Possibilidade da CPI dos planos de saúde escancara dificuldades do setor
Possibilidade da CPI dos planos de saúde escancara dificuldades do setor
Reação da sociedade à rescisão unilateral de planos de saúde coletivos pressiona ANS. Deputado busca abrir CPI para investigar o tema.
A possibilidade de a Câmara dos Deputados abrir uma CPI dos planos de saúde, encabeçada pelo deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), é um novo capítulo na história do setor. Denúncias de beneficiários sobre rescisões unilaterais em planos coletivos, com atuação de famílias de pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e pessoas idosas, trouxeram à tona mais uma crise para as operadoras.
Em meio a tentativa de melhorar o cenário financeiro, operadoras têm buscado diferentes alternativas que possam reduzir custos. Entram nessa pauta ações como os reajustes, combate às fraudes, encerramento de contratos considerados deficitários e descredenciamento de prestadores. Instituições também alegam que há atraso e solicitação de descontos no pagamento de hospitais, além de um debate sobre a incorporação de terapias avançadas.
E o caso das rescisões unilaterais, mesmo estando dentro das regras da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em parte dos casos, tem provocado reações da sociedade, que cobram da agência reguladora uma investigação e intervenção no tema.
“Teve movimentos importantes entre 2021 e 2022, principalmente ligados à liberação de terapias, que acabaram impactando nessa manutenção dos contratos que foram precificados anteriormente. Existe uma nova carga de despesas e coberturas, além de 65 tecnologias incorporadas desde 2022, um volume importante. Precisaria ter uma forma de atualizar essa precificação, e isso se faz com reajustes – e as operadoras estão com dificuldades de repassar reajustes altos. Na impossibilidade, o que sobra é a rescisão desses contratos”, aponta Rogério Scarabel, sócio do M3BS Advogados e ex-diretor da ANS.
Na relação com os hospitais, o cenário também se agrava. Dados da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) mostram que reajustes foram menores que os contratualizados, mais de 6 bilhões de reais permaneceram sem pagamento ao longo de 2023, operadoras solicitam 159 milhões de reis em descontos para que pudessem efetuar o pagamento e cerca de 60% dos hospitais associados tiveram descredenciamento por parte dos planos.
“Esses números mostram que há dentro do setor da saúde suplementar um desajuste que precisa ser enfrentado. Ele está ocorrendo em toda a cadeia, começa nos que pagam as contas – que são as empresas e contratantes de planos –, passa pelas operadoras, atinge os hospitais e os fornecedores. Evidenciam que existe uma dificuldade e que ela nasce do fato de que o país não está conseguindo pagar a conta da saúde suplementar da forma como ela é organizada hoje”, afirma Antônio Britto, diretor-executivo da Anahp.
O segmento fechou 2023 com um prejuízo operacional de 5,9 bilhões de reais, mostrando que, apesar da melhora em relação ao ano anterior, ainda há muito a avançar em relação a custos, e as ações desenvolvidas podem não trazer o mesmo resultado em 2024.
Rescisão unilateral
Beneficiários da Unimed e da Amil que estavam em contratos coletivos por adesão, através da Qualicorp, denunciaram entre abril e maio de 2023, que as operadoras vêm encerrando seus vínculos, sendo que pessoas idosas, pacientes com TEA e com doenças raras estão entre os principais grupos que mostraram insatisfação com a situação.
Apesar de estar dentro das normas da ANS, o imbróglio tem provocado comoção em diferentes setores, chegando até o Congresso Nacional, que busca conseguir assinaturas para abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). O tema surgiu em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados em 15 de maio, onde o deputado federal Aureo Ribeiro afirmou que iria compilar os vistos dos parlamentares para conseguir a abertura do processo.
Parte da responsabilidade recai sobre a agência. Dados apresentados pela ANS na audiência pública mostram que não houve um aumento dos cancelamentos em relação à adesão entre março de 2023 e março de 2024. Já as reclamações através das NIPs, em relação ao cancelamento unilateral de planos coletivos e empresariais, saltaram de cerca de 6 mil em 2022 para mais de 8 mil em 2023. A Agência aponta que a taxa de resolutividade gira em torno de 92,5% e 92,7%.
“Essas reclamações servem de insumos para justamente possibilitar, inclusive, a suspensão da comercialização desse produto em razão de níveis de reclamação que ultrapassem uma média colocada pela Agência, para entender como a ANS empodera o consumidor diante dessas reclamações que chegam”, afirmou Paulo Rebello, diretor presidente da ANS, durante a sessão na Câmara dos Deputados.
Robson Campos, representante do Procon-SP, apontou durante a audiência que houve um aumento de cerca 85% nas reclamações sobre rescisões unilaterais entre abril e maio de 2024. A entidade cobrou alterações nas leis dos planos coletivos para proteger os beneficiários.
“Um dos pilares dos planos de saúde é o contrato. Como muito se discutiu, o advento da lei 14454/2022 (lei do rol exemplificativo) trouxe um afastamento do que estava em contrato, ou seja, o rol de procedimentos sempre foi o mínimo e o teto quem define é o contrato. Então, quando você diz que além do rol pode qualquer coisa’, há esse afastamento. Vai gerando e vai criando essas expectativas”, analisa Rogério Scarabel.
Apesar da via judicial ter sido o caminho que sobra para os beneficiários que tiveram seu contrato rescindido pela operadora, a advogada Estela Tolezani, especialista em direito à saúde e sócia do escritório Vilhena Silva Advogados, explica que existem critérios que devem ser seguidos e já estão estabelecidos pelo Judiciário.
“Não pode inovar, senão vira uma aventura jurídica. Falo para os clientes que hoje temos duas opções. Se está em tratamento, vamos entrar com uma liminar, se não está, faça uma portabilidade. Se você for para outro plano e ele cancelar, temos que entender como será o entendimento do Judiciário no período, porque ele muda”, afirma Tolezani.
Cesar Cardim Junior, superintendente de Regulação da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) apresentou, durante a audiência pública, os critérios para a rescisão de contratos e a forma que os contratos são constituídos, mas observou a possibilidade de revisitar as regras estabelecidas da ANS. “Sabemos que a lei 9.656 [que rege os planos de saúde] pode não ser uma lei, obviamente, perfeita, como muitas vezes não é. Temos uma lei de 1998 que precise talvez ser observada e analisada, à luz desse tempo, desses 26 anos da publicação. Precisa ser adaptada e ajustada”, afirmou.
Durante a audiência pública, Marcos Novais, superintendente executivo da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), defendeu que a portabilidade pode ser a saída utilizada por esses beneficiários que tiveram a rescisão do contrato, como forma de não ficar desassistido.
“No momento que estamos, com essa crise já instaurada, a medida mais eficaz para esses beneficiários é saírem de um contrato que já não tem sustentação financeira e irem para outro que está sustentável, ainda tem equilíbrio e está com comercialização aberta. Com entradas e que está equilibrado. E todos podem ir com portabilidade de carência e as coberturas são as mesmas”, argumentou ele.
Papel da ANS e CPI dos planos de saúde
No caso da portabilidade, a advogada explica que ela é regulamentada pela ANS, mas na prática há uma dificuldade dos beneficiários que tiveram seu contrato rescindido, em especial aqueles que possuem contrato coletivo por adesão junto à Qualicorp, para conseguir acesso a outra operadora.
“Os planos de saúde não querem idosos e pessoas com diagnósticos de doenças para não ter gastos. Precisa judicializar nessas duas hipóteses. Os clientes da Qualicorp estão recebendo de retorno que o CPF não possui opções de planos de saúde para fins de portabilidade. Mas no site deles, se simulamos uma nova contratação, aparecem opções”, afirma a especialista em direito à saúde.
Por isso, ela defende que haja alterações no regramento dos contratos. Tolezani argumenta que o contrato deve permanecer com a possibilidade de rescisão unilateral, mas que poderia ter um prazo superior a 60 dias para o beneficiário realizar a portabilidade, além de garantir que não haja discriminação por idade ou doença. Ainda, argumenta que é preciso que o aviso de rescisão não seja feito apenas por e-mail.
No entanto, questiona qual tem sido o papel da Agência até o momento para mediar a situação ou alterar o regramento. “A ANS falha em 2 pontos de modo muito sério. Ela não regulamenta a questão da rescisão e os reajustes de planos coletivos. No ano passado vimos reajustes superiores a 35%, isso nunca tinha acontecido. Ela está completamente omissa e deveria regulamentar”, defende a advogada.
A possibilidade da abertura da CPI pode trazer mais pressão para a ANS realizar uma análise e possíveis mudanças. Para Scarabel, nesse momento o papel da ANS é de “receber essas reclamações e denúncias para entender se isso é um problema que exige intervenção”.
Em nota publicada no site oficial, a ANS esclarece as regras sobre cancelamento e rescisões de contratos, mas não fala em avaliar possíveis mudanças frente ao cenário. Por outro lado, afirma que um processo movido pelo Procon-RJ mudou as normas vigentes, que estabelecem prazo mínimo de 12 meses para o encerramento do contrato. “Tal medida, que pretendia dar ao consumidor o direito de rescindir o contrato a qualquer tempo, acabou por dar às operadoras o mesmo direito, pondo fim a uma situação de segurança para o beneficiário”, afirma a nota.
Agora, na mira do Congresso, os planos de saúde podem ter que encarar uma CPI para explicar as questões que envolvem o cancelamento. “Muitas vezes, um debate político pode acabar desprotegendo em alguma medida um dos atores que compõem a saúde suplementar. Se for um debate político e técnico para encontrar saídas, não vejo problema, mas não é sempre que isso acontece pois é uma demanda da sociedade, e olhar sobre apenas uma perspectiva talvez não seja o melhor”, avalia Scarabel.
Todo mundo no mesmo barco?
Em meio a um cenário com complicações financeiras e desgaste com a sociedade, os planos de saúde e a população não são os únicos insatisfeitos. Hospitais buscam, junto a operadoras, uma resolução para diversas situações que vêm se agravando nos últimos anos e afetando a receita das instituições.
“O setor de saúde é ruim de conversa, tem enormes dificuldades de atuar como setor. Nesse momento, é um esforço inútil de cada um tentar salvar o seu segmento. Por isso que não saímos dos 51 milhões de beneficiários, todo mundo está reclamando e a judicialização aumenta enormemente. O sistema está dando demonstrações de que existe um problema do setor como um todo, mas a saúde, suas pessoas e entidades, têm enorme dificuldade para reconhecer isso”, aponta Antônio Britto, diretor-executivo da Anahp.
Pesquisa realizada pela entidade com seus hospitais associados e utilizando dados do Sistema de Indicadores Hospitalares apontam que apesar de ter aplicado uma média de 14,38% de reajuste aos planos coletivos, as operadoras não cumpriram os reajustes firmados com os hospitais em contrato. A média deveria ser de 4,06%, mas o aplicado foi de 3,22% em 2023.
Também há uma dificuldade em receber os pagamentos, que de acordo com a Anahp está sendo acima dos 120 dias. De acordo com Britto, isso tem afetado o fluxo de caixa dos hospitais, que precisam cumprir com o pagamento mensal de suas contas, como a folha salarial de funcionários.
“Depois de um longo processo, quando a conta fica finalmente pronta para ser paga, as operadoras estão exigindo descontos para efetuar o pagamento, o que é mais um fator de pressão. Só entre os nossos hospitais associados, houve mais de 159 milhões de reais em descontos ao longo de 2023”, afirma o executivo.
Cerca de 60% dos associados apontam que tiveram, em 2024, um descredenciamento parcial dos serviços por parte das operadoras. Britto defende que os planos de saúde podem escolher seus prestadores seguindo os critérios técnicos, mas vem observando uma mudança por serviços que cobram menos e entregam menos qualidade.
“Não acreditamos que haja solução para esse problema só beneficiando um setor. Tem que haver ajustes no sistema como um todo. Acontece que o setor da saúde sofre com o curto prazo, todos estão olhando para o resultado do mês que vem ou do próximo semestre. As coisas que têm que ser feitas vão exigir um trabalho de médio e longo prazo, e portanto, não estão sendo priorizadas”, avalia.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.
Me chamo Moisés Veloso, sou advogado, Pós Graduando em Geatao de Saúde Suplemntar pelo instituto Einstein de Pesquisa em Saúde de São Paulo. A meu ver, em análise de tudo que foi dito na audiência pública do 15/05/2024, não temos uma receita de bolo, simples de resolver. Não acho que a sugestão do portabilidade dada pelo Executivo da Abramge, seja uma solução. Pois o beneficiário de um plano desequilibrado faz a portabilidade para outro equilibrado, em um ano, se são esses beneficiários que estão realmente trazendo o desequilíbrio financeiro, o plano equilibrado estará também, em desequilíbrio. Isso fará com que todo o setor fique, ainda mais, prejudicado e sem fechar a conta. A solução deve ser em conjunto, discutir com todos no setor de saúde, e viabilizar uma flexibilização. E principalmente, engajar médicos, educar os beneficiários com relação a uso e trazer programas de benefícios com a rede farmacêutica e tecnológica, proporcionar programas de saúde preventiva em escala nacional, trazer orientações de cuidados aos usuários para que, a longo prazo, reduzam a utilização dos planos com doenças que possam ser tratadas precocemente e com menor custo. Assim, todos saem ganhando com uma entrega de qualidade ao beneficiário, redução de custos do setor e possibilidades de novos investimentos em tecnologias que irão fazer a diferença na saúde do Brasil.
INFELIZMENTE, Não há uma bala de prata que resolva todos os problemas, que são muitos.
Penso que entidades do setores da saúde suplementar e da sociedade precisam definir 2 (no máximo 3) prioridades e focar nelas.
Resolvidas (ou melhoradas) partem para as outras.
Fato é que o modelo atual de operação com uma rede aberta, onde o usuário faz o que quer e quando quer (e pior, sem um cuidado efetivo e coordenado) vem se mostrando caro e pouco eficiente no trato da saúde.