Oncologistas debatem o futuro das políticas públicas de câncer
Oncologistas debatem o futuro das políticas públicas de câncer
A equação que envolve acesso a tratamentos e sustentabilidade do
A equação que envolve acesso a tratamentos e sustentabilidade do sistema de saúde está longe de ser resolvida. Embora o tema seja complexo e com variáveis que precisam de desdobramentos em várias esferas, há uma mudança se desenhando nesse aspecto: o aumento do interesse dos especialistas que atuam na ponta do atendimento aos pacientes em entender e debater soluções. O exemplo que marca essa tendência é que temas como economia em saúde e políticas públicas de câncer foram escolhidos como pautas centrais do XXIII Congresso da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). E mais do que isso: foram as salas mais populares da edição do evento no Rio de Janeiro.
“Essa é uma provocação que a gente tem feito aos oncologistas, que eles precisam participar mais das tomadas de decisão, não podem delegar essa tomada de decisão para os gestores que não são médicos e especialistas”, comenta o oncologista André Sasse, membro do Comitê de Defesa Profissional e Políticas Públicas da SBOC.
Na visão dele, a conscientização dos médicos sobre o tema também contribui para que sejam feitas escolhas mais acertadas para o tratamento: “A oncologia não é a culpada pelo sistema ficar insustentável em um futuro próximo. O custo é alto, mas não é essa exorbitância que querem imputar para a gente, que o médico prescrevendo um medicamento de alto custo vai quebrar o sistema. Isso é importante, mas restringir o acesso não é a forma de salvar o sistema. Temos que pensar em ser mais responsáveis e compartilhar o conhecimento em economia em saúde”.
Os participantes trouxeram ao centro das discussões questões como a precificação dos tratamentos oncológicos, a remuneração dos médicos, a incorporação de tecnologias, os diferentes modelos de negócios, as diferenças entre o atendimento e as possibilidades no SUS e nos planos de saúde, dentre outros assuntos. As diferentes abordagens mostram como o setor é complexo e requer diálogo para avançar cada vez mais.
Com os impactos da pandemia de Covid-19 na realização de exames que contribuem com o diagnóstico precoce do câncer e o aumento crescente de casos da doença, assim como o surgimento de tratamentos cada vez mais avançados, e consequentemente mais caros, o Brasil tem um enorme desafio à frente. Mas de acordo com os especialistas, existe saída viável para melhorar o cenário.
A análise sobre os painéis propostos mostra que é preciso que o país rediscuta as políticas públicas para o câncer como um todo, da atenção primária a tratamentos avançados. Sociedades médicas, pacientes, Ministério da Saúde, Instituto Nacional de Câncer (INCA) e outros interessados precisam sentar à mesa para propor ações efetivas para melhorar o financiamento do SUS e prioridades que devem nortear os trabalhos.
Câncer na saúde pública
O INCA estima que 625 mil novos casos de câncer ocorram em 2022. Grande parte dos pacientes vão ser tratados por uma das 317 unidades e centros de assistência habilitados no tratamento oncológico do SUS. Mas para isso, é preciso que haja diagnóstico precoce e terapias avançadas disponíveis, que tornem os investimentos mais efetivos e os cuidados mais assertivos.
“Considero que o tratamento está mais facilitado, tanto cirúrgico quanto pela oncologia clínica, com a quimioterapia em si. Mas pecamos pela diferença de tratamento que fornecemos para o SUS e para pacientes do sistema privado. Ainda não temos essa equivalência. A Conitec tem melhorando muito, com a recomendação de novas terapias para o tratamento de câncer em geral, mas não vemos isso ser incorporado na prática”, aponta Livia Andrade, gerente médica de oncologia e hematologia do Instituto de Pesquisa e Ensino Rede D’Or Regional Bahia.
Ela explica que o grande problema é que mesmo que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) incorpore determinados tratamentos inovadores ao SUS, os valores disponíveis via Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade (APAC) não são compatíveis com a necessidade. Cada tipo de tumor, tratamento ou tecnologia possui uma APAC com valores próprios, mas que no geral estão desatualizados e não cobrem imunoterapias, por exemplo.
André Sasse, da SBOC, lamenta que os tratamentos oncológicos no SUS sejam feitos com as mesma drogas utilizadas à época em que terminou a residência médica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no início dos anos 2000, com pouquíssimas diferenças entre as drogas e tecnologias disponíveis para os usuários do sistema público.
“Ás vezes vemos uma incorporação de imunoterapia para melanoma e até acho interessante, mas R$7500 [valor atual da APAC] não cobre o custo da imunoterapia. Mas aí resolve com a indústria farmacêutica? É o recado que o Ministério da Saúde falha. Poderia negociar os valores e, se não consegue incorporar, sentar-se de novo para discutir. A indústria precisa fazer a parte dela e negociar da melhor maneira, mas também buscar outras fontes de financiamento, seja estadual ou municipal”, defende o oncologista.
Uma das alternativas defendidas durante o Congresso é que o Governo Federal centralize as compras de medicações, para que consiga preços mais baixos pelo volume necessário para atender o Brasil todo. Como muitas vezes as negociações são entre estados, municípios e até as próprias unidades de tratamento, torna-se pouco viável um diálogo mais aberto com as indústrias farmacêuticas.
Planos de saúde
Do ponto de vista das operadoras de saúde, a discussão é principalmente pela sustentabilidade do sistema. Com terapias cada vez mais personalizadas e custos chegando à casa dos 9 dígitos, é necessário uma remodelação do modelo assistencial e uma observação apurada sobre a custo-efetividade dos tratamentos.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem trabalho nesse sentido, assim como o Congresso Nacional aprovou leis que aceleraram o processo de avaliação de novas tecnologias para a saúde suplementar. Até agosto deste ano, 10 procedimentos e 20 medicamentos foram incluídos no rol de procedimentos obrigatórios aos planos de saúde, grande parte destinada ao tratamento de câncer.
“O conhecimento dos especialistas em economia de saúde e um maior conhecimento sobre acesso dos oncologistas que atuam em consultórios vai ajudar a transformar o ambiente dos planos privados em um futuro mais sustentável. A pressão por rediscussão de precificação também fica mais fácil. O sistema privado precisa de algumas mudanças, mas ele é mais adaptável às realidades”, diz Sasse.
Há caminhos para a prevenção e diagnóstico
Se o tratamento onera o sistema, a prevenção deveria ter um papel mais forte. E há caminhos para isso. Por exemplo, uma das principais formas de prevenção ao câncer de colo do útero é a vacina contra o HPV, vírus sexualmente transmissível e que provoca infecção de pele ou mucosa. Desde 2014 esse imunizante está disponível no SUS para vacinação de crianças e adolescentes, por ainda não ter iniciado vida sexual e ao se vacinar adquirem uma proteção maior ao longo da vida. No entanto, a cobertura está abaixo da meta de atingir 80% da população-alvo.
A oncologista Livia Andrade, da Rede D’Or, aponta que atualmente, apenas 55% do público está imunizado. Existe a possibilidade da doença ser erradicada no país, reduzindo consideravelmente o número de câncer de colo do útero. Mas para isso, é preciso que o Brasil retome as campanhas massivas de vacinação e faça um trabalho de diagnóstico precoce.
Ela também avalia que pouco se trabalha em outras formas de prevenção para os cânceres em geral, como o incentivo a prática de atividades físicas e redução do tabagismo e do consumo de álcool. A mudança de hábitos de vida pode colaborar com uma redução de 30% no número de casos de câncer, segundo ela, o que faz com que investimentos em conscientização e comunicação se tornem ainda mais necessários.
Trabalhada a prevenção, a parte de diagnóstico também é um gargalo do SUS e precisa ser ampliada. Mesmo com a lei dos 30 dias para realizar exames em caso de suspeita de câncer, e a lei dos 60 dias, período máximo para o paciente iniciar o tratamento na rede pública, a grande maioria da população espera períodos maiores nas filas, até de fato conseguir acessar essas áreas do sistema. Em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) analisou dados públicos e concluiu que a média brasileira para pacientes terem o diagnóstico de câncer no SUS é de 270 dias.
“Isso acaba impactando em pacientes com diagnóstico bem mais tardio no SUS que na rede privada. Cerca de 40% dos casos de câncer de mama no setor público estão nos estágios 3 e 4, os mais avançados, e a curabilidade é extremamente baixa. Enquanto no setor privado, é de 18%. Para conseguir melhorar os desfechos de sobrevida e curabilidade, vai ter que mudar toda a jornada do paciente”, alerta Andrade.
Livia explica que parte desse atraso se dá ao baixo número de patologistas no país. De acordo com a Demografia Médica do Brasil de 2020, apenas 3.445 médicos possuem essa especialidade, representando 0,8% do número total de profissionais de medicina titulados no território brasileiro.
A mamografia, o principal exame que contribui com o diagnóstico precoce do câncer de mama e tema recorrente das campanhas de Outubro Rosa, também passa por dificuldades, principalmente por conta da pandemia, já que consultas e exames eletivos foram adiados para priorizar pacientes com Covid. A cobertura do público-alvo está em torno de 20%.
A oncologista explica que a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que seja realizado o exame em 70% das mulheres. “Para piorar, durante a pandemia esse número caiu absurdamente, reduzindo em 40% em 2020 a quantidade de mamografias. Em 2021 melhorou um pouco mais, mas ainda está 15% abaixo. Talvez agora em 2022 consigamos equiparar ao período pré-pandemia, mas mesmo assim estamos falando de algo muito abaixo da recomendação”, observa Andrade.
Em sua visão, existem leis formuladas e bem embasadas para o câncer no país. No entanto, o que falta é a aplicação delas, assim como um maior incentivo, conscientização e recursos para poder avançar ainda mais na prevenção e tratamento da doença. Consequentemente, uma redução na mortalidade dos pacientes com os mais diferentes tipos de tumores.
“O grande problema é fazer com que elas [políticas públicas] sejam seguidas na prática. Há gargalos e desafios inúmeros. Parte de uma mudança global. O governo e os gestores têm que cobrar das instituições e viabilizar medidas para que isso possa ser implementado. E também faz parte da sociedade, nós, médicos, e equipes multidisciplinares se envolver nesse projeto de melhorias”, conclui a médica.
Políticas públicas de câncer podem ajudar a navegação
Diversas iniciativas regionalizadas no âmbito da saúde pública foram apresentadas durante o Congresso e mostraram que ações dos oncologistas e outros profissionais da saúde são muito importantes para mostrar possíveis caminhos os cuidados com o câncer. No entanto, é preciso que elas ganhem escala para gerar um impacto maior e sejam divulgadas.
Para garantir que a lei seja cumprida no âmbito do SUS, em setembro de 2022 foi sancionada a criação do Programa Nacional de Navegação de Pacientes para Pessoas com Neoplasia Maligna de Mama. A ideia é que pacientes com suspeita ou diagnóstico de câncer recebam o suporte por profissionais para orientação e acompanhamento de consultas e exames, facilitando a trajetória do paciente nas unidades de saúde que realizam o atendimento.
Dessa forma, assistentes sociais ou enfermeiros poderiam cobrar gestores, médicos e outros profissionais para realizar coletas de exames, procedimentos e tratamento oncológico, reduzindo principalmente o tempo de espera. Assim, as chances de aumentar as possibilidades de tratamento e a sobrevida do paciente são maiores. Do ponto de vista dos custos, também contribui para o serviço ser mais eficiente, evitando desperdícios.
De acordo com Sandra Gioia, mastologista e coordenadora do Programa de Navegação de Pacientes da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, a iniciativa nasceu na capital fluminense a partir de um apoio da farmacêutica Roche, do Global Cancer Institute (GCI) e do Instituto Avon, que posteriormente se tornou lei municipal ao apresentar bons resultados no diagnóstico precoce. “Onde a gente atua na atenção primária 100% dos casos de câncer eram de estágio inicial. Aumentamos a taxa de cobertura mamográfica de 14% para 88%. Cumprimos a lei dos 60 dias em 86% dos casos em 2020, plena pandemia”, aponta a médica.
Cada profissional de navegação consegue acompanhar cerca de 300 pacientes ao ano, sem o apoio de grandes tecnologias. Entretanto, Sandra reforça que a navegação por si só não pode ser vista como uma solução para todos os problemas. Em regiões sem estruturas mínimas de profissionais, equipamentos e centros de tratamento, a adoção desse sistema de coordenação do paciente pode acabar gerando mais problemas do que soluções.
A mastologista aponta que, no geral, existe mais de uma deficiência do sistema, por ser muito fragmentado, e que existem casos em que os problemas são mais simples de resolver. “Na maioria dos lugares é falha de comunicação dos prestadores, porque cada um está vendo só a sua parte e tem que fazer funcionar muito bem aquele local. Temos que funcionar em rede e isso não existe. Só prescrever algo a um paciente não garante que ela vai até a unidade”, explica Sandra.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.