Sem definição de indicadores, novo modelo de financiamento da atenção básica do SUS é dúvida para especialistas e gestores

Sem definição de indicadores, novo modelo de financiamento da atenção básica do SUS é dúvida para especialistas e gestores

Ministério da Saúde lança novo modelo de financiamento, mas detalhes dos indicadores são necessários para avaliar o impacto nos municípios.

By Published On: 08/05/2024
Novo modelo de financiamento da atenção básica pode ser mais complexo que Previne Brasil, alertam gestores e especialistas.

O Ministério da Saúde irá adotar um novo modelo de financiamento da atenção básica na saúde pública, em substituição ao programa Previne Brasil. Anunciada em abril, a chamada “reconstrução da Estratégia Saúde da Família”, como vem sendo intitulada pela pasta, promete aumentar recursos, ampliar o número de equipes e melhorar a qualidade do serviço prestado à população, além de incluir saúde bucal e equipes multiprofissionais.

Com valores fixos previstos de 12 a 18 mil reais para cada equipe, além de variáveis relacionadas a vínculo e qualidade, de 4 a 16 mil reais, esse modelo de financiamento irá avaliar 21 indicadores para calcular o repasse aos municípios, responsáveis pela atenção básica. Isto inclui da satisfação da pessoa atendida até a resolutividade do atendimento pelas equipes multiprofissionais. Atualmente, cada equipe recebe até 21 mil reais para custeio.

Contudo, na avaliação de especialistas ouvidos pelo Futuro da Saúde, apesar de em um primeiro momento haver uma avaliação positiva, ainda há muita incerteza se esse será de fato um modelo melhor que o antecessor. Isso porque o Ministério ainda está elaborando o detalhamento dos indicadores que serão utilizados para calcular o repasse variável aos municípios. Ainda, apontam que não houve uma apresentação de dados sobre os aspectos envolvendo o Previne Brasil e o que deve ser melhorado neste novo programa.

Para o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo, continuar atrelando o repasse a indicadores, antes de focar em ampliar a cobertura da atenção básica à população, é um erro. O país possui cobertura de 79,7%, mas existem disparidades regionais que fazem com que algumas localidades tenham coberturas abaixo do necessário. Por outro lado, apontam que, ao menos, o novo modelo prevê a não redução dos repasses, o que ocorreria no Previne Brasil.

A cobertura da atenção primária à saúde é essencial para a prevenção e controle de doenças crônicas, acompanhamento de gestantes e recém-nascidos, diagnóstico precoce de doenças e vacinação. Através de visitas domiciliares e vínculo com as pessoas da comunidade, as equipes conseguem ter impacto na saúde e nos custos assistenciais. Por isso, quanto maior a cobertura, mais potencial para ser eficiente em sua atuação.

“O novo programa ainda está em elaboração. Tivemos o anúncio e uma apresentação, mas não tem ainda o nível de detalhe necessário para começar a funcionar. Tanto é que o Ministério deu até o final do ano para os municípios não se preocuparem com os novos indicadores. O tema está definido, mas os indicadores não. Ainda tem muita incerteza, mas o lançamento é algo que vemos com bons olhos”, afirma João Abreu, CEO da ImpulsoGov, organização que utiliza inteligência de dados para apoiar a atuação dos municípios na saúde.

Previne Brasil

O Brasil conta com cerca de 51 mil equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), compostas por diferentes profissionais da saúde responsáveis por realizar a atenção básica à população. Entre os vários desafios da saúde pública, o financiamento é o principal deles, sendo o repasse do Governo Federal uma das demandas mais cobradas pelos municípios.

Lançado na gestão de Jair Bolsonaro, o Previne Brasil criou estratégias para repassar parte dos recursos, atrelando a indicadores que deveriam ser cumpridos pelos municípios. Foram definidos 7 indicadores, que deveriam ser ampliados para cerca de 20 posteriormente, mas com o impacto da pandemia de Covid-19 o programa não conseguiu avançar.

Contudo, o modelo recebeu muitas críticas por parte de especialistas, gestores e profissionais de saúde. “Não é porque temos indicadores que a saúde vai ser mais eficiente. Estamos gastando mais tempo alimentando planilhas e sistemas de atenção básica do que cuidando da nossa comunidade, com medo de perder recursos. Essa foi uma crítica que sempre fizemos ao Previne Brasil. Não está mensurando a eficiência, está mensurando preenchimento de dados”, explica Tiago Texera, diretor do Cosems/SP e gestor de Promoção da Saúde de Jundiaí.

Dados do 3º quadrimestre de 2023, divulgados pelo Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB), apontam que 3 dos 7 indicadores estavam com níveis baixos de cobertura em todo o Brasil. São eles: proporção de pessoas com hipertensão com consulta e pressão arterial aferida no semestre (32%), mulheres com coleta de citopatológico (27%) e pessoas com diabetes, com consulta e hemoglobina glicada solicitada no semestre (28%).

Como os indicadores estão diretamente ligados ao repasse do Governo Federal, existe uma tensão constante dos municípios em conseguir atingir as metas. Caso não chegue ao índice estipulado pelo Governo, o gestor tem uma redução dos recursos recebidos, calculado através do desempenho. O preenchimento de dados detalhados é fundamental.

“Apesar da clareza sobre ter que perseguir os indicadores, há uma dificuldade bastante grande de monitorar, e mais ainda de conseguir melhorar cada um deles. Parte dessas dificuldades está em saber como melhorar esses índices e através de quem, quais pessoas daquele município”, explica João Abreu, CEO da ImpulsoGov.

Segundo ele, os gestores locais não possuem um jeito simples de visualizar os dados da população que deve ser acompanhada, tendo que criar estratégias próprias ou acessando os prontuários um a um. Por isso, a organização criou o ImpulsoPrevine, uma ferramenta para apoiar os profissionais de saúde a visualizarem as informações e rastrear os pacientes que precisam de acompanhamento. Mais de 80 municípios utilizam a tecnologia, com uma lista de espera que conta com mais de 800 cidades.

Situação dos municípios na atenção básica

“A gente espera que o novo modelo seja melhor que o Previne Brasil, porque nesse modelo, para um município ganhar outro teria que perder. Hoje na atenção básica 85% dos recursos são municipais, 12% da União e 3% é do Estado. De tudo que gastamos e investimos, somente 15% vem do governo estadual e federal – e é uma luta para conquistar”, afirma Tiago Texera, do Cosems/SP.

No montante, o Ministério da Saúde estima o investimento de 4,3 bilhões de reais para a expansão da atenção básica, saúde bucal e equipes multiprofissionais, sendo que esses dois últimos não estavam contemplados pelo modelo de financiamento anterior. A meta da pasta é implantar 2.360 Equipes de Saúde da Família, 3.030 Equipes de Saúde Bucal e mil multiprofissionais por ano até 2026, mas a entidade que representa os secretários municipais do Estado de São Paulo tem dúvidas sobre isso.

Em Jundiaí, por exemplo, Texera explica que cada uma das 40 equipes de atenção básica custam em média 83 mil reais ao município, sem incluir os agentes comunitários de saúde. Para o gestor, mesmo que recebam o valor máximo do repasse no novo modelo de financiamento, é pouco provável que consigam habilitar novas equipes. Isso se agrava, segundo ele, pela variação dos recursos a receber.

“Não somos contra ter indicadores, mas que não sejam de processos. Sejam indicadores que mensurem de fato que sua atenção básica está produzindo resultados melhores. Não é que não queremos ser monitorados se estamos produzindo resultados na ponta, mas precisamos de indicadores de resultados. Como atingir um resultado melhor se ainda temos baixa cobertura de atenção básica?”, argumenta o diretor do Cosems/SP.

Por isso, a entidade defende que é preciso, primeiramente, aumentar a cobertura da atenção primária, com um acréscimo dos recursos provenientes da União. No entanto, avalia que apesar de não ter todas as informações sobre o novo modelo de financiamento, ao menos o Ministério da Saúde prevê que não haja uma redução dos recursos.

“Percebemos que algumas coisas da nova política são similares ao Previne Brasil. Talvez tenha outro nome, mas os dois principais eixos estão no tamanho da população e na vulnerabilidade. A portaria diz que o valor variável vai ser através do vínculo, acompanhamento e qualificação do cadastro. Será que isso não é a captação ponderada do Previne Brasil?”, questiona ele.

Novo modelo de financiamento da atenção básica

Em podcast publicado em 24 de abril no canal do YouTube do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), o presidente da entidade, Hisham Hamida, afirma que “não estamos tendo uma mudança no modelo de financiamento, nem no modelo de cuidado. Estamos atualizando e aperfeiçoando”.

O repasse de recursos do novo modelo de financiamento será baseado em 3 principais segmentos: componente fixo por equipe, vínculo e acompanhamento territorial, qualidade e indução de boas práticas. Ainda, será calculado através do tamanho da população atendida e o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) da região. Ao invés de uma nota numérica, o município será categorizado como bom, ótimo, suficiente ou regular.

De acordo com o Ministério, o novo financiamento deve corrigir problemas encontrados pela pasta na atenção básica, como excesso de profissionais por equipe sem a real necessidade, enfoque no cadastro e o fim do valor fixo para a área, o que segundo o órgão, impacta na qualidade.

“Nunca tivemos uma visibilidade de fato de um diagnóstico ou avaliação da aplicação dos indicadores no sistema de saúde. Tem um descasamento entre aquilo que se quer fazer e aquilo que mostre o resultado daquilo que foi feito, o quanto levaram a uma mudança da resolutividade dos serviços ou adesão da população”, questiona Lucas Hernandes Corrêa, gerente do Centro de Estudos e Promoção de Políticas de Saúde do Hospital Israelita Albert Einstein.

Segundo ele, falta um detalhamento maior do Ministério da Saúde sobre os resultados do Previne Brasil para embasar uma mudança na política de financiamento. Dessa forma, além de justificar o novo modelo, poderíamos avaliar o quanto a alteração na atenção básica é melhor para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Mas em sua visão, o novo modelo pode ser ainda mais complexo aos municípios, a depender das notas técnicas que irão trazer mais informações sobre os indicadores, a serem publicadas pelo Ministério da Saúde ao longo de 2024. Por isso, é importante saber quais serão as bases de cálculos ou fórmulas utilizadas para uma avaliação mais concreta.

“O Ministério da Saúde, talvez de uma forma mais complexa que no Previne Brasil, vai entrar em uma gestão macro. Vai olhar para todas unidades de saúde do Brasil para ver como elas imputam dados e a qualidade deles. A gente precisa refletir se isso é custo-efetivo. Existe um custo do lado do Ministério para administrar e fiscalizar todas equipes de saúde da família, saúde bucal, atenção primária e multiprofissionais”, observa Corrêa, que questiona como essas informações serão devolvidas para os gestores e a população.

Para a ImpulsoGov, somente com a publicação dos critérios ligados aos indicadores será possível entender se os municípios conseguirão realizar o acompanhamento da população e bater as metas propostas para não deixar de receber recursos. No entanto, afirma que existe a possibilidade para atualizar a ferramenta de apoio aos gestores para atender as necessidades do novo financiamento.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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