Por que a preocupação com pesquisas inclusivas é fundamental para o futuro da saúde?
Por que a preocupação com pesquisas inclusivas é fundamental para o futuro da saúde?
Evento internacional da Nature realizado no Einstein, em São Paulo, discute estratégias para aprimorar a equidade na pesquisa em saúde; falta de representatividade limita potencial e acesso a novos tratamentos
A diversidade da população brasileira, fruto de uma importante miscigenação ao longo de décadas, carrega em si um ativo fundamental quando falamos em pesquisa em saúde. Diferentemente de países onde há uma população mais homogênea, o Brasil possui uma diversidade racial e étnica que não só pode potencializar a precisão de estudos clínicos, mas que também exige pesquisas inclusivas para que cada vez mais pessoas tenham acesso a novos tratamentos e sejam beneficiadas por seus resultados.
A necessidade de aumentar a representatividade nas pesquisas em todo o mundo, embora não seja recente, aparece com cada vez mais urgência nas discussões acadêmicas. Em um futuro que caminha para a medicina de precisão, essa baixa representação significa também perpetuar a falta de acesso a serviços de saúde para populações vulneráveis.
“Há um desafio quando um novo tratamento é testado em um país de alta renda, com uma população majoritariamente branca e masculina. O que você percebe é que ele geralmente não funciona bem em um perfil mais diverso”, disse Ben Johnson, editor sênior da Nature Medicine, durante o evento “Inclusive Health Research: Building Global Health Equity Together”, realizado pela revista científica Nature no Centro de Ensino Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo, no último dia 26. O encontro reuniu pesquisadores para discutir o impacto da falta de equidade na pesquisa em saúde.
“E não precisamos falar somente de novos tratamentos. Você tem tratamentos existentes que são conhecidos por serem eficazes, por exemplo, para pressão alta, mas, nas comunidades mais pobres, as pessoas ainda não têm acesso. Não é novidade que essa desigualdade existe, então nós realmente devemos direcionar essas inovações primeiro para essas pessoas”, afirmou Johnson.
O processo de tornar as pesquisas em saúde mais inclusivas, no entanto, demanda um forte compromisso de todas as áreas envolvidas. “É uma longa jornada, onde há muitos desafios, e que exige colaboração e, principalmente, confiança. Não é possível subir uma montanha sem confiança, da mesma forma que não é possível falar em saúde e equidade sem construir uma relação de confiança com as comunidades vulneráveis”, conclui Johnson, da Nature.
Por se tratar de uma mudança estrutural, essa construção de bases e conceitos pode trazer mais resultados se for uma preocupação já na formação dos pesquisadores. O Einstein, por exemplo, já possui um foco de geração de conhecimento com um olhar inclusivo por meio de projetos que visam a ampliar o acesso à saúde de comunidades vulneráveis e pelo incentivo à produção científica colaborativa, como aponta Fernando Bacal, vice-presidente de Pesquisa e Inovação da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.
“O ensino da pesquisa é um salto muito importante para a instituição. A formação da faculdade, que começou apenas com o curso de enfermagem e hoje já conta com medicina e diversas outras graduações, estimulou o crescimento também das nossas pesquisas. Hoje, temos uma cultura muito grande de gerar conhecimento, de fazer pesquisas de ponta e pesquisas além das fronteiras do conhecimento, disruptivas”, observou Bacal, durante o evento da Nature.
A busca por uma saúde mais inclusiva, tema do encontro promovido pela Nature, tem guiado o trabalho do Einstein desde a sua fundação. “Nós temos como parte da nossa cultura essa missão de fazer o Einstein atingir o maior número de pessoas, de levar a melhor medicina aos pacientes, e fazemos isso através de projetos próprios e parcerias com o setor público”, destacou Bacal. “Receber um evento desse porte pela primeira vez no Brasil junto da Nature, uma das maiores revistas científicas do mundo, para discutir um tema tão importante que é a equidade e a inclusão em pesquisa e cuidados de saúde, coroa uma trajetória que vem se consolidando.”
Inteligência de dados em prol de mais pesquisas inclusivas
Para compor o painel de debate, a Nature convidou Lorena Barberia, professora associada do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP), Cristiani Vieira Machado, vice-presidente de educação, informação e comunicação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Alceu Karipuna, fundador do Instituto Akari, e Juliane Oliveira, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (CIDACS) da Fiocruz.
Oliveira destacou que um dos principais desafios do desenvolvimento de políticas de saúde focadas em grupos em situação vulnerável é a ausência de dados dessa população. “Ainda há uma representação injusta quando falamos em dados de pessoas negras e indígenas”, afirmou a pesquisadora, que estuda modelagem matemática aplicada à epidemiologia de doenças infecciosas. Em sua fala, Oliveira apresentou o estudo “Coorte de 100 milhões de brasileiros”, realizado pela Fiocruz em parceria com a Universidade de Brasília (UnB).
O levantamento é celebrado porque, a partir dos dados coletados e das análises realizadas, é possível entender as necessidades de saúde de diferentes grupos sociais com maior precisão, principalmente pelo método misto que foi utilizado, olhando em retrospecto e também prospectando. Com essa ferramenta em mãos, torna-se viável mapear zonas com alto risco de prevalência da doença, traçar estratégias de prevenção, criar métricas de desigualdade social, entre outros.
Ela é fundamental para expandir o diálogo também. Entre os palestrantes do evento, foi consenso que a pandemia escancarou a dificuldade que a comunidade científica ainda tem de se comunicar com a sociedade de forma clara e acessível. “Nós precisamos criar indicadores quando falamos sobre dados, para que as pessoas possam compreender. É importante pensar em como traduzir para a população os resultados dos estudos realizados”, destaca Oliveira.
Atenção para a saúde indígena
Em sua apresentação, Alceu, que é professor de Medicina na Universidade Federal do Amapá (Unifap) e indígena do povo Karipuna, compartilhou sua iniciativa de realizar um intercâmbio de conhecimento entre os alunos e as comunidades indígenas locais na região do município de Oiapoque, destacando a importância de experiências como essa para a formação de novos profissionais.
“Assim como temos na cidade um sistema de saúde formado por clínicas, hospitais e equipes tradicionais, em uma comunidade originária também temos, ainda que formada por agentes diferentes: parteiras, pajés, dentre outras figuras. Ter esse contato permite ao futuro médico ter uma noção maior sobre o processo que o paciente indígena passou até chegar ao hospital”, destacou.
Ações como essa visam também a preservação das práticas indígenas e o seu diálogo com a medicina moderna. Inaugurado em 2020, o hospital universitário da Unifap tem como um de seus pilares justamente a integração. No hospital, há inclusive leitos reservados para pessoas indígenas. Além disso, Karipuna acredita que deve haver a inclusão de agentes das comunidades nas equipes multidisciplinares: “O hospital vem pensando em inclusão. Mas é uma questão complexa: imaginem uma parteira indígena em uma equipe com um ginecologista e um obstetra? Há desafios, mas conversas estão sendo iniciadas”.
De acordo com dados do Censo Demográfico do IBGE em 2020, o Brasil tem mais de 1,6 milhão de pessoas indígenas, distribuídas em 305 povos. Por isso, a representatividade cumpre um papel importante. “A confiança da comunidade de se ver representada no corpo médico da medicina tradicional não indígena é maior, eles sabem que serão compreendidos e terão suas práticas respeitadas”, completa.
Premiando novas perspectivas
O evento também foi o momento de reconhecer projetos de pesquisa inclusiva em saúde por meio do prêmio “Nature Awards – Inclusive Health Research”, que teve a participação de concorrentes inscritos de diferentes países. O primeiro lugar ficou com a iniciativa malaia HEAlth caRe needs of the Deaf (HEARD), que, através de um aplicativo para dispositivos móveis, permite que pessoas com deficiência auditiva tenham acesso a informações de saúde em língua de sinais. O projeto foi representado por Uma Palanisamy, professora de bioquímica na Jeffrey Cheah School of Medicine & Health Sciences, da Monash University Malaysia.
A iniciativa Canadian Collaboration for Immigrant and Refugee Health – Power of Sharing Newcomer Stories Program, do Canadá, foi a segunda colocada na premiação. O programa apoia pesquisas acadêmicas e publicações para ajudar a desenvolver a equidade na saúde entre as comunidades de refugiados em 22 países, além de trabalhar diretamente com grupos de refugiados no Canadá.
Dividiram o terceiro lugar os projetos More than a pill (África do Sul) – um documentário sobre como os ambientes podem ser capacitados para que mulheres jovens que vivem com infecções perinatais de HIV prosperem –; Caring for Carers (Austrália) – que desenvolve um programa de supervisão clínica para profissionais de saúde mental e apoio psicossocial que trabalham com sírios deslocados no noroeste da Síria e na Turquia, e com população rohingya em Bangladesh –; e The Maori and Bipolar Disorder Research Project (Nova Zelândia) – estudo que olha para condições de saúde mental do povo Maori.
Lynn Hendricks, professora na Stellenbosch University, que representou o projeto “More than a pill”, falou sobre a importância de desenvolver um documentário que deu visibilidade a uma dor negligenciada de um grupo de mulheres jovens com HIV.
“Fiz a pesquisa na minha própria comunidade, conversei com mulheres jovens que estavam muito deprimidas e isoladas por não poderem compartilhar com ninguém o diagnóstico e o seu sofrimento. Nós, do projeto, fomos as primeiras pessoas com as quais elas puderam compartilhar suas dores. Havia também a dificuldade de não revelar informações muito pessoais, para que elas não fossem identificadas, para não dificultar ainda mais a vida das participantes”, contou Hendricks.
O sentimento, hoje, é de gratidão. “Quando o filme saiu, choramos muito. Hoje, o maior prêmio é ver como elas se sentem mais seguras em falar sobre o assunto, como se sentem mais confiantes. Esse é o verdadeiro prêmio, ver como o projeto foi capaz de mudar a vida de pessoas reais”, completou.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.