Obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis impõem desafios de melhor formação, visão holística e habilidades sociais dos profissionais de saúde
Obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis impõem desafios de melhor formação, visão holística e habilidades sociais dos profissionais de saúde
Conscientização, estigma e reformulação do currículo médico também fazem parte das mudanças necessárias na formação de profissionais de saúde
Os hábitos da vida moderna, fatores de desigualdade socioeconômica e envelhecimento da população colaboram para a atual incidência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) no mundo e apontam para uma tendência de piora nas próximas décadas. Mesmo com a evolução da ciência e da tecnologia, o problema pode se agravar com a constatação de que os profissionais de saúde nem sempre estão preparados para esta nova realidade, que demanda uma visão holística do paciente, desenvolvimento de habilidades sociais e traz a discussão de mudanças na grade curricular nas graduações.
As DCNTs – grupo que inclui obesidade, diabetes, pressão alta, câncer, doenças cardiovasculares e Alzheimer, dentre outras – são consideradas complexas justamente por envolverem uma série de fatores, como genéticos, fisiológicos, ambientais e comportamentais. Especificamente na obesidade, a situação é ainda mais preocupante. Por ser muito estigmatizada, um estudo feito pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) em 2022, revelou que 31,3% dos entrevistados não procuram sequer auxílio médico para tratar a condição.
Os números reforçam a necessidade de uma postura ativa dos profissionais de saúde na abordagem de DCNTs, como destaca Marcela Caselato, médica endocrinologista e líder da área Medical Frontliner Excellence) – área responsável pela integração entre indústria e sociedade médica – na Novo Nordisk. Segundo ela, a medicina vive um momento de reflexão e busca um “meio termo” entre o antigo médico generalista, que tratava de tudo sozinho, e o médico especialista, que domina uma subárea. Esse equilíbrio seria a chave para, a partir de uma visão ampla do paciente, chegar a uma melhor abordagem para o problema.
“Ao atender um paciente com obesidade ou sobrepeso que vem ao consultório médico com uma queixa de dor no joelho, ou cansaço por exemplo, e não comunica proativamente nada em relação ao peso, esse médico, independente da especialidade, pode se atentar e iniciar essa conversa. Às vezes, o paciente não fala por acreditar que a condição é sua culpa, achar que não merece ajuda ou por não reconhecer o problema. É preciso ter esse olhar acolhedor”, analisa Caselato.
Soma-se a isso ainda o fato de que o paciente hoje possui um novo perfil, muito mais informado e empoderado em relação à própria saúde, que busca um profissional que saiba conversar e compartilhar decisões e não apenas impor um tratamento sem a possibilidade de diálogo.
“É comum essa figura do médico muito conhecedor da ciência, mas que pouco consegue transmitir numa linguagem que o paciente entenda. E, embora sempre tenha sido uma falha que impacta negativamente a adesão ao tratamento, hoje essa é uma postura cada vez mais questionada. A comunicação se torna uma habilidade cada vez mais relevante no atendimento de saúde, com alto impacto no resultado final para o paciente”, pontua Caselato.
Gargalo começa na formação universitária
Dentre os fatores decisivos para um tratamento contra obesidade bem-sucedido está o acompanhamento por uma equipe multidisciplinar. Sua efetividade já foi comprovada em inúmeros estudos e a abordagem é recomendada pelos principais órgãos de saúde, mas, ainda assim, essa é uma realidade pouco vista no sistema público de saúde. De acordo com o relatório “Panorama IEPS”, produzido pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, um dos principais gargalos no cuidado de DCNTs no SUS é a falta de treinamento de profissionais para a atuação em equipes multiprofissionais.
Idealmente, essas equipes são compostas por clínicos gerais, endocrinologistas, nutricionistas, psicólogos e até educadores físicos. Mas a carência desse olhar transversal para o paciente com sobrepeso começa ainda na formação médica. Um estudo de 2020 mostrou que, nos Estados Unidos, as escolas médicas dedicam, em média, 10 horas para a educação em obesidade. Além disso, em aproximadamente 30% das instituições avaliadas, havia pouca ou nenhuma educação em nutrição e intervenções comportamentais sobre obesidade, comunicação adequada com pacientes com obesidade ou farmacoterapia. O reflexo desta baixa prioridade de educação sobre a doença é a falta de preparo dos estudantes de medicina para tratar efetivamente os pacientes.
No Brasil, o cenário não é diferente. Embora faça parte das rotinas nos consultórios de todo o país, ainda não é uma disciplina prioritária durante a graduação. Quando muito, cadeiras focadas em obesidade, por exemplo, são oferecidas como eletivas. Gustavo Daher, médico endocrinologista e coordenador médico do Hospital Israelita Albert Einstein, ressalta que, apesar dos avanços recentes, a abordagem da doença ainda não é a ideal.
“Sem dúvida, boa parte da formação não só dos médicos, mas de quase todos os profissionais de saúde, estigmatizava a obesidade e a enxergava como uma falha de caráter, de vontade, semelhante ao que acontecia com os transtornos psiquiátricos como depressão. E esse passado não é tão distante assim”, diz.
Outra dificuldade é a compreensão da doença como uma condição crônica, tanto por pacientes, quanto por profissionais de saúde, complementa Daher: “A obesidade não é abordada numa perspectiva transversal, muito menos contínua como uma doença crônica. Ela deveria ser tratada com a mesma atenção e cuidado que tratamos as outras DCNTs, mas não é. No caso da obesidade, o tratamento ainda acaba indo para um viés muito estético, e não de saúde, o que é muito crítico.”
Diálogo com o MEC
O aumento da demanda de pacientes e as discussões iniciadas na sociedade civil a respeito da obesidade têm forçado as instituições de ensino a adaptarem as grades curriculares ao novo cenário de saúde. A ABESO tem levantado a pauta juntamente com o Ministério da Educação (MEC), revela Cynthia Melissa Valerio, endocrinologista e membro da diretoria da instituição:
“Naturalmente, assim como evolui a ciência e a medicina, evolui também o currículo médico. Temos discutido a proposta de inclusão na grade curricular do ensino médico de disciplinas exclusivamente voltadas ao estudo da obesidade. Este ano, tivemos a oportunidade de realizar uma mesa redonda sobre o tema no nosso congresso.”
Além da inclusão das disciplinas, há o desafio de manter os currículos, docentes e discentes atualizados, já que a medicina se moderniza em um ritmo nunca visto antes. Para Marcela Caselato, a semente para conquistar a atualização contínua e adequada pode ser plantada nas instituições de ensino. “A atualização científica pode ser alcançada de formas muito diversas atualmente. E as escolas médicas devem estar preparadas para auxiliar esses novos profissionais, que logo estarão em seus consultórios, a se relacionar com as informações que estão disponíveis, por exemplo, em diferentes canais e formatos na internet, sabendo como avaliar se aquela informação é digna de confiança ou não. Empoderar esses estudantes para que eles se tornem agentes ativos e criteriosos na jornada de aprendizado.”
Apesar da movimentação positiva, todo esse processo de modernização dos cursos de medicina pelo país deve demorar um tempo, como pondera Daher: “É um processo que envolve fatores culturais complexos, então é preciso ter em mente que a mudança deve acontecer, mas a passos lentos. Ainda assim, temos que olhar para o futuro de maneira otimista. Poder discutir essas lacunas na educação sobre obesidade na formação médica já é um avanço. Há 20 anos, isso era impensável. É um sinal de que as coisas estão mudando.”
Habilidades sociais – ou soft skills – na formação de profissionais de saúde
Ao menos no aspecto da comunicação já há um movimento em andamento. Mas mesmo exercendo um papel fundamental no exercício da medicina, foi apenas recentemente que a comunicação – parte das intituladas “soft skills” – começou a receber atenção nas escolas de medicina. E é uma área crucial, pois na perspectiva das doenças crônicas, uma possível desconexão entre médico e paciente pode prejudicar diretamente a adesão ao tratamento.
“O ensino de medicina no Brasil é muito difuso e heterogêneo, mas a capacidade de adaptação da comunicação do médico já tem sido incluída na grade curricular dos bons cursos. Na Universidade de São Paulo (USP), na Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Ensino Einstein (FICSE), dos quais estou mais próximo, a comunicação já é trabalhada através de simulações e da presença de atores, por exemplo”, comenta Daher.
O aprimoramento da empatia está sob esse guarda-chuva das habilidades sociais. De acordo com o estudo já mencionado da Abeso, 60,4% dos pacientes com obesidade ou sobrepeso relataram ter sofrido preconceito por causa do peso em serviços de saúde.
A própria Abeso foi fundada há 35 anos com o objetivo de difundir o conhecimento da obesidade como uma doença crônica, complexa e que necessita de tratamento contínuo. O foco é não apenas o público final, mas principalmente a comunidade de profissionais de saúde. Daí a necessidade de mobilização da classe, como aponta Cynthia:
“O preconceito relacionado à obesidade é uma das grandes barreiras para seu tratamento adequado. Este assunto tem ganhado destaque em publicações científicas e sociedades médicas do mundo todo. Pesquisas demonstram um atraso de até 6 anos entre o diagnóstico e a busca de ajuda médica pelo indivíduo com obesidade. Os profissionais de saúde nem sempre têm consciência de sua postura estigmatizante ao atenderem os pacientes. Há uma gordofobia estrutural na abordagem da pessoa com obesidade, e que deve ser combatida com a ajuda de todos.”
Revolução farmacológica não é única novidade
A obesidade passou a ser reconhecida oficialmente como doença pelo Ministério da Saúde em 2006, nos Cadernos de Atenção Básica, passando em 2013 a integrar a Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas. Nesses 10 anos, muita coisa mudou, a começar pelo entendimento da doença e sua fisiopatologia. Entretanto, o desenvolvimento de terapias eficazes no tratamento da condição – que não raramente vem acompanhada de outras comorbidades, como diabetes, pressão alta, etc. –, ainda é um desafio.
Com a escassez de medicações, o foco se mantinha em controlar as condições e apostar em mudanças no estilo de vida e na dieta para a redução de peso, estratégias que exigem não apenas engajamento, mas envolvem ainda outros fatores socioeconômicos, como já demonstrado em estudo publicado na Nature. Nos últimos anos, porém, o combate à obesidade vem ganhando outros contornos graças a novas tecnologias que se mostraram eficazes na redução de peso para pacientes com obesidade.
Mas os medicamentos não são a única novidade. A própria abordagem feita em consultório começou a ser repensada. Na campanha para o Dia Mundial da Obesidade de 2023, o mote foi inspirado nessa mudança. “Por que um outro jeito de olhar?” convidou os profissionais de saúde a refletirem sobre as estruturas que estigmatizam os pacientes com obesidade e a valorizarem mais a voz deste mesmo paciente.
“A campanha foi apenas um dos passos tomados pela Abeso para combater este estigma. A criação de um departamento de Voz ao Paciente foi outro passo importante para melhorar o diálogo entre pacientes e profissionais de saúde”, revela a diretora da instituição.
Para além do foco no físico do paciente com obesidade, a atenção à saúde mental também aumentou. A própria estrutura social que estabelece o corpo obeso como fora do padrão, a estigmatização, a frustração com o tratamento e outras questões paralelas podem prejudicar a saúde psicológica desses indivíduos. Além disso, uma possível má relação com a comida pode ter um viés psicológico, como quadros compulsivos e bulímicos.
Um estudo recém-publicado também na Nature destacou os benefícios da Terapia Cognitiva Comportamental para estimular mudanças no estilo de vida para portadores de obesidade. O endocrinologista Gustavo Daher salienta a importância de trabalhar junto a profissionais de saúde mental nesses quadros: “Profissionais ligados à saúde mental são muito importantes em uma abordagem multidisciplinar da obesidade. Eles são fundamentais para que a gente consiga trabalhar desde questões cognitivas ou comportamentais, por exemplo, até distúrbios mais graves, como os transtornos alimentares.”
Este conteúdo faz parte de uma série de reportagens sobre desafios e tendências das doenças crônicas não transmissíveis produzida em conjunto com a Novo Nordisk. Para acessar os demais, acesse a página especial.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.