Quais as prioridades para uma possível secretaria de saúde mental?
Quais as prioridades para uma possível secretaria de saúde mental?
A saúde mental da população tem recebido cada vez mais
A saúde mental da população tem recebido cada vez mais atenção de médicos, autoridades e entidades do setor. Com um aumento expressivo de transtornos, acelerado pelos impactos da pandemia de Covid-19, especialistas têm defendido mais investimentos. Apesar de existir uma estrutura para o atendimento da população, a demanda da saúde e as dificuldades de acesso cobram o fortalecimento de políticas públicas voltadas para essa área. Neste contexto, ventila-se nos bastidores a possibilidade de se criar uma secretaria de saúde mental, ligada ao Ministério da Saúde, para nortear e direcionar a estrutura de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
A ideia começou a ser divulgada por conta de uma postagem do deputado federal André Janones (AVANTE) no Twitter, onde afirma ter negociado o apoio ao então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em troca da criação de uma secretaria de saúde mental. Por enquanto não há informações oficiais do governo eleito de que isso será uma realidade. Ainda que se tenha poucas ou nenhuma informação sobre o tema, especialistas veem com bons olhos a iniciativa, mas lidam com cautela, já que até meados de 2022, a saúde mental ocupava uma coordenadoria, que foi extinta pelo governo atual.
A possibilidade de criar uma secretaria, por outro lado, levaria a área a um outro patamar, mas com a previsão de que o orçamento para a saúde em 2023 deve ser o menor dos últimos 10 anos, os desafios serão inúmeros. Mesmo com o governo eleito buscando alternativas para custear projetos essenciais à população, como o Auxílio Brasil e o Farmácia Popular, através de Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) junto ao Congresso, o orçamento não deve ter espaço para atender todas as demandas reprimidas na saúde pública.
“O orçamento de saúde teve uma redução relevante e a saúde mental tem uma parcela muito pequena do total. A gente precisa aumentar isso dentro do cronograma da Lei Orçamentária Anual dos próximos 4 anos. Isso tem que casar com o timing político de quando essas decisões são tomadas. E não é só uma questão de aumentar, mas onde se gasta. Não adianta a gente ter muito mais dinheiro se não for bem aplicado e usado”, aponta Luciana Barrancos, gerente executiva do Instituto Cactus, organização filantrópica que trabalha com a promoção e prevenção de doenças mentais.
Caso a ideia vá em frente, as prioridades passam pela estruturação das políticas públicas na área, o fortalecimento da atenção primária, a retomada de estratégias que sofreram desmontes nos últimos anos, monitoramento das ações estabelecidas, formação e valorização dos profissionais e a continuidade da Reforma Psiquiátrica, com foco na desinstitucionalização.
Secretaria de saúde mental
Se alcançar o status de secretaria, a perspectiva é que receba mais investimentos dentro do orçamento da saúde, que hoje corresponde a menos de 2% do total. Para isso, é preciso que haja um aumento dos valores destinados à pasta como um todo, já que existe uma demanda de outros grupos por investimentos em diversos setores.
“Quanto mais estrutura, governança e formalidade tivermos dentro do Governo, pressupõe-se que mais atenção vai ser direcionada à saúde mental. Então, é relevante a gente pensar que essa agenda vai ganhar a proeminência a ponto de ter uma secretaria que responderia por esses assuntos”, avalia Barrancos.
Para o professor Walter Ferreira de Oliveira, líder do Grupo de Pesquisas em Políticas de Saúde e Saúde Mental (GPPS), da Universidade Federal de Santa Catarina, “uma coordenação de saúde mental, como a que foi extinta, é muito pequena para a demanda que temos hoje. A previsão que nós temos é que após uma pandemia, a tendência é que os problemas relacionados à saúde mental aumentem de forma significativa nos 5 anos seguintes. Isso vai atravessar todo o país, classes sociais e idades. Talvez, precise mesmo de um departamento dentro do Ministério ou a ideia da secretaria”.
Na visão dos especialistas, a ideia de ter um órgão para coordenar as políticas públicas e ações da saúde mental precisa estar alinhada não apenas com o Ministério da Saúde, mas ser transversal. Educação, Cidadania, Economia e programas de assistência social precisam caminhar lado a lado com o tema, já que são áreas que podem ter impactos significativos com casos de doenças e transtornos mentais.
Fato é que mesmo que ainda não se tenha falado de fato sobre o tema, a equipe de transição já se articula para fortalecer as políticas de saúde mental. Em entrevista ao jornal O Globo, o ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro, afirma que essa é uma das prioridades do governo eleito, assim como a prevenção e controle do uso abusivo de álcool e drogas.
“Claro que precisamos ter o pilar de tratamento e cuidado, mas se quisermos pensar em um futuro com mais sustentabilidade e uma transformação social mais sistêmica, precisamos olhar para a prevenção. Então, ter uma secretaria viabiliza ter ações de longo prazo e estruturadas” – Luciana Barrancos, do Instituto Cactus
Prioridades
Seja como secretaria, coordenação ou departamento, o fato é que as políticas públicas e a estrutura do Ministério da Saúde dedicada à área precisam passar por uma revisão e fortalecimento. Para isso, é preciso elencar quais as principais pautas para se trabalhar em um primeiro momento, principalmente em um cenário com orçamento limitado — e reduzido.
De acordo com Luciana Barrancos, do Instituto Cactus, a atenção primária à saúde mental é uma dessas prioridades: “Entendendo que 50% dos adoecimentos mentais surgem até os 14 anos e 75% até os 24 anos, estamos falando de uma população jovem. O que é mais chocante é que 80% disso passa sem diagnóstico e tratamento. Então, estamos perdendo a oportunidade de intervir cedo, criar uma sociedade mais saudável e termos adultos do futuro com a saúde mental preservada”.
Ela ainda aponta que a carga global, uma medição do impacto de uma doença que não seja fatal, é significativa quando falamos de saúde mental, o que requer mais visibilidade para essa área. Do total de doenças, as mentais representam 13% dos anos de vida vividos com incapacidade e anos de vida perdidos, equivalente ao índice das doenças cardiovasculares e circulatórias.
Apesar do SUS contar com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), os especialistas apontam que ela precisa passar por um aprimoramento, com um amplo diálogo da sociedade civil e outras instâncias do sistema público de saúde. A comunicação é outro ponto que precisa ser trabalhado, pois parte da população não chega até as unidades que compõem essa rede, seja por falta de informação, direcionamento ou dificuldade de acesso. O país conta com mais de 2.800 unidades de Centros de Atenção Psicossocial (Caps), mas que também precisam ter uma expansão para acompanhar a demanda.
“Temos capitais que possuem uma unidade. Na grande Florianópolis, por exemplo, existe um Caps para atender um milhão de pessoas. Caps infantil também tem apenas um, e outras cidades não possuem nenhum. Ao mesmo tempo, também não temos uma cultura. Existem pessoas que nunca ouviram falar sobre Caps”, alerta Walter Ferreira, do GPPS.
O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) elaborou um documento com o apoio de diversas entidades para listar as prioridades na saúde para o próximo governo. Na parte da saúde mental, que foi produzida em parceria com o Instituto Cactus, o texto aponta outros tópicos importantes: gerar informação e incentivar o monitoramento e fiscalização das políticas públicas de saúde mental, promover políticas de treinamento e valorização de profissionais de saúde mental e retomar e avançar a Reforma Psiquiátrica.
Retomada
A chamada Reforma Psiquiátrica é um marco nas políticas públicas de saúde mental. Com mais de 20 anos desde a formulação da lei que revisou a forma como o SUS trabalha os cuidados com pessoas com doenças e transtornos mentais, o país avançou bastante nas questões de desinstitucionalização, com uma redução drástica dos chamados “manicômios”. Em outubro passado, por exemplo, o Rio de Janeiro anunciou o fechamento da última unidade do tipo que ainda atendia a rede municipal de saúde.
Ocorre que existe um grande debate sobre como as últimas gestões do Governo Federal modificaram as políticas de saúde mental no país. Além da extinção da coordenação do Ministério da Saúde, também houve mais incentivo às internações psiquiátricas e em comunidades terapêuticas, que os especialistas explicam que são conceitos ultrapassados e excludentes. Por outro lado, a rede do SUS sofreu redução e esvaziamento dos serviços oferecidos.
“Precisa-se investir mais em tratamentos que não se limitem a médicos e medicamentos. Existe uma série de alternativas de cuidado, com evidências científicas, para oferecer às pessoas. Focamos muito no médico, hospital e remédio. Estamos voltando para um modelo que foi superado na década de 50”, defende o professor Walter, da UFSC. Ele alega que houve uma “invasão” do Ministério por entidades que possuem essa visão arcaica e defendem um lado mais corporativista, sem olhar para a saúde mental como uma questão interdisciplinar.
Entre as práticas mais modernas, o líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde e Saúde Mental defende que é preciso retomar os trabalhos com as unidades de acolhimento, centros de convivência e serviços residenciais terapêuticos, previstos inicialmente na RAPS. Da mesma forma, Walter defende que sejam construídos leitos em hospitais gerais para atendimentos, e não psiquiátricos, pois ajudam a desestigmatizar os pacientes.
“A saúde mental não é mais um território só do médico, nem mesmo só do psicólogo. É assunto para muitas disciplinas. As pessoas têm que entender sua função dentro da saúde mental. Precisamos mudar até os currículos dos cursos de educação, pois temos um contingente enorme de crianças que sofrem psiquicamente e os professores não estão preparados para lidar com isso de forma sensível”, alerta Oliveira.
“Temos uma expectativa de que as políticas irão melhorar, mas temos uma preocupação de que as pessoas encarregadas de melhorar as políticas não tenham uma compreensão avançada dessa mudança de paradigma” – Walter Ferreira de Oliveira, Líder do GPPS/UFSC
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.