Classificação de alto risco e criação de agência reguladora são entraves da saúde para regulamentação da inteligência artificial
Classificação de alto risco e criação de agência reguladora são entraves da saúde para regulamentação da inteligência artificial
O Projeto de Lei nº 2338, de 2023, que regula a inteligência artificial no país, está prestes a ser apresentado e promete intensificar o debate sobre o assunto.
A regulamentação da inteligência artificial (IA) tem dividido opiniões. A principal matéria em questão no Congresso envolve o Projeto de Lei nº 2338, de 2023, que poderá ser aprovado ainda este ano, conforme adiantou ao Futuro da Saúde o senador Eduardo Gomes, relator do PL. Mas enquanto há expectativa de que avance rápido pela necessidade de controlar a tecnologia, por outro há receio de que a tramitação acelerada impossibilite uma análise mais apurada de pontos sensíveis. Dentre as principais preocupações estão a classificação da saúde como de alto risco e a criação de uma agência reguladora específica.
Amplamente presente nos sistemas de saúde, a inteligência artificial (IA) tem se mostrado potencial aliado na leitura de dados, realização de triagens, interpretação de imagens médicas, diagnóstico de doenças e tomada de decisões de tratamento, que se revertem na melhoria da eficiência da gestão em saúde. Embora não haja uma regulamentação global uniforme para a IA, muitos países estão trabalhando para estabelecer regras gerais para os diversos setores. Em março, a União Europeia aprovou a primeira regulamentação de IA no mundo. Inclusive, o atual projeto de lei brasileiro é inspirado no “AI Act”, proposta regulatória do bloco europeu.
Isso mostra que a discussão não está restrita apenas ao Brasil. Fernando Silveira Filho, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia para Saúde (Abimed), ressalta que este é um debate global: “Não é exclusivo do Brasil. É um tema que, especialmente na área da saúde, requer maior convergência internacional”, destaca.
Ainda na semana passada, o senador Marcos Pontes defendeu a necessidade de prorrogar o debate sobre regulamentação da inteligência artificial no Senado, solicitando o adiamento por dois meses para aprofundar mais o tema.
Para Alexandre Chiavegatto Filho, doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado na Universidade Harvard, esse não é o momento de regular: “Espero que seja adiada cada vez mais. Um dia vamos precisar de regulamentação. Agora não é o momento atual. Precisamos ir acompanhando, mas é uma área que ainda está no início. Não é possível regulamentar decentemente uma ferramenta que estará em tudo. Regular agora pode deixar o país de fora da maior revolução tecnológica da história”.
Regulamentação da inteligência artificial
Como a saúde é uma área muito fragmentada e representa um universo de atuação, classificar toda ela como de alto risco é um ponto de debate. “A lei será segura se for aprovada dessa forma, mas, por outro lado, perderemos muito. Há muitos pacientes que poderiam se beneficiar de tecnologias que não são de alto risco. Na área da saúde, existem várias aplicações que não são consideradas de alto risco e que poderiam passar por um processo de desenvolvimento e regulamentação mais rápido e chegar ao mercado mais rapidamente”, avalia Felipe Kitamura, diretor médico na Bunkerhill Health e professor na Universidade Federal de São Paulo.
Para ele, é crucial continuar pesquisando para descobrir as melhores formas de utilizar a IA, buscando métodos mais seguros e com resultados mais eficazes. Neste sentido, acredita que adiar a regulamentação por alguns meses ou o tempo que for necessário pode ser benéfico, desde que “resulte em uma lei mais adequada, que considere os riscos de forma ponderada e granular, levando em conta também as situações que não são de alto risco na área da saúde”, afirma.
Uma alternativa a este cenário seria uma regulamentação com previsão de atualização e mudança, como sugere Giovanni Cerri, professor titular de Radiologia da Faculdade de Medicina da USP, Presidente do Instituto Coalizão Saúde e presidente dos Conselhos dos Institutos de Radiologia (InRad) e de Inovação (InovaHC), do Hospital das Clínicas da FMUSP: “A tecnologia evolui muito rápido e não pode ser uma lei muito rígida”.
Neste sentido, Cerri faz críticas ao atual projeto que classifica a IA como de alto risco para a saúde, afirmando que “praticamente inviabiliza o uso da IA”. No entanto, ele ressaltou o quanto a IA já é utilizada no campo da saúde, trazendo inúmeros benefícios para os pacientes e instituições: “A inteligência artificial já é uma realidade há muitos anos no Brasil, porém ainda está em fase de consolidação e não alcançou a fase de aceleração e incorporação em larga escala, mas o processo já está em andamento.”
O professor explicou que esteve com senador Eduardo Gomes em Brasília e detalhou os pontos que precisam ser aprimorados no novo projeto. A classificação da saúde como de alto risco e a criação de uma agência reguladora estavam entre eles. “Já existe uma agência reguladora na saúde, a Anvisa, que tem papel de regular produtos para a saúde”, afirmou. Inclusive, esses dois pontos são os que o senador Marcos Pontes apresentou em sua emenda.
Fernando Silveira Filho, da Abimed, acredita que do ponto de vista das experiências em Brasília, a discussão está tomando o tempo necessário para que os setores estejam envolvidos: “A velocidade é importante, mas também é essencial que haja tempo para discussão, a fim de que a lei seja efetivamente equilibrada, levando em consideração as particularidades dos setores, como no caso da saúde, que já utiliza IA”. O presidente da Abimed reforça ser fundamental que a legislação tenha o equilíbrio necessário e que os parlamentares precisam ouvir todos os setores e refletir sobre isso.
Regulamentar pode frear a inovação da tecnologia?
Outro debate entre os especialistas de diversos setores é o quanto bater na tecla da regulamentação pode ‘frear’ a inovação da tecnologia no país. “Como a lei parte da premissa de que precisamos fazer uma avaliação de risco e enquadrar as aplicações de IA para depois saber o que precisamos fazer, e como a área da saúde foi generalizada como de alto risco, eu acho que isso pode gerar vários entraves desnecessários para várias aplicações da saúde que não são de alto risco”, sinaliza Felipe Kitamura.
Em sua análise, ao elaborar uma legislação excessivamente conservadora, criam-se barreiras que afetam até mesmo as empresas brasileiras, incluindo startups, que estão desenvolvendo tecnologias nacionais. Essa abordagem pode reduzir a competitividade dessas empresas e de seus produtos, tanto no mercado interno quanto externo. “Sabemos que o Brasil possui talentos capazes de desenvolver essas tecnologias aqui mesmo”, ressalta.
Outro ponto observado por Kitamura é que, ao não ter tecnologias desenvolvidas internamente, acabamos tendo uma dependência muito grande de tecnologias de outros países: “Passamos a ter que importar tecnologias de outros países, o que gera uma dependência e é muito mais caro também”.
Giovanni Cerri também destaca que a lei não prevê o que aconteceria com os algoritmos que já estão sendo utilizados: “Na lei não está previsto nada sobre segredo industrial, como os algoritmos serão protegidos, entre uma série de inconveniências”.
IA e o cenário promissor na saúde
Embora existam divergências quanto ao momento adequado para regulamentar a IA, todos os especialistas entrevistados pela reportagem concordam sobre os benefícios da tecnologia para a saúde. “A IA na saúde impacta mais na visão da eficiência administrativa, diagnóstico, resumo de prontuário clínico. Houve essa compreensão de que a IA já é uma realidade na saúde e que colabora com a eficiência e segurança do paciente”, defende Giovanni Cerri. Ainda em sua visão, é preciso acelerar a produção de tecnologia na saúde justamente para poder melhorar a eficiência e reduzir o custo.
“Se conseguirmos melhorar a eficiência, teremos mais tempo disponível para os profissionais atenderem os pacientes e mais recursos financeiros para alcançar mais pessoas dentro do sistema”, completa Alexandre Chiavegatto Filho.
Para o presidente da Abimed, a IA pode representar um salto importante em termos de aprimoramento, desfechos e questões socioeconômicas, bem como para a eficiência e sustentabilidade do sistema: “Levando em consideração as dimensões que o país tem e suas diversidades, é fundamental que a IA esteja regulamentada com a segurança necessária. Isso é de justa legitimidade para o usuário, para que se sinta seguro ao usar a IA, especialmente em situações de medicina remota”.
Já Kitamura destacou o potencial dessas tecnologias para melhorar o acesso e o cuidado dos pacientes no país e em diversas áreas da medicina: “Quanto mais demoramos para desenvolver essas tecnologias, mais tempo leva para que elas cheguem ao mercado e beneficiem os pacientes. Isso é algo que muitas vezes não percebemos”, refletiu.
No Brasil, o Projeto de Lei 2.338/2023 foi apresentado em maio do ano passado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que preside a Casa. O PL substitui os Projetos de Lei 5.051/2019, 21/2020 e 872/2021. A previsão é de que seja aprovado ainda este ano. “Estou otimista de que talvez não saia a lei regulatória ideal, mas vai surgir algo muito melhor do que o projeto de lei inicialmente apresentado no Senado”, sinaliza Giovanni Cerri.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.