Paralisação da Anvisa e outras agências reguladoras acende alerta para possível escassez de medicamentos

Paralisação da Anvisa e outras agências reguladoras acende alerta para possível escassez de medicamentos

Decisão de possível greve mais ampla, segundo sindicato das agências reguladoras, é resultado de anos de sucateamento das agências e depende de novas rodadas de negociação

By Published On: 10/07/2024
Após cinco meses de negociação, proposta de reajuste do governo é aprovada por Anvisa e outras agências

Foto: Lúcio Bernardo Jr/ Agência Brasília

Em 4 de julho, o Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências), que reúne órgãos como Anvisa e ANS, promoveu o Dia Nacional de Paralisação da Regulação. O ato mobilizou centenas de servidores em várias cidades do Brasil com o objetivo de reivindicar a recomposição da força de trabalho, equiparação salarial e reestruturação de cargos. No próximo dia 11 de julho, às 16h, está agendada uma reunião da mesa de negociação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), no entanto os servidores ameaçam uma greve mais ampla caso as demandas não sejam atendidas.

Ao Futuro da Saúde, Fábio Gonçalves Rosa, presidente do Sinagências e servidor da Anvisa, ressaltou que nos últimos anos houve uma acentuada perda de pessoal com pouca reposição, gerando um duplo efeito: a diminuição da capacidade operacional e a possibilidade de realizar entregas. “Um acúmulo de fatores de muito desgaste que culminou no momento atual”, pontua. O site do sindicato destaca ainda um ofício enviado pela Ministra da Saúde Nísia Trindade para Esther Dweck, ministra do MGI, em que manifesta apoio ao pleito da valorização das carreiras de regulação federal, em especial dos quadros de servidores da Anvisa e da ANS. Ela escreveu: “Certa de que estamos no caminho certo, aliamos saúde e desenvolvimento sustentável, baseados na premissa da saúde como fonte de investimento e não como gasto.”

O cenário é realçado por números: atualmente, a Anvisa conta com 1.388 servidores ativos, sendo 1.130 no quadro efetivo e 258 no quadro específico (que serão extintos após aposentadoria ou vacância). A título de comparação, em 2007 a Anvisa tinha um total de 2.360 servidores. “Isso reduz significativamente nossa capacidade operacional e sobrecarrega os que permanecem”, sugere Rosa. Em janeiro, foram abertas as inscrições no concurso público para o provimento de 50 vagas e a formação de cadastro de reserva em cargos de Especialista em Regulação e Vigilância Sanitária. Em nota, a Anvisa reforçou que “está funcionando na medida do possível e com a força de trabalho que tem à disposição no momento”. 

Outro ponto comentado por Fábio Gonçalves Rosa é a fuga de talentos do país, além de chamar atenção para valorização da carreira na sociedade, e do papel econômico e social que as agências reguladoras cumprem: “O quadro das agências que temos hoje foi pensado para a realidade de um país de 20, 25 anos atrás. A economia se dinamizou nesse período. Em lugares onde tínhamos 40 pessoas atuando, hoje temos apenas 6.”

O setor farmacêutico está acompanhando a situação com preocupação, pois, caso ocorra uma greve, pode haver atraso na entrega de medicamentos e comprometimento do abastecimento, disse Luciana Takara, diretora de inteligência e política regulatória da Interfarma: “Vemos com bastante preocupação a operação que estão chamando de ‘valorizar a regulação’. Entendemos que é um movimento legítimo, justamente devido à falta de servidores.”

Estratégias para a recomposição da força de trabalho da Anvisa

A Anvisa, responsável pelo controle sanitário de produtos e serviços, tanto nacionais quanto importados, enfrentou ao longo dos anos o esvaziamento de seu quadro de servidores, o que se configura como um de seus principais desafios atualmente. Esse cenário acaba culminando no acesso seguro da população brasileira a produtos e serviços. 

Futuro da Saúde teve acesso a um ofício enviado em 15 de abril por Antonio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, endereçado a Geraldo Alckmin, vice-presidente e Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e Nísia Trindade. Nele, há a exposição dos números de servidores já mencionados acima, destaque para a redução do contingente que atua em portos, aeroportos e fronteiras, e impactos que a perda de capacidade operacional gera nos setores. Há uma referência, por exemplo, de levantamento feito pelo Grupo FarmaBrasil de que passivo de análise da atual fila de medicamentos que aguardam registro da Anvisa representa um impacto anual no mercado de 17 bilhões de reais.

No documento, há ainda uma comparação da Anvisa com autoridades regulatórias internacionais: no Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, e Health Canada (HC), há cerca de 17 mil e 9 mil, respectivamente. Em termos de número de funcionários por 1 milhão de habitantes, a Anvisa possui 7 enquanto a FDA 54. O conteúdo também observa que os tempos médios para conclusão da avaliação no Brasil são significativamente superiores aos observados em autoridades reguladoras consideradas equivalentes à Anvisa – o principal obstáculo está no tempo de espera na fila dos dossiês até o início da análise, devido ao reduzido número de servidores disponíveis na Anvisa. O tempo médio de aprovação de medicamentos novos no Brasil é de 776 dias, enquanto no FDA é de 245 e na EMA, agência europeia, é de 428 – o documento sugere ainda que o prazo desejado para registro de uma nova molécula, por exemplo, deveria ser de 365 dias ao invés dos atuais 618 e a aprovação de uma pesquisa clínica Fase I e II deveria ser de 60 dias, ante aos atuais 447 dias.

Esse contexto, de acordo com o órgão, além de reduzir a disponibilidade de produtos para a população brasileira, impacta ainda a balança comercial do Brasil e a concretização de metas estabelecidas em diversos programas governamentais, como o PAC e o Complexo Econômico Industrial da Saúde. E, com base no cenário, o documento conclui que o déficit atual de servidores é de aproximadamente 1,2 mil pessoas e apresenta propostas de ações estratégicas que podem ser implementadas a curto e médio prazo. Dentre elas estão:

  • Autorização para realização de concurso para provimento das atuais 80 vagas em aberto, mediante edição de Portaria pelo Ministério da Gestão e Inovação;
  • Disponibilização de empregados públicos da Infraero, conforme já solicitado pela Anvisa, mediante publicação de portaria pelo Ministério da Gestão e Inovação;
  • Atualização do valor das Taxas de Fiscalização de Vigilância Sanitária, mediante edição de Portaria Conjunta pelo Ministério da Saúde e Ministério da Fazenda;
  • Alteração normativa para facilitar o processo de doação de sistemas informatizados que poderão racionalizar a atividade da agência de forma imediata;
  • Alteração da Lei nº 10.871 para a ampliação imediata do quadro efetivo de pessoal da Anvisa, com a criação de 1.327 vagas referentes ao quadro de servidores extinto;
  • Realização de contratação temporária para absorver o passivo gerado pela pandemia de COVID até a recomposição do quadro de servidores da Anvisa, mediante edição de Portaria pelo
    Ministério da Gestão e Inovação;

Monitoramento de greve mais ampla e paralisação da Anvisa

Segundo o sindicato, as agências reguladoras são responsáveis por regular setores críticos que correspondem a 60% do PIB do Brasil, abrangendo portos, aeroportos, medicamentos, mineração, planos de saúde, energia elétrica e audiovisual. Estima-se que essas agências arrecadem até R$ 90 bilhões anualmente em multas e tarifas.

O orçamento previsto para as agências em 2024 foi de R$ 5 bilhões, mas sofreu um corte de 20% devido ao contingenciamento, uma medida que foi alvo de críticas por parte dos servidores.

O trabalho da Anvisa exerce uma forte influência no desenvolvimento econômico do país, regulando aproximadamente 23% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e impactando mais de 241 atividades econômicas. Em maio, a equipe do Futuro da Saúde conversou com Meiruze Sousa Freitas, diretora da Anvisa, que também destacou a questão da falta de servidores da agência.

Lembrando que a Anvisa possui duas carreiras em sua estrutura. A dos Efetivos foi criada em 2004 para suprir as necessidades da agência. Já a carreira dos Específicos foi formada inicialmente por servidores de outros órgãos para compor a primeira força de trabalho da Anvisa na sua criação em 1999. Essa carreira do Específico foi extinta e conforme as pessoas se aposentam, as vagas serão fechadas de forma definitiva.  

“Quando ele se aposenta ou sai da agência, essa vaga deixa de existir e por isso está havendo uma diminuição de vagas ao longo dos 25 anos de existência da agência”, afirma Takara, da Interfarma. “Vemos com preocupação o que está acontecendo nas agências porque essas vagas não são repostas.”

Segundo ela, sem a recomposição de trabalho e uma melhora dos sistemas, de fato o trabalho da agência pode ser comprometido. “Temos uma pesquisa rodando junto às nossas associadas para monitorar o impacto da operação das atividades das agências”, revelou. A pesquisa não tem prazo para publicação, porém Takara ressalta que o monitoramento das atividades realizadas em junho, comparado ao mesmo período do ano passado, já evidenciou uma redução. Além disso, alertou que uma greve poderia afetar negativamente o setor farmacêutico: “Se a operação realmente se intensificar nos próximos dias, poderá impactar o abastecimento de medicamentos e o acesso dos pacientes.”

Próximos passos  

Segundo o presidente do Sinagências, o governo ofereceu reajuste 9% para 2025, e 3,5% para 2026, percentual que está muito abaixo do que os servidores estão discutindo: “Não aplicamos carimbo. É uma atividade extremamente complexa para garantir segurança, tanto ao mercado quanto à população brasileira”, disse.

Se a proposta do governo não for considerada satisfatória após a reunião agendada para 11 de julho com o Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), a categoria se reunirá para discutir os próximos passos, incluindo a possibilidade de iniciar uma greve. “Dependendo do que o governo nos apresente, nós vamos reavaliar o cenário”, relatou.

O servidor afirmou que entende o impacto do que uma paralisação de todas as agências e a influência na atividade econômica do país. Mas, segundo ele, “todas as cartas estão sobre a mesa.”

Angélica Weise

Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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