Setores defendem regulação de cartões de desconto, mas pedem transparência e integração
Setores defendem regulação de cartões de desconto, mas pedem transparência e integração
Executivos de plano de saúde e cartões de desconto se reuniram para debater regulação do segmento durante o Rio Health Forum
A possibilidade de a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) regular e fiscalizar os cartões de descontos, por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em processo em tramitação, tem levantado debates no setor. O tema foi discutido em um dos painéis do Rio Health Forum, na última quinta-feira, 7, evento que reuniu representantes e executivos de diferentes segmentos da saúde para dialogar.
Paralelamente à decisão do STJ, a Agência trabalha para revisar os planos ambulatoriais, com a possibilidade de deixar o produto apenas com consultas e exames, como forma de concorrer com os cartões de desconto. A ideia é oferecer uma alternativa com preço mais barato, já que traz mais previsibilidade de custos às operadoras. A tomada de subsídios, encerrada no dia 4 de novembro, foi o primeiro passo para propor uma revisão sobre o tema.
Sendo um setor sem regulação vigente, os cartões de descontos entraram na mira dos planos de saúde por darem acesso a uma população no vácuo entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a saúde suplementar. Oferecendo consultas e exames a mensalidades baixas, empresas contam com mais de 40 milhões de usuários associados a esse serviço, de acordo com estimativas.
Com a saúde suplementar em crescimento lento e dependendo do avanço econômico do país para conquistar novos usuários, disputar o público de cartões de descontos é considerado um caminho para aumentar a receita sem elevar o risco. Por isso, a revisão dos planos ambulatoriais também é interessante para o setor.
Mas para que ambas as propostas sejam viáveis, além da regulação, especialistas apontam que é preciso transparência e clareza para comunicar à sociedade sobre os produtos, e avanço na integração de dados e na interoperabilidade do sistema, inclusive com a saúde pública. Dessa forma, seria possível reduzir os gaps apontados como pontos em aberto dessas regulações.
“Essas duas soluções devem ser adotadas mais cedo ou mais tarde, se for no interesse de aumentar o mercado de planos e torná-lo acessível para aqueles que, mesmo querendo, não podem pagar pelos planos de referência. Caso contrário, se não tivermos nenhuma solução que vá nessa linha, com o rumo que vai o Brasil, a tendência do mercado de saúde suplementar é minguar”, afirmou André Medici, consultor em economia da saúde que atuou por 24 anos no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e no Banco Mundial.
Visão dos cartões de desconto sobre a regulação
“Não somos contra a regulação, mas somos a favor de um perfeito entendimento. Existem empresas que também têm uma forma de entregar saúde através de cartão, mas que são prestadores. Temos uma estrutura de clínicas que presta serviço de forma particular, out of pocket ou através do cartão. Em alguns casos, algumas empresas também são credenciadas por operadoras, prestando serviços onde o acesso é restrito”, aponta Massanori Shibata Jr., CEO do dr.consulta.
Sendo uma das maiores clínicas populares, a empresa conta com 29 centros médicos próprios e já atendeu mais de 3 milhões de pessoas. Ela integra a Associação Nacional das Empresas de Benefícios Primário e Secundário (Anebaps), que representa 5 instituições de cartões de desconto. Juntas, contam com 1 milhão de assinantes.
Massanori explica que é possível observar diferentes perfis de usuários que utilizam as clínicas populares. No caso do dr.consulta, as classes B e C são as principais. Mesmo pessoas que possuem planos de saúde utilizam serviços como os oferecidos por cartões de desconto, buscando agilidade no agendamento e proximidade.
Parte das críticas sobre os cartões de descontos está em eles oferecerem apenas os serviços mais econômicos e não resolveram o problema do paciente integralmente. Por isso, cobra-se que haja uma maior integração com o SUS e a saúde suplementar. Esse é um dos temas que a regulação deve se atentar.
“A integração deve ser feita, não há dúvidas. É algo que já está na mesa e inclusive conversamos com o próprio Ministério da Saúde sobre isso. O Ministério tem hoje a visão de trazer essa integralidade dos dados. O que falta é a energia, a vontade do setor privado junto com o público de sentar e fazer isso em pouco tempo, porque tem de acontecer”, critica o CEO.
Ele acredita em uma regulação que tenha diálogo e não prejudique os pacientes nem as empresas do setor. Em um cenário de reorganização, com a ANS discutindo os planos ambulatoriais, o executivo defende que é preciso realizar uma educação da população sobre as mudanças e os diferentes produtos no mercado.
Operadora, cartões e planos ambulatoriais
Com mais 16 milhões de beneficiários em planos de saúde e odontológicos, a Hapvida NotreDame Intermédica tem apoiado o processo de regulação dos cartões de descontos. Luiz Celso Dias Lopes, vice-presidente técnico e regulatório do grupo, afirma que a regulação é importante para trazer informações sobre esse setor.
“Inclusive para entendermos qual o tamanho. Vai trazer dados, indicadores e depurar um pouco o próprio mercado. Quem de fato é sério, quer trazer uma oferta e entregar com qualidade e seriedade, vai ficar na regulação. Quem não quer, o aventureiro, o que vende gato por lebre, esse sai”, observa, em entrevista ao Futuro da Saúde.
Para Lopes, a ANS é o melhor lugar para fazer essa regulação, dado que o órgão já atua com parte da saúde privada. No entanto, reforça que é preciso diferenciar os produtos, deixando claro diferenças e conceitos que estabelecem o que é um plano de saúde completo, ambulatorial ou um cartão de desconto. “Essa regulação precisa respeitar as peculiaridades do cartão, não queiramos que uma empresa que oferece cartões de descontos seja uma operadora como é hoje, que oferece planos e riscos de média e alta complexidade. Não precisa ser, mas a regulação vai trazer informação”, afirma o vice-presidente técnico e regulatório.
No entanto, Luiz defende que os planos ambulatoriais não mudem, mantendo o atendimento oncológico e emergencial. A ideia do grupo é criar um novo segmento, somente com consultas e exames, para oferecer ao mercado. O executivo aponta que ele não seria um cartão de desconto, mantendo diferenças, conforme defendido na tomada pública de subsídios da ANS.
“O plano ambulatorial é o que está, e temos que ampliar para um plano de consultas e exames delimitados. Não para anular os cartões de descontos, até para diferenciar o que é um cartão de desconto, que deve ter uma regulação específica para isso”, comenta Lopes, mencionando que a empresa tem contribuído com sugestões e informações para ampliar o debate sobre o tema. Para ele, essa discussão “não pode ser muito apressada. Quando fazemos a coisa apressada, acabamos não olhando todos os desafios e os impactos”.
Além de mirar o público que não possui plano de saúde ou que possuam cartões de desconto, a Hapvida aposta nesse segmento de planos de consultas e exames para conquistar outras fatias do mercado. A ideia é ir além de planos individuais, vendidos direto ao consumidor, oferecendo planos empresariais.
“Muitas empresas no Brasil contratam um plano de saúde, mas não o financiam para os funcionários. Cada um tem que pagar do seu bolso ou algumas empresas contratam e pagam só um percentual. Tendo essa opção agora, de ter mais uma segmentação, entendemos que mesmo empresas que já oferecem o plano de saúde vão ampliar a adesão das pessoas”, afirma Luiz.
Cenário mundial e importância da regulação de cartões de desconto
Um olhar para o modo de funcionamento de cartões de desconto no exterior pode dar pistas sobre esse debate no país. Nos Estados Unidos, por exemplo, esses cartões estão sujeitos a leis de proteção do consumidor, embora não existam normas específicas a eles nos mecanismos de regulação de seguros, conforme informações do consultor de economia da saúde André Medici. “Existem, basicamente, temas de transparência e de práticas comerciais justas. Deve ficar explícito, nesse caso, que os cartões não garantem cobertura de saúde. É um cartão de saúde pontual. Assim, eles não podem ser comercializados de forma enganosa como substitutos de seguros de saúde”, explica.
Como os planos de seguros de saúde públicos e privados têm uma ampla cobertura, não existem dados compilados sobre o número de americanos que possuem cartões de descontos. Segundo o especialista, norte-americanos e outras pessoas que vivem nos Estados Unidos contratam o produto para reduzir os custos com coberturas dos planos.
Já na América Latina, em geral, os cartões de descontos são utilizados por populações de baixa renda que não possuem plano de saúde, seja por estarem fora do mercado de trabalho formal ou com orçamento familiar reduzido. Nesses países, casais jovens são os principais públicos, explica Medici, assim como ocorre nos Estados Unidos.
“Isso tem criado, cada vez mais, um processo de flexibilização do mercado dos seguros. Porque, efetivamente, a questão de one size fits all não funciona no mercado do seguro. As famílias têm necessidades diferentes, com posições diferentes. Portanto, não pode ter um mercado muito engessado, em termos de questão de seguro. É necessário educar os consumidores sobre as opções disponíveis e as que mais seriam adaptadas às suas necessidades”, afirma o economista.
Medici indica que a regulação dos cartões de descontos deve focar em transparência e proteção ao consumidor, com base nas experiências internacionais. A ideia é informar, de forma clara, as características do produto para que não haja confusão na hora da adesão sobre a entrega de serviços.
Para evitar falhas entre a transição da população entre os sistemas, ele reforça que é preciso interoperabilidade de dados com o sistema público, entendendo que a continuidade dos serviços serão prestados pelo SUS na maioria dos casos. Com consultas e exames, pacientes podem ter diagnósticos de doenças, mas não realizarão procedimentos e tratamentos em casos mais complexos.
“Tem de investir muito em tecnologia, mas tem de investir muito em mindset também. As pessoas e empresas precisam mudar a forma de pensar a questão da saúde e colocar transparência, especificamente, nesse tipo de informação”, finaliza.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.