Paulo Nigro, CEO do Sírio-Libanês: “O sistema de saúde está doente”

Paulo Nigro, CEO do Sírio-Libanês: “O sistema de saúde está doente”

O Futuro Talks dessa semana recebe Paulo Nigro, CEO do

By Published On: 27/03/2023
Paulo Nigro, CEO do Hospital Sírio-Libanês

Paulo Nigro, CEO do Hospital Sírio-Libanês

O Futuro Talks dessa semana recebe Paulo Nigro, CEO do Hospital Sírio-Libanês. O executivo está no cargo desde dezembro de 2021 com a missão de buscar o crescimento sustentável e com rentabilidade — sem abrir mão, segundo ele, dos valores centenários da instituição — em um cenário em que o sistema de saúde é fortemente pressionado por custos, inovações e novos modelos.

Durante a conversa, Nigro chegou a mencionar que “o sistema de saúde está doente e precisa se autocuidar”, apontando que o mercado total no ano passado não cresceu, mas se canibalizou, e por isso deve caminhar para um movimento de intercambialidade — conceito mais amplo do que a interoperabilidade. Ele ainda abordou diversos pontos que impactam todo o setor, como o panorama macroeconômico, a formação de ecossistemas, a fragmentação, as inovações e startups e a atuação de instituições privadas e filantrópicas junto à saúde pública em programas como o PROADI-SUS.

Ele também falou sobre os planos do Sírio, que envolvem o fortalecimento do que ele chamou de duas “torres” centrais, uma em São Paulo e outra em Brasília, e os investimentos em inovação por meio da iniciativa ALMA, inclusive com o objetivo de oferecer soluções para o mercado, além dos avanços na área de ensino, com a expectativa de início da graduação em medicina.

Confira a entrevista a seguir:

Estamos nesse contexto da saúde pós-pandemia, com mais espaço para planejamento, novas ideias, estrutura, inovação. Mas, ao mesmo tempo, o mercado da saúde está um pouco tenso. Como você vê esse momento?

Paulo Nigro – É um momento de transformação. Eu acho que o mercado de saúde é um mercado muito importante, muito grande, com milhares de prestadores de serviços no Brasil e talvez uma das poucas cadeias que não foram ainda consolidadas. Desde 2015, com a possibilidade de receber investimento estrangeiro, vemos essa rápida transformação acontecer, a formação de grandes grupos que provoca essa natural horizontalização do mercado. Vimos isso acontecer em outras cadeias. O que é interessante e que faz, talvez, essa transformação ser mais complexa é que, pela primeira vez, estou assistindo um mercado ser horizontalizado e verticalizado ao mesmo tempo. Você vê o fenômeno de grupos que são operadoras do mercado, ou seja, fontes pagadoras, se unindo a prestadores de serviço. Essa verticalização, na verdade, é a busca pela eficiência, todo mundo buscando ser mais eficiente com foco, principalmente, em custos. Esses dois fenômenos acontecendo ao mesmo tempo geram um frenesi, vemos uma ebulição. É um movimento um pouco caótico. Se Porter estivesse aqui conosco, ele teria dificuldade de montar e apresentar a matriz da concorrência, da competitividade, porque quem era antes fornecedor virou operador, quem era operador, virou fornecedor. Então existe essa movimentação um pouco caótica e desordenada, mas, como tudo na vida, isso vai se ajustando. Eu acredito que isso vai passar.

O quanto essa situação um pouco caótica impacta nesses planejamentos da saúde?

Paulo Nigro – Existe um impacto, sem dúvidas. Eu vou voltar na matriz de Porter. Se você se colocar no centro, você olha e fala assim “quem são os meus rivais? Quem são os entrantes?”. Entrantes tem muitos, não é? Como as healthtechs, que estão procurando entrar e substituir. Quem são os substitutos naturais? Quem são os teus fornecedores parceiros e quem são os teus clientes? Você percebe que isso tudo hoje está completamente fora de lugar. Aí você fala “eu vou planejar, poxa, eu tenho a oportunidade de crescer organicamente”. Então, quando eu crescer organicamente, eu busco aumentar meu market share e se o mercado não cresce, eu tenho que tirar de alguém. Eu posso crescer inorganicamente através de aquisições ou M&A. Nesse estado de coisas, fazer um orçamento anual ou plurianual é difícil, porque você não sabe como que essa cadeia está se organizando nos próximos anos, até dentro deste próprio ano. Esse grande movimento que ocorreu nos últimos dois, três anos começa a entrar em cheque agora, porque esses movimentos foram feitos com uma taxa de juros que estava aí girando em torno de 5%, 6%, que chegou até 2%. Só que essa realidade acabou e nós estamos hoje rolando dívida a 13%, 15%, dependendo do grau de atratividade do player. Como fica isso agora? Como que isso vai se reorganizar? A verdade é que não existe “free lunch” (almoço grátis). E aí o mercado cobra. Então os próximos anos serão de cobrança desse movimento para ver o que fica de pé e o que não fica.

No ano passado, o Sírio anunciou um investimento de R$ 800 milhões para ampliar a presença nas cidades que já atua. Qual a lógica por trás desse plano e desse investimento? Como vai ser essa ampliação?

Paulo Nigro – Que bom que você está perguntando, porque me dá a oportunidade de falar um pouco sobre a nossa visão estratégica. Eu e meus colegas, no comitê executivo do Sírio-Libanês, tivemos a oportunidade de passar por um momento de revisão estratégica e teve até uma grande empresa de consultoria global que nos apoiou a fazer um diagnóstico. Esse diagnóstico nos mostrou direções. Onde que o Sírio-Libanês pode expandir olhando para o futuro? Nós decidimos algumas coisas importantes, por exemplo, que nós vamos entrar no mercado de ensino de graduação. Nós já temos uma presença importante na saúde em pós-graduação, em mestrado, doutorado, residência, cursos profissionalizantes. Mas decidimos que existe uma oportunidade de nós transferirmos esse nosso conhecimento também para a graduação. Ainda esse ano nós vamos começar a lançar alguns cursos no segundo semestre e a ideia é lançar na área de ciências da saúde e ir aprendendo, porque é um novo segmento para nós e, se tudo der certo, nos próximos 2 anos, nós lançaremos também o curso de medicina. Então essa é uma vertente forte que está já decidida. Já temos um local definido.

Isso ainda não foi divulgado, não é? Você não quer me contar?

Paulo Nigro – Não posso, porque estamos na época de assinatura de contrato e tem sempre o risco se vai dar certo ou não. Na hora que assinar eu te conto em primeira mão. Essa é uma vertente. A outra vertente é na área de saúde populacional. Nós acreditamos que existe uma grande tendência de operadores de saúde começaram a olhar mais para a saúde mesmo. Hoje nós somos remunerados pela doença. É quase um paradoxo. Nós decidimos focar em saúde primária, em transferir conhecimento para corporações, autogestões e autarquias em como fazer com que a qualidade de vida dos seus colaboradores melhore através de um plano integrado, olhando o indivíduo a 360°. Isso está caminhando e está dando muito certo. A terceira vertente é a seguinte: as nossas unidades de saúde, hoje, estão muito bem ancoradas por duas torres principais, uma em Brasília e outra em São Paulo. Nessas duas unidades nós temos complexos que podem tratar todos os níveis de complexidade, até o nível de altíssima complexidade, falando em cirurgia robótica, em transplantes, em novas terapias, terapias gênicas. Nesses dois centros é onde também acontece a nossa área de pesquisa.

Nesse modelo de expansão nós não acreditamos que a saúde vai evoluir através de hospitais gerais. Nós não acreditamos que construir mais leitos de hospitais gerais é o futuro.

Você deve ter visto várias matérias falando no fenômeno da desospitalização. Acreditando nisso, como é o nosso modelo de expansão? É através daquilo que sabemos melhor, que são as nossas especialidades. O projeto de expansão está ancorado em três grandes especialidades que vão atrair as demais. O foco é cardiologia, oncologia e ortopedia. A partir daí, é aumentar a nossa capilaridade no país, centrada nessas duas grandes torres, onde podemos levar a especialidade Sírio-Libanês mais próximo do nosso cliente. Esse é o modelo de expansão: clínicas especializadas em um conceito “hub-and-spoke”, que nós vimos grandes operadores de saúde no mundo fazendo com sucesso. Então, nós nos espelhamos no que fez uma Cleveland Clinic que hoje está, aliás, fazendo isso fora dos Estados Unidos. Então essa é um pouco a história.

Está nos planos expandir para outras regiões do país além de São Paulo e Brasília?

Paulo Nigro – Olha, assim, tem muito a ser feito no entorno das duas torres. Se você colocasse a ponta seca do compasso e traçasse um círculo de 1.000 km, tem muito a se fazer porque são áreas de alta densidade. Se você pegar o estado de São Paulo, você tem uma densidade muito grande e as regiões pedem Sírio-Libanês. Se você for para Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, você tem ali uma densidade demográfica e poder aquisitivo de países, talvez maior que Portugal, maior que muitos países do mundo. E no nosso conceito, se nós levarmos uma medicina de qualidade nas especialidades, nós poderemos, pela distância, servir a partir das nossas grandes torres. Nós não precisamos criar novos leitos e novos centros cirúrgicos complexos. Eu acho que tendo ali uma boa capacidade diagnóstica e a possibilidade de fazer os atendimentos primários, secundários, os atendimentos de alta especialização, nós voamos o paciente de helicóptero, de avião, e trazemos para ter um super atendimento aqui nas bases. Esse é um conceito que não é nem de horizontalização e nem de verticalização, ele é uma diagonal. Buscamos eficiência usando melhor os nossos ativos, onde possamos, com facilidade, renovar o parque tecnológico, trazer inovação e alimentar isso com uma base muito eficiente de utilização. Assim, você não desperdiça recursos. Acho que essa é a razão por trás.

Algumas consultorias já falaram que o hospital não vai ser mais como víamos antes, em que todo o atendimento ficava centrado ali. Imagino que essas clínicas vão ter a infraestrutura e tudo o que for necessário para atender esses pacientes.

Paulo Nigro – Sim. A ideia é que possamos acolher o paciente com a mesma qualidade e segurança que o Sírio-Libanês oferece hoje em São Paulo e em Brasília. É muito interessante ver como que esse processo evoluiu na nossa primeira experiência fora de São Paulo. Foi fantástico porque nós começamos em Brasília exatamente com uma clínica de alta especialidade em oncologia. Isso foi puxando a cadeia até chegarmos em um hospital geral. Então hoje, em Brasília, nós temos sim o hospital geral, mas a ideia era poder ter no Centro-Oeste uma base que ficasse mais próxima da região do Nordeste e do Norte e ali é um escoamento natural. E São Paulo é um escoamento natural do Sudeste e Sul do Brasil.

Temos visto essa tendência de as operadoras entenderem o papel dessa gestão da saúde populacional e olharem mais para a saúde e menos para a doença. Como o Sírio está vendo isso? Quais são as iniciativas que vocês já têm nesse contexto? E como que você vê essa evolução do mercado?

Paulo Nigro – O Sírio já tem 200 mil brasileiros que estão engajados na nossa plataforma de saúde populacional. Quando eu falo plataforma, não é apenas a plataforma digital, é todo um ecossistema que foi desenhado para poder servir essas populações que, via de regra, estão dentro de grandes corporações. Nós temos clientes importantes que são grandes empresas no setor financeiro, no setor industrial. Temos também uma autogestão muito importante, que está engajada em saúde primária, secundária e terciária, sendo que toda a primária é feita através da nossa plataforma digital. Se um colaborador está lá no Centro-Oeste, em algum lugar, e tem um filho que está com febre, ele pode acessar um médico do Sírio-Libanês por telemedicina. Nós temos já dados estatísticos que mostram que 85% dos casos foram resolvidos na primeira consulta. Então imagine o quanto que isso alivia todo o sistema, toda a cadeia. A qualidade do serviço e a pertinência que isso está gerando. Você não faz o “overuse” (em tradução, uso excessivo) do sistema em diagnóstico, em internação, muitas vezes com internações que não tem nada a ver. Esse fato dos 85% chamam atenção. Você evita uma família de sair de madrugada para um pronto atendimento. Essa plataforma está evoluindo e estamos lançando uma nova versão agora em abril.

A plataforma tem um nome?

Paulo Nigro – A plataforma chama-se Adma, que é o nome da nossa fundadora. Ela tem vários recursos em que o colaborador dessa grande corporação poderá também olhar para planos de nutrição, de atividade física, estamos buscando incorporar também a parte de saúde mental. Estamos desenvolvendo linhas de cuidado específicas que vão estar disponíveis na plataforma, por exemplo, para câncer de mama, para que as mulheres possam, a grandes distâncias, fazer o seu autodiagnóstico. Uma vez identificando alguma anomalia, tem aí a linha de cuidado com o especialista na plataforma que vai cuidar dela o tempo todo, do começo até o fim. Então acho que é isso que estamos buscando. Eu usei a palavra pertinência, porque ela é muito importante, eu aprendi essa palavra de verdade quando entrei no mundo da saúde. Se tem uma coisa que eu me orgulho do Sírio-Libanês é que isso é levado a sério. Nós somos fundados por senhoras, há mais de 100 anos, que tinham valores muito fortes. Esses valores permearam ao longo da gerações e a nossa diretoria, o conselho deliberativo, ainda é formado por senhoras descendentes, na sua maioria, das fundadoras, e que mantém esses valores fortes. A pertinência faz parte de uma coerência com esses valores fundamentais. Muitas vezes, quando você olha sob a ótica do negócio, nós não estamos fazendo a coisa mais lógica. Mas quando olhamos para a ótica daquilo que é o nosso propósito, é coerente e congruente, e nós temos o maior orgulho de poder fazer isso todos os dias.

Você trouxe que, por exemplo, na saúde populacional, na plataforma vocês tem 200 mil vidas. Pensando no sentido do corpo clínico do Sírio, ele dá conta de atender essas pessoas? E nesse contexto, qual é a importância da formação?

Paulo Nigro – Dá sim. O que eu estou muito feliz de ver é que estamos conseguindo, cada vez mais, médicos aderirem a essa plataforma. A adesão é muito grande.

A minha pergunta vai muito no sentido da cultura, porque imagino que deve ser difícil formar essas pessoas.

Paulo Nigro – Não é fácil, mas é todo um processo de formação. Como eu comentei antes, nós chegamos até a residência médica. A residência do Sírio está crescendo e quando formamos um residente, esse pode ser um caminho natural de formar uma jornada, um roadmap para esses médicos ganharem robustez, aumentarem suas clínicas próprias. Nós incentivamos que eles tenham as suas clínicas e que eles possam manter o vínculo com a instituição. Aliás, com a graduação, vamos ampliar ainda mais essa jornada.

Então, hoje na saúde populacional temos um corpo clínico robusto e experiente. E tem que ser experiente, porque queremos aumentar cada vez mais esse índice de resolutividade na primeira consulta. Nós medimos esse índice, acompanhamos e quando vemos isso crescendo, é uma alegria.

Isso também impacta nos custos ao sistema, não é?

Paulo Nigro – Olha, pensando no futuro, eu não vejo outro caminho. Eu estive, há pouco tempo, na Alemanha, participando de um workshop, juntamente com o nosso CMO. Fomos aprender um pouco o que está acontecendo no mundo e nós vimos que Israel é um país que, hoje, praticamente, a gestão da saúde é feita através do conceito de saúde populacional. Lá são 4 empresas que praticamente cobrem 100% da população. Você vai me falar “a população é pequena”. Ok, é verdade, mas estas empresas estão sendo premiadas pela qualidade do atendimento, resolutividade em primeira consulta, diminuição do uso da máquina do sistema. Em outras palavras, elas estão sendo premiadas pela qualidade de vida e pela saúde. Não é o modelo fee for service tradicional que se remunera pela doença e pelo tratamento, onde quanto mais gente internada tiver, melhor. Essa lógica não ficará de pé no longo prazo. Vamos continuar tendo estruturas de hospital? Sem a menor dúvida. Se eu quebrar uma perna, eu tenho que ir para o hospital, não tem jeito. Isso não quer dizer que uma coisa vai substituir a outra. Eu acho que uma coisa vai conviver com a outra em uma harmonia em que aumentando a orientação por dados, a interoperabilidade entre os vários prestadores, você vai ter um maior conhecimento desse indivíduo onde quer que ele vá buscar o serviço, e você vai poder determinar um percurso mais coerente, mais pertinente e de baixo custo. Assim você vai saindo dessa espiral negativa que a saúde se encontra.

Em qual grau de maturidade estamos no contexto de sistema de saúde, nesse sentido de olhar para a saúde dessa forma diferente?

Paulo Nigro – Eu acho que nós temos ótimas iniciativas. Sou otimista. Eu vejo no próprio SUS muitas iniciativas interessantes. Nós fazemos parte do sistema Proadi-SUS e tenho muito orgulho do que nós e o SUS estamos fazendo juntos. É impressionante, pena que isso não é tão divulgado. Nós temos, por exemplo, uma iniciativa no SUS de melhorar a eficiência nas emergências no país. Chama-se Lean nas Emergências. É impressionante o resultado, como conseguimos transferir conhecimento e como isso é absorvido, foi maravilhoso. Também vejo boas iniciativas na iniciativa privada. Admiro algumas verticalizações que estão sendo feitas e que estão trazendo um cuidado melhor e acesso a baixo custo.

Agora, se você me falar “em uma escala de zero a 10”, nós estamos abaixo de cinco. Tem um longo caminho a ser percorrido e esse sistema é todo fragmentado. A interoperabilidade de dados é um caminho fundamental, é como pavimentar uma estrada.

No ano passado e no ano retrasado, a grande palavra que ouvíamos com todos os gestores era ecossistema. Agora, parece que a palavra da vez é interoperabilidade. Como você vê esse assunto e como o Sírio está se preparando?

Paulo Nigro – É porque não existe ecossistema se os elos desse sistema não se conversarem. Eu sou muito apaixonado pelo tema. Eu já falo em interoperabilidade desde a época que eu estava na indústria farmacêutica. Na época, como indústria farmacêutica, tentei criar alianças para que pudéssemos trocar dados, até para que eu pudesse alimentar o meu processo de inovação com dados mais corretos para as populações que eu estava querendo atender. Desenvolver uma droga, olhando, por exemplo, para a mulher diabética de 45 a 65 anos. Olha, se eu quisesse ter essa informação, era impossível. Ainda hoje é muito difícil. Quando cheguei no Sírio, falei “casa de ferreiro não pode ter espeto de pau” e juntamente com a nossa área de infraestrutura de TI e a área de inovação, começamos a conversar sobre isso. Nós fizemos um roadmap para o nosso processo de inovação e o primeiro passo que surge é: antes de mais nada, nós temos que criar o nosso data lake, que agora estamos batizando de health lake. Antes de pensar em qualquer coisa, você precisa criar esse grande pote onde todos os dados caiam. Se você pensar, é suficiente que os dados caiam nesse pote? Não! Esses dados têm que cair de uma forma padronizada para que eu possa pescar neste pote o dado que eu preciso e que eu possa usá-lo sem ter que ser retrabalhado no meio do caminho. Isso foi um movimento muito interessante porque a partir daí, no centro da nossa estratégia, criamos o que chamamos de núcleo de inteligência de dados e inovação, o NIDI. O primeiro trabalho é que todos os dados novos gerados, hoje, já estão sendo gerados em uma linguagem universal. Se o governo quiser levar para frente o eHealth, vai ter que utilizar essa mesma linguagem. Essa linguagem universal vai nos permitir começar a desenvolver sistemas e produtos que sejam orientados por dados, é o famoso data driven. Por que isso tem algumas etapas? Porque, erroneamente, muitas pessoas pensam que digitalizar processos é a transformação digital. Não é suficiente, porque você pode digitalizar um processo que não vai conversar com outro. Por exemplo, a nossa unidade no Itaim, se ela não tiver com dados interoperáveis com a nossa matriz, eles vão ficar lá encastelados. O que nós estamos vendo é que saímos de um ambiente analógico, passamos por um ambiente digital e quando criamos esse health lake, passamos para um hospital, para um serviço, orientado por dados. Essa é a jornada.

Isso adicionou processos? Foi difícil, em termos de gestão, colocar isso dentro do sistema? O que falta também para digitalizar os dados que já estão lá?

Paulo Nigro – É desafiador, é uma mudança cultural. Não adianta você só ter o sistema, você precisa treinar quem está usando-o para que esses dados possam chegar e ser armazenados dessa maneira uniforme. Esse processo começou no ano passado e está caminhando muito bem. Nós estamos fazendo conversão de velhos sistemas em uma nova linguagem que é interoperável. O SAP S4 Hana, SAP na nuvem, foi uma implementação que levou um ano. É uma enorme transformação. Quase uma centena de pessoas que participaram nessa implementação que se tornaram o superusers e que agora estão operando já o sistema há um mês e pouco dentro de uma nova plataforma. Todo o backoffice do Sírio, os projetos de compra, os processos de planejamento, de business intelligence… hoje já está tudo em SAP e já nasceu nessa linguagem que eu comentei com você. Com isso nós desligamos vários sistemas que eram como uma colcha de retalhos. Ao mesmo tempo, para você implementar um SAP, você tem que fazer um enorme saneamento dos dados cadastrais, de tudo. Então nós matamos vários coelhos em uma cajadada só e ficamos com a interface. Para o paciente, ficamos com o sistema Tasy, que é implementado com sucesso há vários anos, e toda a parte de gestão no SAP. Essa era uma etapa muito importante para que nós promovêssemos a mudança cultural. Por quê? Porque essa nova plataforma, ainda mais que é na nuvem, preza a orientação por processos. Quando você insere um dado no começo do processo, quando o nosso cliente preenche a ficha, os mesmos dados vão até a hora da alta, essa é a jornada. Não é simples, mas tem que ser feito. E quando é feito com determinação e por uma razão maior, a turma engaja. Ontem, aliás, nós realizamos uma cerimônia de celebração de todos que participaram. Os destaques ganharam um prêmio, todos que participaram ganharam uma Alexa de presente, foi um dia lindo. Eu acho que quando você sabe onde você quer chegar, fica mais fácil.

No fim do ano passado, o hospital anunciou o lançamento de uma nova marca para o desenvolvimento de tecnologia e inovação para a saúde, que é a Alma. Como isso vai funcionar?

Paulo Nigro – São jovens brilhantes que estão hoje dirigindo a inovação do Sírio. Eles começaram a desenvolver produtos e chegamos à conclusão de que esses produtos são tão interessantes que não podem ficar circunscritos ao Sírio. Achamos que eles podem ser oferecidos para o mercado. A ideia é criar uma vertical de negócios baseada em inovação que os produtos que são desenvolvidos, com a orientação do nosso corpo clínico, da nossa área assistencial, que tem aquela vivência. É muito esquisito falar em inovação, e eu oferecer inovação no mercado como o hospital Sírio-Libanês, não é?

Nós achamos que precisava de uma nova marca que identificasse esse momento e que identificasse o trabalho que é feito em Open Innovation, que é feito na nossa garagem tech. Foi aí que surgiu esse movimento que veio de baixo para cima para criar uma nova marca, uma nova vertical.

E tem algum case específico, algum produto que vocês já desenvolveram e você acha que isso pode de fato seguir essa lógica de oferecer para o mercado?

Paulo Nigro – São vários. Tem algumas coisas que estavam lá dentro do Sírio que têm um apreço grande pelo corpo clínico e assistencial. Eles sempre nos provocam falando “poxa, por que vocês não levam isso? Eu não trabalho só no Sírio, eu trabalho no outro hospital, vai lá e oferece isso”. O nosso prontuário eletrônico, por exemplo, é muito forte. Esse é um dos produtos que agora está se tornando digital, que vamos poder oferecer no celular também e que queremos levar para o mercado. Tem um outro também que é o Sofia, um sistema comandado por voz, tem uma cognição, baseado em inteligência artificial. Ele nasceu na tua área, no jornalismo, para jornalistas que estão lá vendo uma cena, algum evento que está acontecendo e ele está descrevendo a cena. Já tinha sido desenvolvido com essa pegada e aí tiveram a ideia “poxa, por que não desenvolvemos todo o jargão médico nessa plataforma?”. Dessa maneira, imagina, o médico acabou de ver um paciente e ele não precisa ir lá na estação e ficar digitando. É uma perda de tempo, para um médico, ficar ali digitando. Imagina que ele acabou a visita, ele pode falar no microfone, todos os dados interoperáveis já são padronizados na fala, já entram nas caixinhas certas, isso é levado para o sistema, já gera a prescrição. É um grupo jovem brilhante que trouxe essa startup, nós incubamos ela dentro do Sírio libanês e eles hoje já estão oferecendo para o mercado.

Isso é usado normalmente, por exemplo, de rotina dentro do Sírio?

Paulo Nigro – Está sendo pilotado já por um grande grupo de médicos, tanto em São Paulo como em Brasília. O que está sendo feito agora é o refinamento da linguagem, é como aprender a falar. Não é mais um piloto, agora já é uma escala importante. E tudo isso, quanto mais é usado, a inteligência artificial tem essa beleza, mais ele retroalimenta o sistema e mais perfeita vai ficando a cognição. Então por isso que nós não guardamos só para nós. Isso está sendo oferecido no mercado, porque quanto mais usar, melhor ele vai ficar. Esse é um produto que pode ser global, depois ele pode ser adaptado para a língua inglesa, para a língua espanhola, e o Sírio tem participação nesse negócio através da Alma Sírio-Libanês.

Há espaço no mercado para mais trocas além dessas focadas em inovação? Como você mesmo disse, estamos nesse contexto da saúde que é extremamente fragmentado, mas para essas mudanças acontecerem, talvez seja preciso conversar um pouco mais. Como você vê isso?

Paulo Nigro – Tem espaço sim. Vamos pegar o exemplo do mercado financeiro. O mercado financeiro brasileiro é fantástico, o PIX é algo que grandes países do Primeiro Mundo não conseguiram fazer, o que não deixa de ser uma evolução também na confiança do sistema, nas regras de utilização dos dados, no LGPD. Então nós temos que seguir os bons exemplos brasileiros. Na nossa ideia de expansão, quando eu comentei com vocês da nossa expansão geográfica, nós vamos precisar nos relacionar com parceiros locais. Nós não teremos condição de suprir tudo quando chegarmos em uma nova cidade. Nós vamos ter que nos apoiar numa rede local, com uma operadora de saúde local, com um prestador de serviços em diagnóstico, com players.

Nós já temos conversado com a indústria farmacêutica e estamos caminhando em uma direção de maior transparência e troca. Essa convivência quase simbiótica é o caminho e nós vimos isso acontecer em outros setores.

Isso não acontecia muito antes da pandemia ou é impressão minha?

Paulo Nigro – Eu acho que você está certa. Acho que a necessidade obriga a um pensamento diferente, uma maior abertura. Você vê que o sistema de saúde está doente. No ano passado, por exemplo, o tamanho total do mercado de saúde não cresceu. O que está havendo é uma canibalização interna no sistema. Então eu acho que caminhamos sim para uma maior intercambialidade, que é mais do que a interoperabilidade. Por que não pensar em modelos mais colaborativos, em compartilhamento de risco e oportunidades, por que não? Quando eu olho a foto de um condomínio de classe média ou classe alta por cima, eu vejo um monte de piscinas. Cada casa com o seu custo, com um piscineiro, com o desperdício de um recurso maravilhoso que é a água. Será que os vizinhos não pensaram em construir uma piscina no meio e compartilhar? Já pensou que utilização melhor de recursos nós teríamos? Eu vejo toda semana anúncios de novas estruturas, de gente se unindo para criar novos hospitais gerais. Eu vejo isso como um desperdício, tem leito sobrando no Brasil. Para que vamos construir mais leitos? É aquela cabeça de “eu preciso fazer para mim”. Esse tempo tem que acabar.

Pensando em tudo que você trouxe, como o SUS entra nesse contexto? Como a saúde privada consegue ajudar os SUS, para além do Proadi?

Paulo Nigro – Tem algumas iniciativas no Brasil que são admiráveis. Eu que venho do mundo farmacêutico, o programa das PDPs é impressionante. Tivemos algumas perdas em um país como o nosso. A química fina, nós perdemos, não temos a produção de princípios ativos aqui, isso está muito concentrado na Ásia. A base da indústria farmacêutica, nós perdemos. O drug discovery também. Nós estamos longe do eixo, onde acontecem as descobertas. São investimentos muito grandes, grupos grandes que lideram isso. Para o Brasil poder dar maior acesso a tratamento e a drogas de complexidade, drogas biológicas e tudo mais, o governo brasileiro criou o programa de PDP que você, através de um laboratório público e uma indústria privada, promove a transferência tecnológica de um grande grupo internacional para esses parceiros estabelecidos e oferecem uma droga similar para o governo brasileiro a um custo muito mais baixo. Quando isso começou, pouca gente acreditava. E está funcionando, é uma realidade no Brasil que induz conhecimento que fica retido não só na indústria privada, mas também no laboratório público. O Proadi não deixa de ser algo parecido. Os hospitais de excelência se engajam em programas em que você tem, por exemplo, razões epidemiológicas ou tratamentos de alta complexidade que hoje em sua maioria são judicializados, ou seja, sangram os cofres públicos. Eu vejo que o sistema Proadi tem que ser potencializado. Tem que ir além do Sírio e dos outros 5 hospitais que estão engajados. Ele pode, sim, ter maior capilaridade com instituições bacanas que tem pelo Brasil e a partir daí ter maior colaboração. Eu acredito na interoperabilidade, no eHealth. Eu acredito que o brasileiro que chega em qualquer posto de saúde deveria ter os seus dados conhecidos e isso daí por si só já teria um ganho enorme no tempo de internação, tratamento e tudo mais. Nós do setor de saúde podemos colaborar mais com o governo na instituição dessa grande rede, em que você vai ter o papel da saúde pública e o papel da saúde complementar unindo forças.

Nesse contexto que você trouxe desde o começo da nossa conversa, como você vê os próximos passos do Sírio em 2023?

Paulo Nigro – Nós estamos com iniciativas fortes e próximas das operadoras. Queremos buscar um maior nível de cooperação, de transparência. Queremos compartilhar mais risco, mais oportunidades. Com isso, temos tido uma ótima resposta dos importantes players. Vemos uma proximidade maior, novos produtos têm surgido que envolvem o Sírio em que com o nosso papel, podemos ajudar esse sistema a ficar mais robusto e mais forte. E como eu falei, na área de ensino e pesquisa, o Sírio tem muito para contribuir. Tem um conhecimento nos nossos colaboradores, nos laboratórios, que estamos nos abrindo mais para a indústria. Essa semana eu estive com o grupo de liderança de duas indústrias farmacêuticas e queremos que eles tragam mais a pesquisa primária, pesquisa básica para o Brasil. Nós estamos nos oferecendo para fazer não só estudos clínicos fase 3 e 4, que é o que hoje tipicamente o Brasil participa, mas trazer também em drug discovery, em estudos pré-clínicos. Nós temos essa competência. A pesquisa alimenta o ensino, conseguimos melhorar o ensino, trazer uma pegada mais inovadora, com uma orientação mais voltada para a resolução de problemas, algo mais prático, mais aplicado, menos teórico, usando o corpo de colaboradores do Sírio. O ano de 2023, para nós, é um ano incrível em que isso tudo vai acontecer. E queremos chegar mais perto do nosso público levando qualidade Sírio-Libanês para o território nacional. Com isso, se tudo der certo, poderemos levar mais conhecimento também para regiões mais distantes de São Paulo e Brasília.

Quais pautas você acha que precisamos ficar de olho em 2023?

Paulo Nigro – Eu acho que uma delas é uma pauta de atenção para um ano que promete taxas de juros altas, restrição ao crédito e um endividamento alto no setor. As grandes empresas do setor vão ter que provavelmente readequar suas estruturas de capital e muitas vezes pensar em readequar suas estruturas societárias. Eu acho que nós vamos ver um outro tipo de parcerias, de fusões, do que apenas o que vínhamos observando de consolidação e verticalização. Eu acho que uma outra pauta interessante será acompanhar esse novo governo que me parece que começou muito bem com a indicação de uma ministra de altíssima qualidade e seriedade. Tive a chance de conhecer a ministra Nísia e vejo o quanto que ela está querendo chegar próximo também da iniciativa privada e buscar a colaboração. Então acho que essa é uma pauta quente, porque já vemos alguns bons sinais acontecendo. E a pauta da inovação, que vai acelerar. Telemedicina é algo que o Sírio já faz desde o ano 2000. Por questões regulatórias, entraves diversos políticos, só na pandemia que isso veio à tona. Com isso, você vai ver uma aceleração de tudo o que nós conversamos aqui. Você vai ver novas terapias chegando, terapias que vão ser mais assertivas, a tal da medicina personalizada.

Natalia Cuminale

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, com as reportagens, na newsletter, com uma curadoria semanal, e nas nossas redes sociais, com conteúdos no YouTube.

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NATALIA CUMINALE

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