência de 12 horas. Todo plano ambulatorial precisa garantir uma internação de emergência de 12 horas. Isso foi criado em meados dos anos 2000. Acontece que os escritórios de advocacia foram criando uma tese de que ao entrar no hospital, a pessoa está em situação de fragilidade. E aí ele entra com uma liminar para a pessoa ficar lá coberta pelo plano. A segunda situação é que os planos tiveram que passar a cobrir a quimio oral. Tecnicamente faz sentido, porque é um tratamento ambulatorial, mas aí entramos na questão do processo e custo da tecnologia, porque é um tratamento de altíssimo custo. Isso aumentou a sinistralidade e a aí a diferença de preço para o plano hospitalar já não fazia sentido.
O que mais impede o avanço desses planos?
Renato Casarotti – São duas razões principais. Uma é que existe uma lógica ideológica muito grande, principalmente da comunidade sanitarista, que pensa que não podemos deixar o setor de saúde suplementar se expandir, que quanto menor for, melhor. Eu entendo a lógica, mas a nossa redução teria que vir acompanhada de uma melhora do SUS. As pessoas fariam a análise de custo-benefício e veriam que pelo custo e a entrega de serviço, seria melhor ficar no SUS. Isso seria meritório, faz todo o sentido. Mas reduzir o acesso para manter os planos em uma caixinha não faz sentido.
E a outra razão?
Renato Casarotti – É o receio de downgrade que parte do setor tem. Até porque o plano ambulatorial, por natureza, tem uma margem menor por ser um produto de acesso. Mas ele vai deixar os planos com hospitais como aspiracional. No momento que a pessoa puder, ela vai acabar migrando para o outro plano. E há ainda um terceiro ponto que é a desinformação, de achar que é a perda de direitos. E não é.
Plano ambulatorial não está sendo criado para quem tem plano. É para quem não tem acesso. Aqui está o potencial de trazer mais gente para dentro do sistema, mas com controle, mecanismos de fiscalização, garantias prudenciais.
Por que esses planos seriam melhores que as clínicas populares?
Renato Casarotti – Justamente pelas proteções em termos de condições, prazos de atendimento, retorno, capacidade de você questionar a agência reguladora com relação à qualidade. As clínicas populares hoje não têm nenhum controle de qualidade. Talvez haja controle de qualidade das sociedades médicas, mas é muito incipiente quando comparado com a fiscalização da agência reguladora.
A saúde suplementar historicamente fica próxima de uma margem de 25% de cobertura do total da população. Como seria possível aumentar essa participação?
Renato Casarotti – Existem três formas de crescer. A mais óbvia é o crescimento econômico do país. Com mais emprego formal, mais vidas teriam plano. Por termos um vínculo empregatício, nosso setor depende profundamente do nível de emprego. A segunda forma passa pelos planos ambulatoriais. Uma terceira, que é mais uma “vaca sagrada”, é pensar em viabilizar novamente o plano individual. Existem várias saídas para isso. Uma é a lógica da coordenação de cuidado por meio do médico de família. Outra é ter redes próprias ou rede integradas, seja com verticalização ou um bom contrato com um prestador. Outra é rever a mecânica de reajuste.
De que forma seria essa nova mecânica de reajuste?
Renato Casarotti – O reajuste deveria ser individualizado por operadora. A metodologia atual tem duas características sensacionais: ela é previsível, porque é uma fórmula que tem na regulação, e é transparente, porque o dado é público. Qual é o principal problema dessa metodologia, na minha avaliação? Como você pega a variação de custo de todas as vidas do Brasil e faz a média, tem gente que fica acima e tem gente que fica abaixo da meta. O que menos tem é gente que fica na média. Por exemplo, operadoras mais antigas, de rede aberta, credenciada, ficam acima dessa média. Planos verticalizados ficam abaixo. Vamos supor que a média fechou em 8. Um plano fechou em 12 e outro fechou em 4. O que fechou em 4, não reajusta 4, ele reajusta 8. O que fechou em 12 reajusta 8 e aí a saída dele é parar de vender plano individual, porque senão ele vai quebrar. Por isso digo que o reajuste pode até seguir a mesma metodologia, mas deveria ser por operadora.
Mas isso não levaria as pessoas a migrarem para aquele que reajusta menos?
Renato Casarotti – Isso se chama concorrência de mercado. Quando ela funciona, ajuda demais. Com o tempo, a operadora que reajusta 12 vai ter dois efeitos: menos entrada de beneficiários e vai precisar segurar o reajuste para não perder muito cliente. Essa concorrência hoje já acontece um pouco com planos coletivos, mas no individual isso não existe porque há um tabelamento. A tendência é todo mundo migrar para a média.
Esse modelo de reajuste por operadora teria o efeito de destravar a oferta. E há um novo elemento chegando que são os novos modelos de trabalho.
Como assim?
Renato Casarotti – Sem fazer juízo de valor, mas o caminho natural seria uma migração novamente para planos individuais, que dependa menos de um vínculo empregatício formal. Tem mercado e boa vontade para isso, o que precisamos é viabilizar do ponto de vista regulatório. É uma questão que enfrentaria muita resistência.
Como você, Renato Casarotti, vê as healthtechs de planos de saúde?
Renato Casarotti – Acho que não dá para colocar todas debaixo do mesmo guarda-chuva. Existem aquelas que se dedicam muito a endereçar um gargalo da cadeia. Elas naturalmente são uma usina de ideias e, agora, precisam juntar a capacidade de serem vetores de execução. Aqui é o grande desafio. Temos visto algumas delas que vendem a ideia, captam dinheiro no mercado, mas não conseguem avançar. Mas trazem boas ideias, então a presença delas é fundamental. Por outro lado, existem aquelas mais específicas, que entregam uma lógica parecida com o plano de saúde convencional para resolver uma demanda de mercado. Algumas delas agora enfrentam um dilema quase existencial. Por exemplo, aquelas com ideia de coordenação de cuidado, com médico de família. Para funcionar, precisa que toda a população coberta esteja engajada e acredite nesse profissional. Se os beneficiários acharem que o médico de família está, de certa forma, boicotando, o modelo começa a ruir. É difícil fazer essa migração.
Você acha que elas continuarão no mercado?
Renato Casarotti – Será uma época difícil para várias delas. Como o dinheiro mais acessível está reduzindo, como efeito do aumento de juros, o dinheiro que fica começa a exigir resultado muito de curto prazo. Se o plano inicial era de 10 anos, agora vai ter que encurtar para três. Esse é o grande desafio. Mas como tudo no nosso mundo atual, capitalista, há um elemento de seleção mercadológica. Aquelas que conseguirem passar desse muro, inevitavelmente terão conseguido acelerar esse processo de mudança em um tempo muito menor do que projetaram inicialmente. Se alguma delas for bem-sucedida nisso, você pode ter uma quebra de paradigma. E podem acontecer duas coisas: atuarem sozinhas ou serem compradas por grandes empresas.
Para encerrar, para onde você acha que os planos vão caminhar em um futuro de 5 a 10 anos?
Renato Casarotti – Pelo que vi nesses últimos tempos, acho que caminha para dois lados. Um é aumentar nossa capacidade de coletar, processar dados de forma inteligente, lastreado por um prontuário único eletrônico, mas único mesmo, e que a RNDS [Rede Nacional de Dados em Saúde] seja o vetor disso. Isso vai trazer as tendências necessárias para orientar melhor as políticas públicas e particulares. Outro é as operadoras trabalharem muito mais próximas do beneficiário. Automatização, inteligência artificial etc. são ferramentas para ajudar quem está próximo. Quem conseguir juntar essas equações estará muito bem posicionado.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.