O que a pandemia nos ensina sobre a neurodiversidade?

O que a pandemia nos ensina sobre a neurodiversidade?

A pandemia vem mudando a forma como trabalhamos, estudamos, nos […]

By Published On: 23/11/2020

A pandemia vem mudando a forma como trabalhamos, estudamos, nos relacionamos. Uma verdadeira revolução. Num pequeno espaço de tempo, separou famílias, enclausurou crianças, fechou negócios, espalhou o medo e o luto em todo o mundo. Também permitiu a disseminação da telemedicina e fez com que escolas e universidades incorporassem a tecnologia e novas estratégias de ensino em direção à chamada educação 4.0. Ao mudar a rotina de todas as pessoas de forma similar, representa um verdadeiro experimento social que nos ensina como o comportamento humano, e de crianças e adolescentes em particular, é dependente do ambiente. Nos ensina como a configuração do ambiente e das rotinas, as expectativas e normas sociais podem fazer com que uma mesma característica emocional, cognitiva ou comportamental seja uma habilidade ou fonte de sofrimento.

O movimento da neurodiversidade e os conceitos que traz nos ajudam nessa reflexão. No ano de 1998, foi publicado um artigo na revista The Atlantic de Harvey Blume intitulado “Neurodiversidade: as bases neurológicas de ser um geek”. Para quem não está familiarizado com o termo geek, o www.urbandictionary.com define geek como “aquela pessoa que você zoa quando criança e que se torna seu chefe quando adulto” ou como “alguém que se envolve de forma apaixonada em um ou mais interesses em níveis extremos. Um termo comumente conferido a pessoas no campo da programação de computadores, mas não é necessário que esteja no campo técnico para que seja um geek. O único critério é um nível intenso de interesse em algo, normalmente a um grau altamente especializado.” Nesse artigo, a partir do trabalho de doutorado da socióloga Judy Singer, ela mesma autista e mãe de uma criança autista, Blume discute a ideia de que não existe o que é um comportamento humano normal, já que a complexidade do cérebro gera muitas formas de ser e não existe o “correto”. Inclusive, o que seria o “neurotípico”, ou seja, o padrão mais comum, pode ser inferior quando em ambientes de alta tecnologia e que “a neurodiversidade pode ser tão crucial para a raça humana como a biodiversidade é para a vida em geral.”. Blume pergunta: “Quem pode dizer qual forma de jeito será o melhor em dado momento?”.

A partir de então, o movimento da neurodiversidade foi criando forma e força, influenciando a criação de associações de pessoas autistas, de pessoas com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e muitas vezes se contrapondo ao modelo médico. O movimento da neurodiversidade propõe que a incapacidade não está (ou está apenas parcialmente) no indivíduo, mas sim na adequação do ambiente a cada indivíduo. No caso de pessoas autistas, o foco do trabalho original de Singer, elas seriam incapazes em um mundo não previsível, influenciado pela aleatoriedade dos sentimentos, em que as relações e o status social são altamente valorizados, mas isso não ocorreria em ambientes adequados ao seu jeito de ser. Greta Thunberg, a ativista climática de 17 anos que tem autismo, exemplifica claramente essa questão na sua TED Talk: “Para aqueles de nós que estão no espectro (aqui ela se refere ao transtorno do espectro do autismo), quase tudo é branco ou preto. Não somos muito bons mentindo, e normalmente não nos divertimos participando desse jogo social que o resto das pessoas gostam. Eu acho que em diversas formas, os autistas são os normais e as outras pessoas são muito estranhas, especialmente nos momentos de crises na sustentabilidade, quando todos dizem que a mudança climática é uma ameaça existencial e a coisa mais importante de todas, e mesmo assim, continuam como antes. Eu não entendo isso, porque se as emissões devem parar, então temos de parar as emissões. Para mim isso é preto ou branco. Não há áreas cinzentas quando se trata de sobrevivência. Ou avançamos como uma civilização, ou não. Temos que mudar.”

Thunberg explicita o comportamento contraditório da maioria das pessoas, “neurotípicas”, que apesar de terem conhecimento a respeito das mudanças climáticas, não modificam o seu comportamento e seguem ignorando o futuro do planeta, direcionadas por um pensamento mágico de que “no futuro alguém dará um jeito”, ou “não irá acontecer de verdade”. A partir de um pensamento lógico-matemático ou um “pensamento preto ou branco”, como ela chama, o colapso ambiental é inevitável se o comportamento das pessoas não mudar e a emissão de gases carbônicos e temperatura global seguir crescendo. Graças a essa forma de encarar o problema, e graças o seu extremo interesse no assunto, características relacionadas ao autismo, ela vem mobilizando milhões de pessoas em todo o mundo, falando de forma dura e direta com líderes mundiais. Nesse contexto, é evidente que o pensamento de Thurnberg, ou o pensamento autista, é o adaptativo e que poderá salvar o futuro do nosso planeta, enquanto o pensamento dito “neurotípico” nos leva ao abismo. Nesse sentido, muitas empresas em todo o mundo já perceberam a grande oportunidade que programas de neurodiversidade representam e estão modificando os ambientes corporativos para receber empregados com autismo, por exemplo.

Como neurodiversidade e pandemia se relacionam?

A vida antes da pandemia era centrada na escola, baseada no ensino presencial que ocorria no contexto da relação com os professores e colegas. As atividades de aprendizado eram entremeadas por atividades sociais, esportivas e culturais variadas que proporcionavam variabilidade de estímulos, aumentando o interesse e o engajamento. Além da escola, crianças e adolescentes frequentavam atividades extracurriculares ou brincavam na casa de amigos, na rua ou em parques. Aqueles com mais condições financeiras viajavam, visitavam atrações turísticas, assistiam filmes ou peças de teatro, iam a museus. Tudo em um contexto social intenso, que se refletia nas visitas aos amigos, encontros no shopping, restaurantes ou festas, intrigas variadas e intermináveis, bullying e para os mais velhos, namoros e eventualmente sexo.

Essa era a realidade e as demandas colocadas sobre as crianças e adolescentes que, de uma forma ou de outra, famílias e escolas exigiam que cumprissem. Havia um equilíbrio entre o ambiente e as características individuais das crianças. Aquelas com maiores habilidades e interesses sociais eram altamente gratificadas, já aquelas um pouco mais agitadas ou desatentas se envolviam no estudo porque acontecia junto ao professor ou aos colegas, em uma estrutura que favorecia a realização das atividades acadêmicas. Todos de alguma forma tinham algum tipo de prazer e diversão, o que regulava humor, sono e comportamento. Aquelas com dificuldades sociais, que não encontravam um lugar junto ao grupo no intervalo da escola ou que simplesmente não tinham interesse em estar com pares, mas se viam constrangidas pelo ambiente, sentiam-se ansiosas e frustradas e geralmente com uma sensação de incompetência. Aquelas crianças e adolescentes com dificuldade de organização se perdiam entre diversas tarefas e compromissos, ou aqueles com pensamento menos flexível e mais linear, se frustravam com a imprevisibilidade de inúmeros eventos sociais e tarefas escolares.

O impacto direto na rotina

A pandemia trouxe três imposições muito relevantes: o fechamento das escolas e a migração para o ensino à distância, o confinamento em casa e o distanciamento físico e social. O ensino passou a se dar por meio online, com interação muito mais limitada entre aluno e professor e com colegas. A expectativa pelo intervalo na escola, os encontros em festas, deixaram de existir. As atividades recreativas fora de casa foram interrompidas. Essa nova rotina modificou o equilíbrio das relações familiares, sociais e do aprendizado para cada indivíduo de forma particular. Muitas crianças e adolescentes, sem a estrutura física e social da escola para garantir o aprendizado, colapsaram: crises de irritação e choro, recusa para estudar e realizar as atividades. Vários meninos e meninas mergulharam em jogos eletrônicos em busca de diversão e contato com amigos, gerando longas e contínuas negociações com os pais, que normalmente levam a brigas ou a mais tempo jogando. Outros trancaram-se em seus quartos e durante todo o tempo em que estão acordados trocam mensagens com amigos, navegam pelas redes sociais e sentem-se ao final do dia incompletos, frustrados, porque a vida online não traz a gratificação que o contato físico proporciona. Aqueles que seguem mantendo o distanciamento físico têm ficado frustrados e se sentem excluídos quando encontram fotos nas redes sociais de seus amigos se encontrando sem eles, e aqueles que se encontram, negam a situação preocupante que estamos vivendo e seguem suas vidas como se não tivessem responsabilidade social.

A nova estrutura de aprendizado e social advinda da pandemia tem gerado problemas para muitos, mas para outros trouxe soluções e melhor adaptação. Em nosso estudo Jovens na Pandemia (www.jovensnapandemia.com.brr), cerca de 50% dos mais de 6000 participantes dizem que a pandemia trouxe mudanças positivas. Muitas crianças e adolescentes que sentiam o convívio social como um estressor e não como uma gratificação, se adaptaram à tranquilidade das suas casas, estão felizes e estudando. Muitos também passaram a se organizar melhor e a aprender de forma como não ocorria antes, em um ambiente de ensino online bem estruturado, sem tantas influências sociais, compromissos e atividades, ou eventualmente com menor exigência em termos de conteúdo.

De fato o equilíbrio anterior se desfez: muitas crianças com autismo estão nesse momento muito bem adaptadas, outras até então neurotípicas passaram a apresentar intensa agitação ou ansiedade. É claro que há muita variabilidade no comportamento humano e que essas são generalizações. Mas é justamente disso que estamos falando: a grande variabilidade do comportamento humano e o quanto o ambiente contribui para que ele se torne disfuncional ou não.

A influência do ambiente

O movimento da neurodiversidade argumenta que é na interação do ambiente que surge a incapacidade. A minha visão vai parcialmente ao encontro dessa perspectiva. O comportamento humano é distribuído de forma dimensional, não há apenas branco ou preto, há toda uma zona cinzenta entre os extremos. Em uma zona intermediária da distribuição do comportamento na população, o ambiente pode sim ter uma influência profunda sobre a adaptação ou não do indivíduo. Quando isso ocorre, é possível manipular aspectos do ambiente para gerar um melhor funcionamento, e sem dúvida devemos rumar nessa direção. Incapacidades em um contexto podem ser habilidades em outro. Por exemplo, um adolescente com um pensamento lógico-matemático forte e menor flexibilidade pode ficar ansioso e frustrado em um ambiente social que privilegia as aparências e a malícia, mas pode estar muito adaptado em um ambiente social estruturado com normas claras e que privilegia o conhecimento e a honestidade. Por outro lado, a incapacidade também está no indivíduo e por isso tratamentos muitas vezes são necessários. Isso fica evidente em distribuições mais extremas do comportamento. Por exemplo, alguém muito impulsivo terá dificuldade para inserir-se plenamente em qualquer ambiente, por maior que sejam as adaptações.

As ideias da variabilidade do comportamento humano e da importância de que pais aceitem os filhos com as suas características particulares são articuladas pelo escritor e psicólogo norte-americano Andrew Solomon no livro Longe da Árvore. Ele propõe a ideia de que existem identidades verticais e horizontais. Identidades verticais seriam aquelas compartilhadas com os pais, e horizontais aquelas diferentes dos pais que os filhos passam a adquirir no contato com pares semelhantes. Ele descreve como pessoas com autismo, anões, surdos e outros grupos têm suas culturas próprias e o desafio que é para as famílias e para a sociedade aceita-las, sem querer mudar os filhos. Esse desafio é mais evidente em famílias com filhos com culturas próprias como essas, mas muitas vezes também é difícil para pais aceitarem a variabilidade do comportamento de crianças e adolescentes “neurotípicas” quando o comportamento é simplesmente diferente do seu próprio comportamento. Não é incomum crianças e adolescentes carregarem por anos o sentimento de que frustraram as expectativas dos pais, gerando nelas tristeza e baixa auto-estima.

O resultado do experimento social imposto pela pandemia é a forma como todos reagem à nova realidade. Muitos pais estão tendo a chance única de conviver de forma próxima com seus filhos e com isso, conhece-los de fato como são.  Isso está promovendo aprendizado às famílias, que passaram a perceber a importância de que o ambiente seja adaptado às características de cada criança. Como isso mudará a nossa vida em sociedade futura, que ainda não conhecemos? Talvez o ensino à distância seja incorporado e seja estruturado um modelo híbrido permanente, com flexibilidade para que cada aluno possa buscar as melhores formas para aprender. Talvez possamos entender melhor que as relações sociais são importantes na medida que trazem satisfação para o indivíduo, e que se não trouxer tanto prazer, ou ao contrário, se trouxer estresse, a criança ou adolescente pode viver muito bem em um ambiente menos social.

De qualquer forma, está muito claro que as demandas sociais e as expectativas de como deve ser o aprendizado colocadas pelas famílias e pelas escolas influenciam diretamente o bem-estar das crianças e adolescentes. Se pudermos oferecer o melhor ambiente para cada indivíduo a partir das suas dificuldades e capacidades, todos ganham. Da mesma forma que a biodiversidade é festejada, que também seja a neurodiversidade. Independente se uma pessoa tem autismo, TDAH ou nenhum diagnóstico, garantir que suas habilidades se desenvolvam é tornar a sociedade mais diversa, mais rica, mais inovadora.

Guilherme Polanczyk

Professor Associado da Disciplina de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Coordena o Programa de Diagnóstico e Intervenções Precoces e a Unidade de Internação de crianças e adolescentes do Instituto de Psiquiatria do HC-USP. Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com residência em Psiquiatria e em Psiquiatra da Infância e Adolescência no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Possui Mestrado e Doutorado em Psiquiatria na UFRGS e Pós-Doutorado no MRC SGDP Centre Institute of Psychiatry King’s College London, na Inglaterra, e na Universidade de Duke, nos EUA.

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Professor Associado da Disciplina de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Coordena o Programa de Diagnóstico e Intervenções Precoces e a Unidade de Internação de crianças e adolescentes do Instituto de Psiquiatria do HC-USP. Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com residência em Psiquiatria e em Psiquiatra da Infância e Adolescência no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Possui Mestrado e Doutorado em Psiquiatria na UFRGS e Pós-Doutorado no MRC SGDP Centre Institute of Psychiatry King’s College London, na Inglaterra, e na Universidade de Duke, nos EUA.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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