Relações Público-Privadas na Saúde: em busca do seguro perdido
Relações Público-Privadas na Saúde: em busca do seguro perdido
Em artigo exclusivo, Rudi Rocha e Leonardo Rosa abordam as relações público-privadas na saúde e a análise da pesquisa do IEPS e Umane sobre o tema
O sistema de saúde no Brasil enfrenta grandes desafios. Embora nosso gasto com saúde seja condizente com a renda per capita, ele é distribuído de maneira desigual. Enquanto 4 pontos percentuais (p.p.) do PIB são direcionados ao Sistema Único de Saúde (SUS), que atende diretamente 75% da população e atua em diferentes dimensões de saúde pública, beneficiando toda a população, 6 p.p. são gastos em planos de saúde (que atendem 25% da população) e gastos do próprio bolso das famílias. Essa realidade já é preocupante e, olhando para o futuro, a situação se torna ainda mais desafiadora. Até 2060, o Brasil precisará enfrentar um déficit crescente no financiamento da saúde, uma cifra que pode chegar a R$ 1 trilhão adicional por ano. Mantidas as condições atuais, teremos um cenário desafiador a longo prazo, marcado pelo subfinanciamento crônico do SUS e a fragmentação do sistema privado, potencialmente deixando milhões de brasileiros — especialmente os mais vulneráveis — desprotegidos.
A conta também recairá sobre o setor privado. Por isso, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e a Umane iniciaram, no último ano, uma agenda para investigar mais profundamente o setor privado. Durante essa jornada, percebemos que o conhecimento científico sobre esse setor ainda é limitado. Como sociedade, tratamos a saúde pública e a privada de maneira separada, tanto politicamente quanto na pesquisa.
Nesse esforço conjunto entre o IEPS e a Umane, pesquisadores de diversas instituições analisaram diferentes dimensões da saúde privada no Brasil, com o objetivo de responder questões cruciais para o entendimento do próprio setor e de suas interações com o SUS. A pesquisa Setor Privado e Relações Público-Privadas da Saúde no Brasil: Em Busca do Seguro Perdido reúne nove estudos que examinam questões estruturais, como as interações entre prestadores e operadoras, as recentes fusões e aquisições no setor e os subsídios fiscais recebidos. Além disso, a pesquisa aborda em profundidade os arranjos entre os setores público e privado, incluindo o uso de clínicas populares por pacientes do SUS, o mercado de trabalho para profissionais de saúde e os modelos de prestação de serviços, como os oferecidos por entidades filantrópicas, Santa Casas e Organizações Sociais de Saúde (OSS).
Com base nos resultados dessas análises e nos diálogos com diferentes atores envolvidos nos debates sobre o setor privado e o SUS, extraímos três mensagens fundamentais. A primeira é a necessidade de estruturar o financiamento da saúde de maneira sustentável. Tanto o SUS quanto o setor privado enfrentam desafios significativos para garantir acesso adequado à população. Para tanto, os mecanismos de financiamentos devem ser baseados no mutualismo.
Um segundo ponto fundamental é a necessidade de estabelecer uma governança integrada e um marco regulatório independente para viabilizar um sistema de saúde eficiente. No que diz respeito à governança, precisamos de um planejamento amplo cobrindo ambos os setores, garantindo transparência e um diálogo contínuo. A regulação eficaz e integrada é vital para assegurar que o mercado privado de saúde não opere de forma fragmentada e sem supervisão adequada, principalmente nas áreas em que há interação direta com o SUS, como a contratação de serviços, uso de infraestrutura e compartilhamento de recursos humanos.
Por último, indicamos que questões regulatórias precisam ser enfrentadas para lidar com os desafios estruturais do setor privado. Por exemplo, é fundamental garantir que operadoras de planos de saúde não possam rescindir contratos unilateralmente, deixando pacientes desprotegidos. A regulação de preços e reajustes também deve ser reformulada, para que os planos de saúde mantenham grandes carteiras de beneficiários, possibilitando o mutualismo e o subsídio cruzado entre os que necessitam de mais cuidados e os que demandam menos.
Além disso, é essencial que a regulação coíba incentivos perversos na relação entre prestadores e operadoras, causados por assimetrias de informação. A falta de transparência muitas vezes leva a uma utilização excessiva de serviços, aumentando os custos do sistema como um todo. Devemos também debater a incorporação de novas tecnologias no sistema de saúde, garantindo que sejam adotadas com base em evidências científicas sólidas de custo-efetividade.
Precisamos de um SUS fortalecido, de um setor privado eficiente e, acima de tudo, de um sistema de saúde integrado. Mais do que evitar retrocessos, é crucial expandir e fortalecer os mecanismos de seguro de saúde no país. O debate está posto: como sociedade, estamos prontos para enfrentar esses desafios e garantir um sistema de saúde que proteja todos os brasileiros, independentemente do modelo de financiamento, sem deixar ninguém para trás?
*Rudi Rocha é diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e coordenador da pesquisa Setor Privado e Relações Público-Privadas da Saúde no Brasil: Em Busca do Seguro Perdido
*Leonardo Rosa é pesquisador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e um dos autores da pesquisa Setor Privado e Relações Público-Privadas da Saúde no Brasil: Em Busca do Seguro Perdido.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.