Obstetrícia ganha reforço de novas tecnologias na prevenção
Obstetrícia ganha reforço de novas tecnologias na prevenção
Com complexidade singular, especialidade tem visto avanços tecnológicos e uso de inteligência artificial para apoiar equipes médicas e gestantes
Na esteira da revolução tecnológica que tem marcado os anos recentes na saúde, a obstetrícia começa a dar passos mais efetivos na adoção de inovações. Pela própria natureza da especialidade, que cuida do processo complexo de gerar uma nova vida, a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias, técnicas e abordagens ocorre de forma mais ponderada, com desafios mais elevados em termos de segurança para preservar tanto mãe quanto feto. Mas os efeitos desses avanços na melhora da jornada e da prevenção ficam cada vez mais claros.
De acordo com um artigo de revisão publicado na Reproductive Science, há um dilema de dois extremos que explica o porquê de a inovação na especialidade ocorre em ritmo mais lento. De um lado, há um foco nas “tecnologias da moda”, o que negligenciaria pesquisas promissoras com aquelas já estabelecidas. De outro, há um apego grande ao que já se conhece, o que resulta numa recusa para olhar para as possíveis contribuições dessas novas tecnologias.
A consequência desse impasse é que adversidades já conhecidas há décadas, como pré-eclâmpsia, diabetes gestacional e síndromes hemorrágicas – segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 1 a cada 5 mortes maternas ocorrem devido a hemorragias –, continuam impactando gestantes do mundo inteiro e desafiando profissionais da saúde. Os determinantes sociais também fazem parte desse cenário: 99% das mortes maternas ocorrem em países em desenvolvimento. No Brasil, a mortalidade materna aumentou 94% durante a pandemia, com uma média de 107 mortes para 100 mil nascidos vivos, muito distante da meta de redução para 70 a cada 100 mil, estabelecida pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
Mas ao longo dos últimos anos houve motivos para comemorar, como exemplifica Rômulo Negrini, ginecologista obstetra e coordenador médico no Hospital Israelita Albert Einstein: “Um deles foi observado na prevenção de pré-eclâmpsia. Há cerca de cinco anos descobriu-se que o ácido acetilsalicílico diminui mais de 50% a chance de uma mulher de alto risco desenvolver a condição, que é aquela pressão alta da gravidez de forma mais precoce. Isso foi um marco para a obstetrícia.”
Tecnologia em prol da prevenção na obstetrícia
Boa parte dos esforços em inovação tem sido direcionada para aprimorar e construir novas tecnologias que sejam capazes de predizer o sofrimento fetal e possíveis complicações na gestação. O objetivo é permitir que a equipe de saúde avalie as possibilidades de intervenção e decida a conduta com mais informações, o que pode reduzir desfechos negativos na hora do parto.
“A questão da falta de oxigênio é o calcanhar de Aquiles da obstetrícia”, destaca Negrini. “Ainda carece de tecnologias que nos permitam observar isso de maneira mais aprofundada, é o nosso maior desafio.”
Neste contexto, o exame de cardiotocografia é um dos recomendados para avaliar o bem-estar do feto, e pode ser realizado tanto na fase final da gestação, quanto no trabalho de parto. Ele monitora os batimentos cardíacos do bebê e as contrações uterinas através de sondas na barriga da mãe. Mas a tecnologia mais utilizada atualmente possui dois pontos de atenção. O primeiro é a demora na análise dos resultados dado que é necessária a impressão do exame e posterior verificação. O segundo é a falta de padronização da interpretação dos resultados, o que aumenta as chances de erro pelo fator humano.
Para solucionar essas limitações, recentemente o Einstein se tornou pioneiro ao implementar um software capaz de analisar, de maneira automática e em tempo real, exames de cardiotocografia. Intitulada Omniview-SisPorto, a solução foi desenvolvida pela startup portuguesa Speculum em conjunto com a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. A nova ferramenta faz alertas para casos de risco de privação de oxigênio para o feto, possibilitando à equipe médica a adoção de uma conduta mais segura.
“A cardiotocografia tem uma interpretação muito difícil, e muitos médicos fazem a interpretação de forma diferente”, explica Negrini. “Com a tecnologia, conseguimos automatizar essa análise. É uma tecnologia machine learning, ela faz essa leitura utilizando os parâmetros que damos para ela e comparando se aquela leitura está associada numa análise de casos anteriores. Assim, ela consegue identificar se há um padrão que foi associado há alguma complicação, algum sofrimento anteriormente.”
Mais exemplos de evolução tecnológica
Este é apenas um entre os diversos outros exemplos, segundo o ginecologista. Ele destaca o aprimoramento de cirurgias intrafetais, que têm evoluído para procedimentos minimamente invasivos com o uso de lasers, é outra novidade não tão recente que têm permitido correções estruturais e mudado paradigmas.
“Cada vez mais conseguimos intervir no bebê ainda dentro da barriga. E por se tratar de um período de desenvolvimento, se eu faço essa correção ainda no útero, o impacto dessa condição é minimizado e isso traz uma qualidade de vida melhor para essa criança. Com as técnicas de cirurgia se aprimorando, temos resultados cada vez melhores”, destaca Negrini.
Há ainda a inteligência artificial, que tem sido uma aposta para a inovação na obstetrícia. Além do uso em modelos preditivos de complicações, a IA tem demonstrado potencial no diagnóstico através de imagens e no aprimoramento da orientação pré-natal para profissionais da equipe médica, inclusive com a utilização de modelos de linguagem semelhantes ao ChatGPT, como observou uma publicação da Revista de Obstetrícia e Ginecologia do Canadá.
Em 2023, por exemplo, foi lançado o projeto SAMPa: Smart Assistant for Monitoring Prenatal Health Care with Large Language Models (LLMs), desenvolvido pelo Einstein e financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates. O modelo foi desenhado para prestar assistência tanto para o profissional de saúde, quanto para a paciente. O programa é capaz de transcrever o áudio da consulta, sugerir ao profissional perguntas a serem feitas e oferecer material de apoio para a gestante.
E a telemedicina, que se intensificou nos últimos anos, é outra aliada que surge como alternativa para ampliar o acesso aos cuidados no pré-natal em regiões de difícil acesso – e também como ferramenta para otimizar as visitas da gestante aos serviços de saúde, principalmente quando aliada ao uso de dispositivos de monitoramento.
“O Einstein tem uma estação em uma comunidade localizada na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, que oferece justamente esse tipo de acompanhamento para as gestantes da região”, ilustra Negrini. “Há diversas ações semelhantes ao redor do mundo, que visam possibilitar o atendimento médico àquelas gestantes que residem em local de difícil acesso. Com esse tipo de iniciativa, você amplia esse atendimento e consegue avaliar se há necessidade de exame presencial ou internação. É algo que pode ter um resultado fantástico para a população.”
Além dos avanços tecnológicos, futuro deve olhar para protocolos
Ao analisar as tendências mais futuristas, Negrini destaca estudos feitos para o desenvolvimento de uma placenta artificial como solução para a mortalidade de bebês que nascem antes dos seis meses de gestação – nesse estágio, os pulmões e o cérebro não estão completamente formados, o que dificulta a sobrevida fora do útero. “Temos pesquisas nesse sentido que têm mostrado resultados promissores, a exemplo do realizado em Barcelona. A proposta é que, ao nascer, esse bebê seja alocado na placenta artificial, onde vai continuar o seu desenvolvimento. Há grandes expectativas em relação a isso.”
A evolução da medicina genética, que já é utilizada para diagnósticos intrauterinos, também é uma aposta. A expectativa é que, nos próximos anos, sejam estudadas possibilidades de intervenção corretiva. “Acredito que no futuro possamos chegar lá, mas é uma questão complexa”, ressalta.
Apesar do grande entusiasmo com as novas possibilidades que as tecnologias disruptivas trazem, Negrini pontua que, em paralelo, a implementação e melhoria de protocolos de processo já conhecidos também pode trazer impactos positivos.
“A curto prazo e pensando em impactar a vida de pessoas, a prioridade deve ser a unificação de processos e protocolos, para que eles sejam feitos com base em evidências científicas e da mesma maneira em todos os lugares. Tivemos uma experiência em Recife em que apenas estruturando protocolos para hemorragia, hipertensão e infecção, reduzimos mais de 50% a morte materna. Temos avançado muito com as tecnologias, mas não podemos esquecer do impacto desse tipo de abordagem.”
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.