Proposta de regulamentação da reforma tributária pode impactar planos de saúde e indústria farmacêutica
Proposta de regulamentação da reforma tributária pode impactar planos de saúde e indústria farmacêutica
Governo Federal veta na regulamentação da reforma tributária créditos a empresas que contratam planos de saúde.
O Governo Federal apresentou ao Congresso, em 24 de abril, a proposta de regulamentação da reforma tributária. Com uma alíquota referência de 26,5%, o texto busca desburocratizar a tributação no Brasil, facilitando o recolhimento para as empresas e arrecadação a União, estados e municípios. Na saúde, a expectativa era sobre como o setor seria tratado.
O Brasil pretende adotar o modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA), utilizando 3 novos tributos: Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que representa 8,8% da alíquota, Impostos sobre Bens e Serviços (IBS), que representa 17,7% e o Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre produtos nocivos à saúde e ainda não foi definido. Eles serão os substitutos que pretendem simplificar a tributação no país, no lugar de PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS.
Com uma alíquota diferenciada, com 60% de desconto, os serviços de saúde, fabricantes de dispositivos médicos e indústrias farmacêuticas deverão recolher 10,6%, seguindo critérios estabelecidos na norma. O índice é visto como adequado e, apesar de não ser a isenção defendida pelo setor ao longo do processo, é considerado neutro.
Contudo, alguns pontos da proposta trouxeram questionamentos do segmento, que deve retomar o diálogo com Legislativo e Executivo para adequar as normas e não trazer prejuízos a longo prazo. As operadoras de planos de saúde são as que mais devem ser afetadas, podendo afetar toda a cadeia da saúde.
A proposta de regulamentação da reforma tributária prevê créditos a empresas que adquirem bens ou serviços, reduzindo assim a carga tributária total. No entanto, os planos de saúde ficaram de fora dessa regra. Os contratantes que adquirem planos de saúde aos seus colaboradores podem chegar a pagar 39,9% de tributos, pagando 10,6% da alíquota da saúde à operadora, além 26,5% de IBS e CBS do valor total desembolsado.
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) apresentou um exemplo hipotético em que mostra uma empresa contratando um plano de saúde por 100 reais. Ela deverá recolher R$ 10,60 em relação à alíquota da saúde (embutido na nota fiscal da operadora) e R$ 29,31 em relação a alíquota referência, totalizando um custo total de 139,91 reais. No entanto, se uma pessoa física contrata o plano, ela paga apenas o menor valor.
“O que está em discussão no nosso caso e que nos surpreendeu foi a lógica apresentada de que a contratação de um plano de saúde por um empregador vai ser mais tributado que um plano contratado por uma pessoa. Vai desestimular a contratação de plano de saúde para os colaboradores”, afirma Marcos Novais, superintendente executivo da Abramge.
A indústria farmacêutica também possui demandas em relação à alíquota da saúde para medicamentos. O Governo Federal definiu uma lista de princípios ativos, cerca de 850 substâncias, que tiveram redução de 60% da alíquota, além da lista de 383 medicamentos que recebeu isenção, que conta com vacinas e quimioterápicos, entre outras substâncias. Contudo, o setor questiona como será atualizada essa lista, com qual frequência e como os medicamentos inovadores serão tratados quando chegarem ao mercado.
“Embora tenha uma previsão de inclusão, o fato é que isso pode demorar. Se olharmos para o que existe hoje, por exemplo, a Lista Positiva (de medicamentos que não têm cobrança de PIS/Cofins) não é atualizada há 10 anos. O que garante que efetivamente essa lista da reforma vai ser atualizada de modo a trazer uma relação fidedigna em relação a novas tecnologias e princípios ativos?”, questiona André Menon, advogado sócio do Machados Meyer Advogados, que presta consultoria sobre tributos à indústria farmacêutica.
Linhas Gerais da reforma tributária
A complexidade do sistema tributário brasileiro é considerado um grande problema no país. Com diferentes impostos e entes que recolhem, acordos locais e exceções de setores, cada empresa possui quase que um regramento próprio ao recolher impostos. Estimativas do Banco Mundial indicam que as empresas gastam cerca de 1.483 a 1.501 horas por ano com obrigações tributárias.
“A carga tributária de consumo no Brasil é a principal fonte de arrecadação dos governos. O sistema tributário brasileiro sobre o consumo no Brasil é considerado um dos mais complexos do mundo e há décadas se tenta fazer uma reforma tributária abrangente. Chegou em um momento, depois de diversas tentativas, que fatores políticos, econômicos e de competitividade permitiram que a sociedade viabilizasse no Congresso uma ampla reforma”, explica Murilo Viana, mestre em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Por isso, a expectativa é uniformizar, trazendo uma legislação nacional sem tanta complexidade às empresas. Com a definição de uma alíquota padrão, o Governo criou algumas exceções para setores que foram considerados com grande impacto dentro da reforma, dentre eles a saúde.
Apesar de o Governo Federal ter entregue o projeto de lei complementar na última semana de abril, o Congresso Nacional já tinha desenvolvido diferentes propostas ao longo do debate, com participação de diferentes segmentos da sociedade. Desde a promulgação da Emenda Constitucional (EC) que autorizou a mudança do sistema de tributação do consumo no país, o tema tem sido motivo de debates em diferentes esferas.
“Sabemos que os serviços de saúde têm tido uma inflação muito acima da média, e já pesa bastante no bolso do brasileiro, particularmente em uma sociedade que passa por um rápido processo de envelhecimento, que aumenta o custo geral dos planos de saúde. Existe dificuldade de repassar esse preço, porque há dificuldades de absorver esses custos”, explica Viana, ao indicar a diferenciação da alíquota para o setor, considerado essencial para a população.
Serviços de Saúde com 60% de redução da alíquota
Em geral, a alíquota para a saúde foi vista com bons olhos pelo setor. “Para os hospitais, estamos satisfeitos porque atendeu a proposta que apresentamos, para que houvesse uma neutralidade na reforma, que ela não aumentasse nem diminuísse a carga tributária. Isso levou à definição de uma alíquota de 60% da alíquota geral, o que mantém a carga tributária praticamente igual ao que é hoje”, afirma Antônio Britto, diretor executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).
Apesar de não trazer redução de tributos, Britto avalia que a reforma é importante para simplificar as tributações, podendo trazer ganhos em relação aos processos. A expectativa é que diminua a burocracia de forma geral, trazendo eficiência e agilidade às empresas, podendo reduzir o tempo gasto com recolhimentos.
“O único ponto que começamos a ter dúvida causa indiretamente efeito nos hospitais. Se as despesas com planos de saúde não puderem ser deduzidas pelas empresas, temos dúvidas se isso não vai ser um fator que acaba restringindo a oferta de planos de saúde, o que indiretamente impactaria os hospitais e a cadeia como um todo”, alerta Britto.
Dados do Observatório da Anahp de 2023 apontam que 83,4% das receitas dos hospitais associados são oriundas de prestação de serviços aos planos de saúde. Mais de 51 milhões de pessoas estão cobertas por convênios médicos, sendo que 70% são de planos empresariais, oferecidos pelas empresas empregadoras.
Por isso, existe um receio do setor de que a proposta da reforma tributária avance como está. Murilo Viana explica que os planos de saúde na reforma tributária têm um regime específico de tributação, com uma forma de base de cálculos própria que não gera crédito para empresa. “Se a empresa contrata o plano de saúde para seus funcionários, ela não vai conseguir utilizar o tributo pago como crédito para a empresa. Isso com certeza vai gerar discussão no Congresso”, afirma.
A questão do crédito tributário e aplicações financeiras
O crédito tributário é um mecanismo para que não haja cobrança de impostos em cascata. Atualmente, os impostos são cobrados em todas as etapas da produção. O crédito evitaria que uma tributação seja cobrada em algo que já foi recolhido. A empresa poderia “descontar” o valor quando fosse pagar os tributos remanescentes. Contudo, os planos de saúde foram excluídos da regra.
Em nota, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), afirma que “a geração de créditos, nesse caso, seria um estímulo para que companhias, de qualquer porte, oferecessem a seus trabalhadores o tão desejado benefício do plano. O veto à geração desses créditos corresponde, mais uma vez, ao estabelecimento de um obstáculo para a ampliação do acesso universal à saúde de qualidade”.
“Hoje temos tributo sobre tributo, em cascata. Pagamos vários tributos na operadora. Mas o IBS e o CBS vieram substituir PIS, Cofins e ISS. Pagamos 4,65% de PIS/Cofins e 2% de ISS, com um total de 6,65%. Está subindo a alíquota. O que acontece é que agora, quando vender para pessoa jurídica, está com tributos em cascata nela. Vai pagar 26,5% em cima dos 10,6%”, observa Marcos Novais, superintendente executivo da Abramge.
De acordo com matéria publicada no Valor Econômico, o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, minimizou a questão e definiu a discussão como “tempestade em copo d’água”, ao ser questionado durante evento da Amcham (American Chamber of Commerce), ocorrido em São Paulo no dia 26 de abril. Contudo, as entidades de operadoras de planos de saúde devem buscar diálogo no Congresso para alterar a regra.
Outro ponto criticado pelos planos de saúde é o impacto nos resultados financeiros. De acordo com Marcos Novais, a proposta de reforma tributária quer tributar aplicações financeiras com a alíquota definida para o setor. Entidades de operadoras se manifestaram contrárias à proposta.
“As operadoras estão com resultados operacionais negativos. Estamos conseguindo manter a operação pelo resultado financeiro. O Governo trouxe que irá tributar com o IVA este resultado financeiro. Recursos aplicados em banco serão tributados em 10,6%. O mundo inteiro não tributa resultados financeiros. O banco também irá pagar tributos, mas vai tirar do resultado aplicado e transferir apenas o líquido, e vamos ser tributados também”, afirma o superintendente executivo.
A FenaSaúde argumenta, em nota, que “essas reservas técnicas correspondem a uma obrigação das operadoras, perante o agente regulador, de manter em caixa ativos capazes de garantir suas atividades, mesmo em cenários imprevisíveis e adversos. Não há sentido em incluir tais reservas na base de cálculo de impostos estabelecidos para incidir sobre atividades de consumo. Trata-se aqui de recursos de natureza completamente diferente, destinados a assegurar um direito universal previsto na Constituição: o acesso à saúde”.
Lista de medicamentos
Sobre a questão dos medicamentos, André Menon, advogado sócio do Machados Meyer Advogados, alerta que a lista de princípios ativos contemplados com a alíquota da saúde pode trazer problemas para o setor no futuro. Isso porque existem dois pontos críticos a serem considerados.
“Quando olhamos para o PLP do Executivo, o critério que foi utilizado para redução da alíquota foi através da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM). Nossa primeira reação, e conversando com alguns players, foi entender o quanto isso poderia impactar negativamente ou engessar a obtenção de novas tecnologias. Quando se coloca a classificação fiscal pode dar uma sensação de facilidade acerca da correta aplicação da norma daquele produto na cesta de benefícios, mas não parece ser a realidade”, afirma Menon.
A Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) é um código definido pela Receita Federal para determinar quais tributos devem ser recolhidos pelas empresas em relação ao comércio exterior. Cada classificação engloba um ou mais princípios ativos de medicamentos. Contudo, o advogado explica que é praxe do órgão que administra os tributos federais revisar e alterar esses códigos, seja porque estavam incorretos antes, alteração sistêmica ou uma mudança por erro de interpretação.
“Isso cria uma grande distorção no setor. Se eu faço a comercialização de um medicamento com princípio ativo específico sem o NCM correto, não pode ter o benefício atrelado à classificação fiscal que a Receita. Mesmo porque, hoje em dia, temos uma quantidade muito grande de revisões aduaneiras, que a própria Receita destoa da classificação fiscal que ela deu no passado”, argumenta ele.
Também há dúvidas sobre a atualização dessa lista presente na proposta da reforma tributária e como o Governo irá tratar medicamentos inovadores, que estão chegando ao mercado, devendo recolher a alíquota padrão. Isso pode, inclusive, impactar os preços dos medicamentos, já que não serão contemplados pela alíquota reduzida.
Menon explica que participou ativamente da elaboração de propostas que surgiram no âmbito do Legislativo, e a saída foi utilizar conceitos que contemplavam categorias de medicamentos, e não os princípios ativos em si. Contudo, a proposta do Governo Federal não seguiu com essa ideia, reduzindo a cesta de produtos contemplados, mas que pode provocar tais distorções.
O advogado também alerta sobre questões relacionadas a compras públicas. Atualmente, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) define que as farmacêuticas devem ter um desconto de 21,53% ao fornecer produtos a entes e órgãos públicos. No entanto, a reforma tributária traz um regramento a mais sobre o tema.
“Se o Ministério da Saúde comprar um remédio beneficiado com uma redução de 100% da alíquota, ele não vai pagar nada de tributos. Se ele comprar um medicamento com redução de 60%, há uma previsão falando que vai ter um acréscimo, para 100%, mas não há nada falando sobre aquisições de produtos e serviços que não estejam na cesta beneficiada. Hoje, a venda para órgãos públicos têm isenção de ICMS, por exemplo. É um ponto a ser endereçado”, afirma Menon.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirma que a regulamentação da reforma tributária deverá ser aprovada ainda neste ano. O Congresso ainda deve ter ampla discussão para ter ajustes ao texto final, com o setor da saúde se movimentando para ter suas demandas contempladas.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.