Além de terapias inovadoras, prevenção se torna prioridade de organizações e governos contra o câncer

Além de terapias inovadoras, prevenção se torna prioridade de organizações e governos contra o câncer

Segundo a OMS, de 30% a 50% dos casos da doença são preveníveis. Foco está em fatores modificáveis e educação da população

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By Published On: 06/03/2024
Prevenção do câncer - Einstein

Foto: Adobe Stock Image

Nos últimos anos, a saúde tem concentrado esforços em estratégias de prevenção de doenças, a fim não só de evitar o adoecimento, como também promover vidas saudáveis, otimizar o uso de recursos de maneira sustentável e combater a sobrecarga do sistema. Com o câncer, os avanços da ciência mostram que é possível caminhar na mesma direção. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), de 30% a 50% dos casos de câncer são preveníveis, já que muitos estão relacionados aos chamados fatores de risco modificáveis: tabagismo, consumo nocivo de álcool, inatividade física e hábitos alimentares.

Embora medidas de prevenção não sejam exatamente uma novidade, novas iniciativas têm buscado uma abordagem multidisciplinar, que leva em consideração a jornada do indivíduo, navegação pelo sistema de saúde e particularidades de cada região. No fim do ano passado, o Brasil e a América Latina como um todo deram passos importantes nesse caminho, inclusive buscando alinhamento com padrões globais.

Em outubro, foi lançado o 1º Código da América Latina e do Caribe contra o Câncer, desenvolvido pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), braço da OMS para a região, e pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), em parceria com organizações da sociedade civil. O projeto contou com a parceria e o financiamento da organização Amigos Einstein da Oncologia e Hematologia (amigo_h), iniciativa que integra o pilar de responsabilidade social do Einstein e que tem como foco atuar na captação de recursos para apoiar, desenvolver e implementar projetos de prevenção e detecção precoce do câncer, além de fomentar pesquisas para novos tratamentos na área de oncologia e hematologia.

Depois, em dezembro de 2023, o Brasil instituiu a nova Política Nacional de Prevenção e Combate ao Câncer, prevista para entrar em vigor em meados desse ano, que abrange da prevenção do câncer ao pós-tratamento e tem no centro de suas ações a humanização do sistema como um todo. “É uma política que vai impactar muito o fluxo do SUS, principalmente ao levarmos em conta que 75% da população brasileira hoje depende dos serviços públicos de saúde”, avalia Anelisa Coutinho, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).

Particularidades demográficas devem ser consideradas

O código e a política são apenas dois de diversos exemplos de ações em andamento no mundo que tentam atacar números e tendências que preocupam. Segundo a OMS, aproximadamente 70% das mortes decorrentes de câncer ocorrem em países em desenvolvimento. E, de acordo com um relatório elaborado pela The Economist Intelligence Unit, a previsão é que, até 2030, os casos de câncer aumentem em 67% na América Latina e no Caribe. Dentre os fatores que influenciam o cenário oncológico atual na região estão as disparidades socioeconômicas, a falta de acesso à prevenção, baixa cobertura de saneamento básico, falta de informação a respeito de medidas de prevenção e do direito de acesso à saúde e carência nutricional.

O relatório Panorama de Segurança Alimentar 2022, da ONU, constatou que 22,5% da população local não tem meios suficientes para uma alimentação adequada, o que foi associado a uma maior prevalência de fome, desnutrição crônica e anemia entre homens e mulheres de 15 a 49 anos. A obesidade, DCNT associada ao aumento do risco de pelo menos 14 tipos de câncer, também tem relação com uma alimentação empobrecida no consumo de frutas e hortaliças, consumo de carne processada e excesso de carne vermelha.

Diante dos diversos desafios de saúde na região, especialistas têm observado o aumento de algumas categorias de câncer, como câncer do colo do útero e colorretal. O código da OPAS propõe analisar de perto as variáveis responsáveis por esse crescimento. “É um código que cobre bastante as questões de estilo de vida”, afirma Henrique Helber, oncologista clínico no Hospital Israelita Albert Einstein. “Há muito a respeito de evitar consumir bebidas alcoólicas, priorizar uma alimentação saudável, fazer atividade física diariamente, atingir o peso saudável e mantê-lo. Até mesmo questões ambientais, como evitar a exposição prolongada a ambientes com muita fumaça, exposição solar. São questões bastante relevantes para o combate do câncer de uma forma geral, mas principalmente no cenário de um país em desenvolvimento.”

Os esforços para a elaboração do código surgiram ainda em 2020, com o objetivo de desenvolver um documento com foco em prevenção inspirado no código europeu, mas com atenção às características singulares da região latino-americana e caribenha, explica Rose Miranda, coordenadora de projetos do Instituto Israelita de Responsabilidade Social Albert Einstein.

Para ela, o documento está alinhando com a tendência global de trabalhar a saúde a partir do empoderamento da população. “Quando você tem um código que traz essas recomendações, ele convida a população para que ela seja protagonista da sua própria saúde. Com conhecimento, a gente possibilita que o indivíduo adote essas boas práticas e que a prevenção seja mais efetiva, o que reduz o risco de desenvolvimento da doença. Ele não é um código que restringe, mas que orienta e considera a realidade dessa população.”

Neste sentido, ela reforça ainda a importância da comunicação realista: “Não adianta você dizer que a pessoa tem que comer frutas, se quando você vai a determinadas regiões do país, marcadas pela miséria, a pessoa não vai ter disponível nem mesmo a alimentação básica. Então, há uma preocupação também em adequar a comunicação para que as pessoas consigam absorver a importância da prevenção dentro da própria realidade, ou a comunicação se torna apenas uma fala esvaziada.”

Foco nos fatores de risco modificáveis para prevenção do câncer

A criação de ambientes favoráveis à saúde e ao desenvolvimento de habilidades individuais e sociais para o autocuidado é uma das diretrizes do documento brasileiro, reforçando a visão multidisciplinar da condição mesmo na etapa de prevenção. Afinal, é consenso entre órgãos de saúde, pesquisadores e profissionais de saúde que a prática de atividade física pode reduzir os riscos de desenvolvimento das chamadas Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), grupo do qual fazem parte câncer, diabetes, obesidade, condições cardiovasculares, dentre outras.

Mas a adesão ao hábito saudável ainda é baixa. Uma pesquisa conduzida pelo Serviço Social da Indústria (SESI) em 2023 entrevistou 2.021 cidadãos em todo o país e revelou que 52% dos entrevistados raramente ou nunca fazem atividades físicas. “Hoje, as pessoas têm mais acesso a tecnologias que tornam a vida mais fácil de certa forma, ao mesmo tempo em que temos menos tempo para atividades físicas, ao ar livre, o que tem nos deixado mais sedentários”, afirma Henrique Helber, oncologista clínico no Hospital Israelita Albert Einstein.

Para ele, as mudanças no estilo de vida da sociedade nas últimas décadas têm impactado as taxas de incidência da doença, o que reforça a necessidade do foco em uma prevenção cada vez mais multidisciplinar. “Tudo tem consequência. Não é por acaso que a incidência de todos os cânceres tem aumentado de uma forma geral. Com isso, chegamos à necessidade de prevenção. Nas últimas décadas, as tecnologias médicas avançaram e hoje conseguimos prevenir e rastrear melhor o câncer, mas ao mesmo tempo, temos um aumento de incidência significativo.”

Além disso, o oncologista destaca a facilidade para consumir alimentos já prontos, os processados e ultraprocessados, uma vez que a alimentação também tem caráter importante nas estratégias preventivas. Mas o tópico não é nada simples e demanda uma articulação intersetorial. “A sociedade em geral deve estar envolvida nessa luta”, pondera a presidente da SBOC.

Para Coutinho, as escolas são elemento fundamental dessa equação e cita que a melhoria da própria merenda escolar deve ser um objetivo. Ela aponta ainda os educadores como peças fundamentais para a estratégia de prevenção e detecção precoce do câncer: “Acredito que os educadores têm um papel enorme desde a educação primária. São esses educadores que podem auxiliar no cultivo de hábitos. É importante ter uma educação que seja antitabagista, pró atividade física, que ensine as crianças a observarem o próprio corpo, a identificar uma mancha diferente, se está aumentando.”

Outro fator importante, de acordo com Rose Miranda, é o alinhamento de comunicação com os órgãos de saúde do Brasil. Hoje, segundo ela, ainda há desencontros em algumas informações, como a idade recomendada para realização de alguns exames de rastreio, por exemplo. “É um fator importante. O código da OPAS traz recomendações que estão alinhadas com aquelas já adotadas pelo INCA, mas é necessário aperfeiçoar esse alinhamento para que seja um discurso único. É algo que também já estamos trabalhando nessa parceria, para que a gente leve uma informação que seja padronizada para a população brasileira.”

Implementação da política nacional é desafio

A promoção de hábitos alimentares saudáveis, o enfrentamento dos impactos dos agrotóxicos na saúde humana e no ambiente e o fomento à ampliação de medidas restritivas ao marketing de alimentos e de bebidas com agentes cancerígenos ou com alto teor de sal, calorias, gorduras ou de açúcar, aparecem listados entre os princípios e diretrizes de prevenção da política nacional do câncer. “Em geral é uma política muito interessante, muito completa. Ela aborda praticamente todos os pontos que são de importância para um paciente que tem uma suspeita de câncer, porque ela vai integralmente no indivíduo”, analisa Coutinho.

A presidente da SBOC destaca ainda o foco dado a toda a jornada: “Não é um instrumento que aborda somente o tratamento, ela aborda integralmente desde medidas de prevenção, em um plano de prevenção estruturado – que é o melhor dos mundos, prevenir o adoecimento –, até o rastreio naquelas idades mais críticas, com taxas de incidência maiores, o diagnóstico precoce que aumenta também as chances de cura do paciente e pode reduzir a necessidade de tratamentos mais custosos, além do pós tratamento, abarcando a reabilitação, os cuidados paliativos quando necessários. É um plano que abrange toda a linha de cuidado.”

Para ela, ter tais políticas consolidadas é uma conquista, mas a etapa de implementação reserva desafios típicos de um país de dimensões continentais. O primeiro deles é ter uma implementação adaptada para “cada SUS do Brasil”, como ressalta Coutinho. O texto prevê a organização de redes de atenção regionalizadas e descentralizadas, para que a política funcione também fora dos eixos urbanos, facilitando o acesso de pacientes do interior do país, de municípios menores, comunidades ribeirinhas, entre outras populações.

Há ainda a necessidade de capacitação dos profissionais da rede, para que as unidades de saúde possam oferecer o atendimento adequado, do acolhimento ao encaminhamento para o serviço correto, facilitando a navegação do paciente no sistema – o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer nasce a partir da mesma lei.

“A partir do ponto em que se torna lei, o próximo desafio é destrinchar o projeto para viabilizá-lo, generalizá-lo para que ele possa atender a todo o Brasil e não apenas a pequenos feudos”, aponta. “Pode-se optar por iniciar o projeto em alguns centros pilotos, mas o fato é que devem ser criados instrumentos para que a implementação seja feita. Eu acredito que, com esse projeto, podemos ter um case interessante em relação à atuação do país diante da necessidade de prevenção.”

Novas tecnologias para prevenção e detecção precoce

Uma das áreas que mais têm se beneficiado dos avanços na medicina nos últimos anos é a de rastreamento, que teve uma evolução significativa graças ao aprimoramento dos exames de imagens e das biópsias não invasivas. Além disso, novas terapias e medicamentos têm revolucionado o curso da doença, a exemplo do câncer de mama, um dos maiores cases da área – da identificação dos biomarcadores dos subtipos até as possibilidades de tratamento.

Para o futuro, Helber aposta no uso de inteligência artificial. “Esperamos que a IA ajude muito principalmente nessa parte de prevenção e rastreio, que facilite e agilize esse processo. Mas ainda é algo que não está incorporado na nossa rotina clínica.”

O oncologista faz questão de ressaltar que, mesmo com as promessas dessa tecnologia, é preciso focar em ampliar o acesso da população aos métodos já disponíveis: “Temos o autoteste do HPV que deve chegar em breve, além de tecnologias de IA sendo desenvolvidas para avaliar alterações em exames. Mas isso não substitui a avaliação de um médico ou a realização dos exames de mamografia, papanicolau. O foco tem que ser principalmente em ampliar por todo o Brasil as boas técnicas de rastreio oncológico que já temos e que são efetivas.”

Isabelle Manzini

Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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    Rebeca Kroll

    Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi trainee do programa "Jornalismo na Prática" do Correio Braziliense, voltado para a cobertura de saúde. Premiada na categoria de reportagem em texto na 2ª edição do Prêmio de Comunicação de Saúde na Primeira Infância da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

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    Luciana Holtz

    Luciana Holtz é psicóloga, especialista em psico-oncologia e bioética. Fundadora e presidente do Instituto Oncoguia, ONG voltada para educação, apoio e defesa dos direitos de pacientes com câncer. Ativista na área, já coordenou iniciativas globais de conscientização, integra comitês internacionais e foi reconhecida como empreendedora social da Ashoka. Seu trabalho busca ampliar o acesso à informação confiável e garantir que o câncer seja tratado como prioridade no Brasil.

Isabelle Manzini

Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.