Governo tenta não pagar piso da saúde e especialistas apontam risco de abrir precedente
Governo tenta não pagar piso da saúde e especialistas apontam risco de abrir precedente
Previsão é que orçamento seja 18 bilhões menor que o piso da saúde, garantido pela constituição. Novo arcabouço fiscal não previu transição.
O Governo Federal busca alternativas para não destinar o valor mínimo constitucional para a saúde, 15% da receita líquida corrente. O impasse surge após o fim do teto de gastos e a aprovação do novo arcabouço fiscal. Com a mudança das regras econômicas para o orçamento público, não houve a criação de uma lei de transição nesse sentido, e a gestão Lula afirma que custear o devido à saúde causaria impacto em outros ministérios. Estima-se que, caso não haja o pagamento do piso da saúde, ocorra uma redução de 18 bilhões de reais.
Além da saúde, a educação é outra pasta afetada, já que o previsto em Constituição é de 18% da receita líquida de impostos. De acordo com o Ministério do Planejamento e Orçamento, haveria um “apagão” no Governo caso seja obrigado a custear os pisos, que não foram previstos. A partir de 2024, o cumprimento é tido como certo.
Na última quinta-feira, 14, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 136/23, com o intuito de limitar os recursos para a saúde e educação ao previsto na Lei Orçamentária Anual. Ainda, busca repassar R$ 27 bilhões a estados e Distrito Federal, como forma de recompor a perda na arrecadação de ICMS sobre a gasolina no segundo semestre de 2022. O texto, de autoria do deputado Zeca Dirceu (PT-PR), seguiu para o Senado, onde aguarda votação.
A tentativa de não custear os pisos cria um ruído para a gestão, que afirma que irá consultar o Tribunal de Contas (TCU) para ter uma validação. No início de setembro, o Ministério Público que atua junto ao órgão já havia solicitado que o Governo não aplicasse os pisos constitucionais em 2023.
Especialistas ouvidos pelo Futuro da Saúde dividem opiniões. Parte deles defende que o Governo cubra o valor mínimo devido para a saúde e que não destinar o orçamento pode abrir um precedente para que outros entes federativos façam o mesmo. Por outro lado, fontes acreditam que a tentativa de aprovar o projeto no Congresso, com incentivos a estados e municípios, seja adequada, frente ao risco de “shutdown”.
“O questionamento ao Judiciário é possível, mas é cada vez mais improvável que se sagre vencedor, sobretudo após a decisão, por maioria apertada, em relação à ADI 5595. Ali o STF decidiu que o piso federal em saúde poderia sofrer reduções sem configurar afronta ao princípio da vedação de retrocesso. Infelizmente o cenário é dramaticamente preocupante para o SUS e para a educação pública”, alerta Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
Falta de previsão
Em 2016, quando o teto de gastos foi encaminhado pela gestão do ex-presidente Michel Temer e aprovado pelo Congresso, passou a vigorar uma nova forma de calcular o orçamento anual para saúde e educação, sendo equivalente ao valor previsto no ano anterior somado à inflação. Essa regra era considerada um dos entraves para aumentar de forma expressiva o orçamento destinado ao SUS.
“Para acabar com o teto de gastos não poderia simplesmente vir o arcabouço fiscal, teve que ter uma Proposta de Emenda Constitucional no final do ano chamada de PEC da Transição. Nela, foi estabelecido que uma lei complementar iria dispor sobre a nova regra fiscal. Só que essa PEC nada falou sobre os mínimos de constituições. Quando foi promulgado o arcabouço fiscal, automaticamente voltaram os pisos constitucionais que vigoraram antes. Faltou um planejamento”, explica o consultor de finanças públicas Murilo Viana, mestre em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Com isso, até agosto de 2023 vigoraram as regras do teto de gastos e, a partir de então, volta aos valores mínimos do piso da saúde e educação. Viana explica que seria necessário uma previsão nas propostas para que a transição ocorresse ao fim do ano fiscal, e não automaticamente.
O consultor de finanças públicas explica que, com a nova determinação e se nada for feito, o orçamento para a saúde terá que arcar com cerca de 18 bilhões de reais adicionais. No entanto, alerta que o Governo ameaça cortar de outros ministérios caso seja obrigado a pagar esse valor acrescido à previsão inicial.
“Nos últimos anos, sobretudo na pandemia, você teve uma busca incessante por parte de estado e municípios para poder afastar a obrigação de gastos dos mínimos constitucionais. Isso ao longo do tempo vai erodindo a base de financiamento de políticas públicas, de saúde e educação. A ação do Governo é um mau exemplo porque acaba diminuindo o rigor, abrindo precedentes aos entes federativos buscarem alegar motivos diversos para cumprir. Tem um problema de risco moral”, afirma Viana.
Visão da saúde
Para Carlos Ocké, atualmente técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e ex-diretor do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento (DESID) do Ministério da Saúde, o Governo tem buscado soluções e a atual gestão firmou compromissos para aumentar os gastos públicos per capita em saúde. Ele aponta que sob o teto de gastos, o SUS teve uma perda de 75,8 bilhões.
“O governo federal tem dado sinais que pretende construir alternativas para superar o quadro de desfinanciamento da saúde pública. Além dos R$ 20,7 bilhões adicionais da PEC da Transição, em cenário otimista, o relatório do deputado Zeca Dirceu do Projeto de Lei Complementar 136 prevê mais R$ 5 bilhões aos estados e municípios. No entanto, de fato, é necessário aumentar a participação relativa da União no total do gasto em saúde, mitigando a pressão sobre estados e municípios”, observa Ocké.
O economista, que também é ex-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) aponta que agora cabe à gestão Lula dialogar com a base de apoio para convencer que a proposta está correta “à luz da correlação de forças, diante do risco de setores da frente ampla contingenciar recursos do SUS”.
Por outro lado, Francisco Funcia, atual presidente da ABrES, afirma que a associação está se debruçando sobre a PLP, buscando analisar os valores e impactos da proposta, antes de qualquer medida ou ação na Justiça. No entanto, aponta que independentemente da avaliação, a posição da entidade é para que não se reduza recursos do SUS.
“A gente entende como não redução de recursos do SUS a garantia da regra que valia antes da emenda 95, a medida que foi suspensa. Tem que voltar a regra de 15% da receita corrente líquida, daquilo que foi efetivamente arrecadado. Essa regra que nós entendemos que deve valer e nos preocupa um pouco essa nova emenda”, afirma o presidente. Funcia também alerta que a preocupação, além da perda de orçamento devido, é o risco para os próximos anos, já que abre um precedente.
No último dia 16, a Frente de Luta pela Vida, organização que engloba diversas entidades da sociedade civil com foco na saúde, soltou uma nota reafirmando que é preciso garantir o mínimo constitucional, afirmando que “é absolutamente relevante o cumprimento do que está estabelecido como regra constitucional para o financiamento da saúde, que inclusive já aplicada efetivamente antes de 2018”. Ainda, apelam ao Senado para rejeitar a proposta.
Ponto de vista jurídico sobre o piso da saúde
Na avaliação de Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), apelar à Justiça, através do Superior Tribunal Federal, pode não trazer efeitos concretos, pois a corte entendeu que era constitucional emendas de orçamento que fixaram novos pisos para a saúde.
Ela lamenta sobre a atual discussão, e afirma que o atual Governo já dava indícios de que haveria “mais um constrangimento dos pisos em saúde e educação”. De acordo com a procuradora, “como o Executivo federal manteve um forte horizonte de contracionismo e austeridade, os pisos tenderiam a crescer acima dos limites do vulgarmente chamado ‘Novo Arcabouço Fiscal’. Infelizmente ficou claro, desde abril deste ano, que uma das principais rotas de ajuste ocorreria nos pisos”.
Ela ainda alerta que é preciso criar uma nova emenda constitucional para negar que haja flexibilidade aos pisos, em relação à proporcionalidade com a arrecadação federal, além de defender uma provável alteração no regime dos precatórios. Pinto alerta que pode ocorrer agravamento das filas de espera e má qualidade dos serviços de saúde, como consequência dos contingenciamentos.
“Quando o Executivo federal distorce as regras do jogo no meio do jogo, isso ensina aos Prefeitos e Governadores a tentarem fazer o mesmo, frustrando os respectivos pisos municipais e estaduais em saúde e educação”, conclui, reforçando que o precedente que se abre é um dos principais danos, além da perda de recursos.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.