Reclamações relacionadas ao autismo contra planos de saúde disparam e operadoras cobram definição de protocolos e linhas de cuidado

Reclamações relacionadas ao autismo contra planos de saúde disparam e operadoras cobram definição de protocolos e linhas de cuidado

Tratamento para autismo está previsto em lei e regulado pela ANS, mas beneficiários apontam desafios, como falta de clínicas credenciadas.

By Published On: 30/08/2023

Os diagnósticos de pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) aumentam em todo mundo, com cerca de 70 milhões de pacientes estimados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil não é diferente: apesar de o país carecer de dados oficiais, estima-se que cerca de 5 a 6 milhões de pessoas apresentem a condição. Esse cenário tem movimentado o setor de saúde, principalmente o segmento de planos de saúde, que desde o ano passado passaram a ter que cobrir as terapias dos transtornos globais do desenvolvimento, entre os quais está incluído TEA. De um lado, há uma demanda maior por serviços ligados à condição, o que tem trazido mais pressão à sustentabilidade dos planos. De outro, as próprias operadoras buscam caminhos para aprimorar o serviço e tentar controlar melhor a demanda e a qualidade.  

Mas fato é que ainda há um longo caminho a ser percorrido. Com as mudanças recentes nas regras de cobertura do tratamento pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), um dos indicadores que demonstram a dificuldade nessa jornada é o número de reclamações aos planos de saúde, que disparou: foi um salto de 625% entre 2019 e 2023, segundo dados obtidos por Futuro da Saúde junto à agência.

O levantamento da ANS enviado ao Futuro indica 6.996 notificações de intermediação preliminar (NIP) referentes a autismo recebidas pelo órgão entre janeiro e julho deste ano, número 7 vezes maior do que os 965 registrados em 2019 e 18% acima do ano todo de 2022. O top 3 das reclamações são atrasos nos prazos para autorizar atendimentos, reembolso e rede de atendimento conveniada, respectivamente.

Reclamações junto à ANS relacionadas ao autismo.
Fonte: ANS (SIF Consulta – Extração: agosto/2023). Elaboração: Futuro da Saúde.

E é uma tendência que deve continuar ao se considerar o ritmo de pessoas diagnosticadas. Dados mais recentes do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos revelam que 1 a cada 36 crianças americanas com menos de 8 anos têm autismo. Em 2000, falava-se de cerca de 1 em 150 crianças americanas diagnosticadas. Em 2016, a prevalência foi para 1 em 54 crianças. E em 2018, 1 em 44. Estima-se que o Brasil siga índices semelhantes a esses.

Não há uma razão específica para esse aumento. O amplo acesso à informação pode ser uma das razões por trás do crescimento, ao mesmo tempo que o maior conhecimento e capacitação de médicos e profissionais de saúde ajudem a levar ao diagnóstico. Neste contexto – e com o número em alta –, é natural que apareçam gargalos como a quantidade e a qualidade dos serviços prestados e a celeridade no atendimento dos planos de saúde para autorizar os atendimentos.

O aumento das reclamações contra os planos de saúde

Para o advogado Bruno Henrique, membro da Comissão Nacional do Direito da Pessoa com Autismo no Rio Grande do Norte, “o aumento das reclamações se deve, principalmente, pelo número crescente de diagnósticos, a falta de profissionais qualificados no mercado e os valores rasos pagos pelas operadoras de planos de saúde à rede credenciada, desestimulando a permanência.”

Henrique lembra que o tratamento para pessoas diagnosticadas com TEA sempre foi motivo de fervorosos debates, uma vez que anteriormente existiam restrições aos números de sessões de caráter obrigatório de autorização por parte dos planos para as principais terapias dos autistas – que incluem fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional.

Essa realidade mudou com a Resolução Normativa nº 539 da ANS, publicada em julho de 2022. A norma ampliou as regras para o tratamento de transtornos globais do desenvolvimento, o que inclui autismo. Assim, o método terapêutico cientificamente reconhecido deve ser coberto pela operadora de saúde quando prescrito pelo profissional de confiança do paciente. Inclusive, médicos mesmo não credenciados pela rede podem prescrever o tratamento. Assim, qualquer intervenção – definida pelo médico – passa a ter cobertura obrigatória pelos planos de saúde.

Entretanto, na prática, os dados da ANS sobre as reclamações indicam que essa nova realidade veio acompanhada de desafios, como explica Cassio Ide Alves, superintendente médico da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). Ele contextualiza que, para o tratamento de crianças que têm TEA, são recomendadas as terapias comportamentais. Inclusive, segundo ele, a Associação para a Ciência do Tratamento do Autismo dos Estados Unidos (ASAT) destaca que a terapia ABA (Análise do Comportamento Aplicada) é o único tratamento que possui evidência científica suficiente para ser considerado eficaz.

Essas intervenções surgiram nos Estados Unidos há 30 anos e, conforme Alves, houve uma hierarquização de tratamento porque eram profissionais gabaritados e com expertise. Um cenário diferente do Brasil: “Houve a incorporação pela Resolução Normativa nº 539 e nós não temos o número adequado de profissionais com expertise do assunto. Isso nos preocupa muito mais do que a própria sustentabilidade”, afirma o superintendente médico da Abramge.

Em nota, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) destacou que a resolução da ANS “trouxe impacto expressivo para o setor e veio em momento especialmente delicado. A falta de limites para tratamentos e terapias afeta o equilíbrio financeiro das operadoras, que já tiveram no ano passado prejuízo operacional de R$ 10,7 bilhões e de R$ 1,7 bilhão no 1° trimestre deste ano”.

Ainda segundo a entidade, conforme as informações do mapa assistencial da ANS, em 2022, ano em que o órgão regulador extinguiu os limites para vários tipos de terapias, foram observados aumentos significativos na realização de vários procedimentos desta natureza, como terapia fonoaudiológica (aumento de 26%), terapia ocupacional (aumento de 42,5%) e atendimento psicológico (aumento de 25%) em relação a 2021.

Mais desafios na cobertura do autismo

Outro ponto que também traz alertas são os profissionais que fazem apenas um curso de seis horas disponível em uma procura no Google, como aponta Alves, da Abramge: “Fico muito preocupado com as condições das crianças. Se você faz um diagnóstico equivocado, você vai ficar tratando uma criança durante anos. Além de não conseguir o resultado, pode atrasar o diagnóstico correto para algum transtorno que tenha outro tipo de tratamento.”

Um dos caminhos, segundo ele, seria um detalhamento maior do tratamento: “A ANS teria que ter revisto isso, criado protocolos e linhas de cuidado. Estamos falando de crianças. Não é simplesmente por querer dar acesso a qualquer jeito. Não brigamos devido ao acesso, pois ele tem que ser dado, é uma conquista social. Brigamos pela racionalização e qualificação desse acesso. Isso tem que ser revisto urgentemente.”

Alves afirma que entidades estão em conversa com a ANS para propor uma diretriz de utilização que remeta a um protocolo de cuidado.

Em nota, a ANS afirmou que “tem acompanhado de perto as oscilações das reclamações, e sabe que o consumidor está mais consciente dos seus direitos e que deve contar com a Agência para quaisquer situações que impeçam ou dificultem a garantia dos serviços contratados. A mediação de conflitos feita pela ANS por meio da NIP tem resolvido mais de 90% das reclamações registradas nos canais de atendimento ao consumidor. Ou seja, a cada 10 reclamações, 9 são no âmbito da mediação promovida pela ANS”.

Os entraves para a assistência a pessoas com autismo

Um dos pontos de reclamação dos usuários para acesso ao tratamento é o número baixo de clínicas credenciadas, que ficam rapidamente superlotadas ou com carga horária semanal limitada. Se faltam clínicas ou as existentes trazem preocupação às operadoras quanto à qualidade, algumas empresas passaram a enxergar aí uma oportunidade para ampliação dos negócios. A Unimed Nacional inaugurou em 2023 a clínica Cuidar Mais Terapia, no bairro Tatuapé, em São Paulo. Luiz Paulo Tostes Coimbra, presidente da Unimed Nacional, afirma que a unidade foi planejada para ser referência no país no atendimento do transtorno do espectro autista:

“O mais importante é que oferecemos uma abordagem multidisciplinar, com foco no atendimento humanizado, baseado na metodologia científica ABA, que tem alcançado altos índices de efetividade na abordagem do transtorno de espectro autista. Tudo feito para impulsionar o desenvolvimento dos nossos pacientes”, afirma o presidente da Unimed Nacional.

No espaço, são mais de 20 profissionais de diversas áreas, como fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos, entre outros. A clínica também possui salas de terapia ocupacional, sala de conforto para a família, brinquedoteca e sala equipada com recursos de última geração para integração sensorial, psicomotricista. São Paulo foi a primeira clínica, mas outras devem ser inauguradas em Brasília e em Salvador ainda no segundo semestre. “Pretendemos expandir para podermos oferecer o atendimento próprio nos estados onde a Unimed Nacional atua”, explica.

Outro exemplo é do Instituto TEA: são sete unidades, entre São Paulo e Santa Catarina, com mais de 800 profissionais nas áreas de psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicopedagogia, fisioterapia, psicomotricidade, musicoterapia, integração sensorial, com adoção da ciência ABA.

Oscar de Camargo Neme, sócio-gerente e fundador do TEA Institute, pontua que, desde quando criou a clínica há mais de 10 anos, houve uma evolução principalmente relacionada ao diagnóstico: “Lá em 2012, muitos pacientes não vinham com o diagnóstico fechado. Chegavam pacientes com 8, 9 anos. Hoje é muito mais rápido e, consequentemente, o paciente já inicia o tratamento”, expõe.

Isso leva justamente ao desafio do acesso das famílias. “É um tratamento intensivo, especializado e muito pacientes têm dificuldades em fazê-lo em uma clínica qualificada, além da liberação perante convênio”, comenta. “É um trabalho interdisciplinar que, dentro da ciência, todos os profissionais precisam falar o mesmo”.

Exemplos na saúde pública

Se os gargalos existem na rede suplementar, não é diferente na rede pública. Os especialistas ouvidos pela reportagem alertam que o problema pode estar mais concentrado ainda em regiões menores, cidades pequenas, que não possuem centros especializados. Quem depende da rede pública de saúde precisa ter paciência para conseguir uma consulta com especialista. E mesmo quando o diagnóstico vem, a assistência necessária pode ficar de lado. Não há dados no Brasil de quantos espaços existem, mas muitos se concentram nas capitais.

Um desses espaços foi inaugurado recentemente em Porto Alegre (RS). O Centro de Referência do Transtorno Autista (Certa) presta serviço via Sistema Único de Saúde (SUS) na capital gaúcha e tem capacidade para receber 300 crianças de até 12 anos. Para utilizar o espaço, o paciente deverá ser encaminhado pelas Equipes Especializadas em Saúde da Criança e do Adolescente do SUS de Porto Alegre. A equipe multidisciplinar é composta por neuropediatras, psiquiatras, psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, fisioterapeutas e atendimento pedagógico especializado.

Esses atendimentos são amparados pela Lei 13.438/17, que diz que médicos da UBS, médicos pediatras e médicos especializados podem fazer o diagnóstico de autismo, para assim possibilitar um tratamento precoce. Atualmente também tramita no Senado o Projeto de Lei 3630/21 que torna obrigatória a criação de centros de assistência integral ao paciente com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Sistema Único de Saúde (SUS).

Angélica Weise

Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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One Comment

  1. Magnus Rossi 31/08/2023 at 22:54 - Reply

    Lamentavelmente, as operadoras de saúde ignoram as necessidades da criança no espectro autista. Tal negligência compromete o bem-estar e saúde do neurodiverso

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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