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Parcerias público-privadas podem avançar na saúde, mas demandam vontade política e empresarial

Setor privado pode colaborar mais com a saúde pública, mas é preciso coordenação do governo e mudanças nas políticas.

               
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Parcerias entre setor privado e saúde público podem contribuir com acesso e qualidade do SUS.

Ao longo dos últimos meses, o Ministério da Saúde tem estreitado os laços com a saúde suplementar e o mercado, promovendo discussões e participações de eventos, onde abordaram a importância das parcerias público-privadas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Foram considerados os primeiros grandes acenos da gestão Lula nesse sentido, que tem como um dos carros-chefes a construção do Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Apesar de iniciativas como o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), a importância de hospitais filantrópicos e santas casas no atendimento do SUS e as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), o setor afirma que é possível fazer mais, colaborando com a assistência à população e a melhora de indicadores de saúde.

Especialistas ouvidos por Futuro da Saúde entendem que é possível avançar. Mas para isso, é preciso que haja vontade política e empresarial, mudanças na regulamentação e avanços nas políticas públicas. Ainda, é preciso que haja uma melhor coordenação com a saúde suplementar para que os sistemas atuem em consonância.

Do ponto de vista da indústria, através da pesquisa, desenvolvimento e produção de medicamentos, até chegar a negociações com o Ministério da Saúde para aquisição de produtos, é preciso também avançar na segurança jurídica para as empresas e, de acordo com a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), melhorar as regras para que o país possa ser mais atrativo aos estudos clínicos.

Com 203 milhões de pessoas, o SUS é considerado o maior sistema público de saúde do mundo. Mas para que ele possa melhorar o atendimento à população, aprimorando a qualidade dos serviços e ampliando o acesso, a participação do setor privado deve avançar ainda mais.

“Deve-se criar uma comissão com participação dos estabelecimentos privados, operadoras, usuários e gestores do SUS. Precisamos de uma instância que olhe para a relação público-privada e coloque os diferentes interesses que estão em jogo para que consiga ter esse espaço de criação de regras, que sejam funcionais para o sistema de saúde funcionar de maneira coordenada”, analisa Adriano Massuda, pesquisador, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV) e membro do FGV-Saúde.

Planos de Saúde

As operadoras de planos de saúde, ao lado de hospitais, laboratórios e clínicas, apesar de estarem na ala da saúde privada, têm um importante papel para a saúde pública. Ao prestar atendimento aos 50,7 milhões de beneficiários, eles desafogam o SUS, possibilitando que o sistema tenha mais capacidade de atender a população que não possui um convênio.

“O crescimento da saúde suplementar é diretamente proporcional ao PIB. Quando o Brasil enriquece, há geração de emprego e o número de beneficiários cresce. Hoje quase 80% dos planos são coletivos. É esse público que está conseguindo ter plano”, aponta Breno de Figueiredo, presidente da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde).

Contudo, a crise na saúde suplementar tem gerado o risco de que, com os atuais modelos e regulamentações, as mensalidades subam ao ponto de que pessoas e empresas não consigam custear, ou ainda, em um cenário mais catastrófico, as operadoras quebrem. Ambas as hipóteses ameaçam levar ainda mais pessoas ao sistema público, o que poderia gerar uma demanda não esperada de pessoas nas filas por atendimentos.

Questões como a lei do rol da ANS colocam mais pressão na situação, assim como o receio das operadoras sobre o projeto de lei que quer mudar as regras sobre os planos de saúde. Por isso, essas empresas têm tentado reduzir custos e desperdícios, como combatendo fraudes no setor, mas cobram para que haja uma maior flexibilização das regras para criarem novos produtos – mais baratos e que possibilitem aumentar o número de beneficiários.

“Ainda estamos em um modelo de atenção às doenças infecciosas e com a população envelhecendo, com muito custo de alta complexidade e internação. Com isso, não há espaço para investir na atenção primária. Dá para mudar. Precisa conscientizar, investir e ter maturidade empresarial de que a única forma de fazer o setor ser longevo é fazer essa transição”, disse Figueiredo.

Alinhamento com o Ministério da Saúde

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem buscado soluções para melhorar o cenário do setor, como a proposta de criar um regramento especial para testar um produto com foco na atenção primária e gerenciamento de cuidado por uma equipe multidisciplinar. A ideia é que as operadoras possam reduzir custos com assistência e melhorar a gestão da saúde dos pacientes.

Adriano Massuda, da FGV-Saúde, vai além. Em sua visão, é necessário que haja uma atuação do Ministério da Saúde junto à ANS para que a saúde seja vista como uma única coisa, em que as operadoras também possam contribuir com a redução de indicadores para doenças e mortes.

“A saúde suplementar tem que ter um papel de cooperação com as políticas públicas, ainda mais à medida em que ela é subsidiada pelo governo. Você tem isenção fiscal, que é um estímulo para o setor. Deveria estar mais alinhada às políticas públicas de saúde para ter um benefício coletivo, e não só o individual de quem paga um plano”, analisa Massuda.

O pesquisador aponta que o controle e prevenção de doenças crônicas, redução de partos cesáreas, ações contra o tabagismo e outras ações que já são trabalhadas pelo Ministério da Saúde deveriam ser seguidas também pelos planos de saúde. Mas para isso, é preciso que haja uma coordenação alinhada ao Ministério da Saúde, principalmente porque os usuários transitam entre os sistemas ao longo da vida. 

Adriano defende que haja uma “terceira instância” onde haja esse diálogo entre as operadoras e o Ministério da Saúde, para que haja uma maior cooperação com a saúde coletiva. “A ANS só regula direito dos consumidores que têm planos privados e é bastante importante fazer isso. Mas ela nunca fez um papel de coordenação de sistema. Falta o governo formular a política para que a ANS possa executar esse papel”, afirma. Para isso, aponta que o caminho é o diálogo.

Hospitais públicos com apoio de recursos privados

Grandes hospitais públicos, como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), não sobrevivem apenas do financiamento público. Um terço do orçamento anual de 2022, cerca de 1,6 bilhão de reais, foi proveniente da iniciativa privada.

“O setor privado pode ajudar na perspectiva daqueles que captam recursos da sociedade e trabalham com mais agilidade o recurso público. Nós trazemos empresas farmacêuticas para desenvolver pesquisas aqui dentro, com a fundação gerenciando recursos e trabalhando com eles de maneira mais otimizada, fazendo o hospital funcionar”, explica Arnaldo Hossepian, diretor-presidente da Fundação Faculdade de Medicina (FFM), instituição que colabora com a sustentabilidade do Complexo.

Quando a indústria precisa realizar estudos clínicos de novos medicamentos, se constrói uma parceria com o hospital e a faculdade, para que sejam realizados dentro da estrutura de um dos maiores complexos de saúde da América Latina, referência dentro e fora do Brasil. Hossepian aponta que para qualquer doença ou condição, existe um caso no HC.

O dinheiro também chega através de doações de pessoas físicas e jurídicas, mas a pesquisa tem sido a maior porta de entrada. Contudo, o hospital tem buscado se tornar referência em outro segmento, através do InovaHC, o Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) no Hospital das Clínicas. Empresas têm buscado o setor para realizar testes nessa área – que em alguns casos retornam com doação de equipamentos de alto custo.

“Quando se fala em saúde pública em um país no Brasil tudo demanda investimento. No HC, se pudermos ter um suporte privado para ampliar a capacidade de trazer novas ferramentas para que o hospital desenvolva essa excelência que temos aqui, seria importante. É um trabalho constante de divulgação sobre o quanto esse complexo merece ser bem cuidado”, disse o diretor-presidente.

Hospitais privados apoiando o serviço público

“O Brasil é um dos poucos países que têm um sistema de saúde forte como o SUS, universal e integral, para todos, e um sistema privado também forte, que cobre 50 milhões de pessoas. O que acaba acontecendo no Brasil, diferente do resto do mundo, é que há uma diferença muito grande entre a capacidade de financiamento do privado em relação ao público”, explica Adriano Massuda, da FGV-Saúde.

Pensando nisso, alguns projetos têm buscado reduzir o abismo que há entre os sistemas, como o PROADI-SUS. Seis hospitais privados de referência, em parceria com o Ministério da Saúde, realizam capacitação de recursos humanos, pesquisa, avaliação e incorporação de tecnologias, gestão e assistência especializada, em troca de renúncia fiscal.

“A importância da saúde suplementar nos projetos executados pelo PROADI é possibilitar essa troca. Se as instituições avançaram muito pelo contexto e pelas possibilidades em questões de segurança do paciente e qualidade assistencial, por que não contribuir em pelo menos avançar e melhorar processos que podem nos levar a erros já superados?”, explica Ana Paula Pinho, diretora executiva de Responsabilidade Social no Hospital Alemão Oswaldo Cruz (HAOC).

Dados do programa apontam que 167 projetos estão em andamento. Até o momento, foram realizados  mais de 931 mil atendimentos, 108 mil profissionais capacitados, mais de 7 mil profissionais envolvidos com pesquisa e 73 mil envolvidos com projetos ligados à gestão. A ideia é que eles resolvam gargalos de difícil realização pelo próprio SUS. No âmbito do projeto TeleNordeste, por exemplo, que leva assistência médica especializada à região por telemedicina, foram mais de 27 mil teleconsultas envolvendo 5 hospitais privados.

“Temos demandas e necessidades em saúde no Brasil, principalmente pós-pandemia, que são gigantes. É possível fazer mais. Já avançamos muito nesse sentido, mas precisamos ainda afunilar essas necessidades. Precisamos de mais enfermagem, por exemplo, mas em que áreas e que regiões? Para trabalhar as entregas e ampliar, precisamos entender melhor a perspectiva da equidade em saúde”, aponta Pinho.

O HAOC ainda desenvolve outros projetos com o SUS, fazendo a gestão de unidades públicas. Em Santos, litoral de São Paulo, atuam no Complexo Hospitalar dos Estivadores e no Ambulatório Médico de Especialidades Dr. Nelson Teixeira (Ambesp). Agora, vão buscar novos editais para ampliar o número de unidades.

A diretora executiva explica que além de levar a experiência do Oswaldo Cruz para o serviço público, esse modelo de gestão permite que o hospital contrate e remaneje a equipe de profissionais de saúde com mais facilidade, adaptando conforme a demanda, como na pandemia de Covid-19.

Apesar de não ter contratos atualmente com o município e estado para realizar consultas e cirurgias, como ocorre em mutirões, o HAOC não descarta a possibilidade. Nessas três vertentes, esses são caminhos possíveis para que os hospitais privados contribuam com a saúde pública.

Pesquisa e desenvolvimento

Do ponto de vista da indústria, existem diferentes formas de colaborar com a saúde pública, que vão da pesquisa até a distribuição dos medicamentos. O setor depende de acordos e regras para cada um dos itens, mas a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) afirma que é possível avançar mais.

“Temos uma capacidade no Brasil de fazer muito mais pesquisa. Estamos falando de um país que ainda não tem uma base de segurança jurídica e regulatória suficiente para fazer frente a outros países que fazem pesquisa com muito mais relevância. Se tiver, entramos em um mercado que faz cinco vezes mais estudos clínicos e inovam três vezes mais do que a gente pode, quando não temos esse sistema bem estruturado”, explica Renato Porto, presidente da entidade.

Estima-se que o Brasil tenha investido próximo a 38,2 bilhões de dólares em P&D em 2021, de acordo com o Guia Interfarma 2022, ocupando o 10º lugar no mundo. No entanto, a fabricação de produtos farmacêuticos está longe de ser o segmento líder, ocupando o 8º lugar no país. 

Para aumentar a fatia, o presidente aponta alguns caminhos. Um deles é criar regras mais claras e objetivas, que tragam mais segurança jurídica às empresas que realizam pesquisas clínicas no Brasil. Para isso, a Interfarma tem fortalecido a ideia da Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de autoria da senadora Ana Amélia (PP/RS), que dispõe sobre a pesquisa clínica com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos.

Outro caminho possível é criar regras sobre proteção à propriedade intelectual. “O Brasil não tem um sistema de proteção de dados de pesquisa para medicamentos humano. Tem para medicamentos veterinários, tem para agrotóxicos e não tem para medicamentos humanos, porque se entendia lá atrás que isso pode ser uma extensão de patente. Vários estudos já abordaram isso e não é uma extensão de patente. Poderia trazer mais pesquisas clínicas para o Brasil”, explica Porto.

A ideia é que através de uma Proteção Regulatória do Dossiê de Testes (PRDT), a farmacêutica consiga mais garantias que vão além da patente. De acordo com a Interfama, a PRDT se preocupa com o pacote de dados associado à segurança e à eficácia de um produto e não só sobre a invenção em si, e é considerada importante regulação para que o país seja mais atrativo às pesquisas.

Parcerias, PDPs, Complexo e custos

Outro ponto considerado importante são as transferências tecnológicas, através das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), e a formação de políticas públicas que vão além da compra de medicamentos. É o caso, por exemplo, do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, bandeira do atual Governo para tornar o país menos dependente do mercado externo de fabricantes de medicamentos e insumos.

“Temos toda condição de fazer isso, do ponto de vista de sistema de saúde organizado, demanda populacional, liderança que o país tem na região, qualidade dos pesquisadores que formamos e exportamos. O desenvolvimento do Complexo, que é a grande marca da gestão da ministra Nísia, tem um enorme potencial de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico com benefício social”, explica o pesquisador e membro da FGV-Saúde, Adriano Massuda.

A reforma tributária também pode colaborar com a relação das indústrias farmacêuticas com a saúde pública, já que pode contribuir com a redução dos custos de medicamentos. Tramitando no Congresso Nacional – ela foi aprovada no Senado na quarta-feira, 8, e agora volta para última apreciação da Câmara -, a perspectiva é que avance em breve, trazendo mais economia aos cofres públicos e ao bolso do cidadão.

“É um absurdo o tanto de imposto que pagamos no Brasil. Medicamentos hoje tem talvez uma das maiores cargas tributárias do mundo. Para algumas terapias avançadas estamos falando da ordem de 46% de imposto de um produto. A reforma está aí e está corrigindo isso, medicamentos tem uma alíquota reduzida de 60% até 100%. Medicamento não é um bem que a sociedade quer comprar, é um bem necessário”, afirma Renato Porto, presidente da Interfarma.

Apesar de ter muito a avançar, a movimentação do Executivo e Legislativo devem colaborar para que a indústria faça mais pela saúde pública. Contudo, é preciso manter o diálogo e a boa relação com todos os órgãos e empresas do setor, para que possam desenvolver estratégias que colaborem com o acesso.