Entidades de doenças raras se posicionam contra decisão do STF sobre judicialização da saúde

Entidades de doenças raras se posicionam contra decisão do STF sobre judicialização da saúde

Associações de pacientes de doenças raras repudiam decisão sobre fornecimento de medicamentos não incorporados no SUS

By Published On: 11/09/2024
Fórum abordou desafios de pacientes com Doenças Raras

Segue em plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) até sexta-feira, 13, a votação de dois Recursos Extraordinários (RE) que estabelecem regras para o fornecimento de remédios não incluídos no Sistema Único de Saúde (SUS). Com maioria já formada nas duas votações, entidades de pacientes com doenças raras repudiam a decisão que estabelece como requisito para judicialização a negativa de fornecimento do Estado pela via administrativa.

Somente irão para justiça situações excepcionais, em que haja o registro do remédio na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que atenda alguns requisitos. Para obter tratamentos via decisão judicial o autor da ação deve comprovar falta de pedido de incorporação ou lentidão na análise do pedido pela Conitec ou que a comissão negou a incorporação de forma ilegal. Deve ser comprovado também que o medicamento é imprescindível, insubstituível, a incapacidade do autor de arcar com os custos e a eficácia e segurança do medicamento.

Para Andreia Bessa, coordenadora jurídica da Casa Hunter, instituição sem fins lucrativos de apoio para pessoas com doenças raras, a decisão do STF representa um grande retrocesso ao retirar a possibilidade de discussão do paciente com os órgãos de justiça. Além disso, a advogada destaca que a Conitec leva muito tempo para analisar pedidos de incorporação e considera os critérios de julgamento utilizados injustos, pouco transparentes e parciais.

“Agora para termos acesso à justiça vamos precisar do ‘aval da Conitec’, a consequência disso é trágica. Nós não defendemos a judicialização, ela é um meio doloroso, mas infelizmente, hoje é a única saída que temos. Não tem outra. Essa decisão está tirando a única saída que o paciente tem de ter um direito à vida”, argumenta Bessa.

As manifestações contrárias à votação do Supremo ocorreram na terça-feira, 10, durante o Fórum Brasileiro de Doenças Raras e Negligenciadas, realizado na Câmara dos Deputados. Na ocasião foi divulgado uma carta de repúdio da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (FEBRARARAS) à atual situação de julgamento. No documento, a entidade afirma que o parecer da Conitec não deveria ser vinculativo para o STF, visto que a comissão é um órgão de assessoramento.

A FEBRARARAS também acredita que a decisão ameaça o direito à saúde e será uma sentença de morte para muitos pacientes. “Centralizar decisões tão importantes e vitais para milhões de brasileiros em um órgão cuja estrutura é incapaz de atender à demanda crescente por tratamentos inovadores, especialmente para doenças raras, é fechar uma via de acesso fundamental à Justiça. Se o direito de acesso, o direito à justiça for eliminado, quem se responsabilizará pelas mortes decorrentes da demora e ineficiência do sistema?” questiona a federação.

Com a maioria formada, a decisão só poderá ser revertida caso um ministro peça vistas ao processo para uma análise mais aprofundada, o que levaria o processo ao plenário físico. “Nós já praticamente perdemos, faltam apenas os votos dos ministros Luiz Fux e Nunes Marques. A nossa perspectiva é que algum deles peça vistas para termos tempo de nos articular e explicar para eles as nossas dificuldades com a Conitec” diz Bessa.

Ministros argumentam que decisão busca diminuir a judicialização

A discussão do RE 566.471, Tema 6, recebeu voto conjunto dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que consideram que a concessão judicial de medicamentos deve se limitar a casos excepcionais. Os ministros justificam a decisão com base na escassez de recursos e argumentam que a judicialização excessiva gera grande prejuízo para as políticas públicas de saúde, comprometendo a organização, a eficiência e a sustentabilidade do SUS.

O voto também afirma que a concessão de medicamentos pela justiça beneficia os autores individuais da ação, mas produzem efeitos sistêmicos que prejudicam a maioria da população dependente do sistema de saúde pública. Além disso, destacam que a Conitec possui a expertise necessária para tomar decisões sobre a eficácia, segurança e custo-efetividade de um medicamento.

“Não é viável ao poder público fornecer todos os medicamentos solicitados. A concessão judicial de medicamentos deve estar apoiada em avaliações técnicas à luz da medicina baseada em evidências. Os requisitos propostos na tese de julgamento que será submetida ao Plenário deste Tribunal buscam solucionar ou ao menos mitigar essas preocupações”, aponta o voto.

No entanto, para Andreia Bessa a decisão do Supremo deve contraditoriamente aumentar a judicialização da saúde. “Agora vamos ter dois tipos de judicialização, uma em cima da decisão da Conitec e outra para judicializar o medicamento. Então, ao nosso ver, não vai ter uma redução”, argumenta a advogada.

Em relação aos casos excepcionais que forem à justiça, o Ministro Gilmar Mendes declara no voto do RE 1.366.243 que o judiciário deverá obrigatoriamente analisar o ato administrativo da Conitec, apenas no exercício do controle da legalidade. “O Poder Judiciário não pode substituir a vontade do administrador, mas tão somente verificar se o ato administrativo específico daquele caso concreto está em conformidade com as balizas presentes na Constituição Federal, na legislação de regência e na política pública no SUS”, afirma o documento.

A FEBRARARAS acredita que a decisão condicionará o acesso aos tratamentos às análises morosas e burocráticas da Conitec, criando-se uma barreira intransponível. “Pacientes com doenças raras dependem de tratamentos que – quase em sua totalidade – não estão disponíveis no SUS. Não é admissível que decisões de vida ou morte sejam delegadas a um órgão que, conforme amplamente discutido, não possui a representatividade da sociedade civil, carece de independência política, e frequentemente adota critérios de custo efetividade inadequados para avaliar medicamentos”, afirma a Federação na carta de repúdio.

Falta de representação civil na avaliação de novas tecnologias

Em junho deste ano foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1241/2023 que altera a composição da Conitec. Aguardando trâmite para o Senado, o PL inclui a participação de um geneticista e de um representante de organização da sociedade civil de caráter nacional, constituída há mais de dois anos, na comissão.

Apresentado pela deputada Rosângela Moro (União-SP), o projeto busca aprimorar a composição da comissão para dar poder de voto à sociedade. “Um geneticista que incorpore sua expertise em doenças raras se faz não somente adequado, mas imprescindível. Pretendemos ampliar a capacidade de análise do colegiado, bem como conferir maior celeridade aos processos em curso”, afirma a deputada na justificativa do PL.

Durante o Fórum realizado esta semana na Câmara, a deputada externou preocupação com a decisão do STF que está por vir e apontou que um dos gargalos da incorporação de tecnologia hoje está justamente na Conitec. “Compreendemos e reconhecemos que esse conhecimento das associações de pacientes é muito importante para as discussões da comissão. Se é na Conitec em que se decide o que vai ser feito, é de extrema importância que estejamos lá. Precisamos ficar atento se os prazos estão sendo respeitados, cada dia de atraso no início de um tratamento é crucial para o desenvolvimento da pessoa”, defendeu.

Existem cerca de 13 milhões de brasileiros com doenças raras e mais de sete mil tipos distintos de doenças raras. Dessas, 75% afetam crianças e 80% têm origem genética, ainda que nem sempre sejam hereditárias. No Brasil, o Ministério da Saúde considera doença rara aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. Devido às dificuldades de acesso a tratamentos, elas representam boa parte dos processos de judicialização.

Por isso, a advogada Andreia Bessa acredita ser necessário ampliar a participação dos pacientes na Conitec e considera a aprovação do PL pelo Senado de grande importância. “Isso é dar voz ao paciente. Falta participação social e transparência, independente da decisão do STF é necessário trazer mais representação social para a comissão e aumentar o diálogo”, afirma.

Rebeca Kroll
Rebeca Kroll

Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi trainee do programa "Jornalismo na Prática" do Correio Braziliense, voltado para a cobertura de saúde. Premiada na categoria de reportagem em texto na 2ª edição do Prêmio de Comunicação de Saúde na Primeira Infância da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

About the Author: Rebeca Kroll

Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi trainee do programa "Jornalismo na Prática" do Correio Braziliense, voltado para a cobertura de saúde. Premiada na categoria de reportagem em texto na 2ª edição do Prêmio de Comunicação de Saúde na Primeira Infância da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

2 Comments

  1. Sônia Maria Gonzaga Alves 12/09/2024 at 13:15 - Reply

    Bom dia,
    Rebeca Kroll
    Acabei de ver sua matéria sobre a judicialização para aquisição de medicamentos não ofertados pelo SUS e gostaria de contar minha história. Será uma tragédia para nós os “raros” se o STF aprovar da maneira que se desenha. Esse órgão Conitec, não nos representa. Tenho um processo para aquisição do medicamento que uso nas crises da doença da qual sou portadora que é Angioedema Hereditário, já aprovado pela Anvisa, mas não é fornecido pelo SUS. É um medicamento indispensável, principalmente quando o inchaço acontece na laringe, podendo ocasionar asfixia e se não tratado a tempo, o paciente vir a óbito. É uma luta de quase cinco anos que perdi nas 1ª e 2ª instâncias. O recurso seguiu para 3ª instância. Se isso vier a ocorrer não teremos o único canal que nos resta para obtermos o medicamento que precisamos para nossa sobrevivência.

  2. Maria Helena Guarsns 12/09/2024 at 14:55 - Reply

    Realmente é de suma importância que a justiça se integre no conhecimento médico e Levem em consideração as doenças raras espeto que o façam o mais rápido possível .

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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