Novas iniciativas buscam mudar o cenário das doenças raras no Brasil

Novas iniciativas buscam mudar o cenário das doenças raras no Brasil

Hospitais privados e SUS demandam a criação de novas unidades focadas em doenças raras para atender cerca de 13 milhões de pessoas.

By Published On: 19/07/2023
Casa e Hospital dos Raros querem mudar o cenário das doenças raras no Brasil.

Estima-se que 13 milhões de pessoas no Brasil possuem alguma das mais de 7 milhões de doenças raras. Apesar da grande prevalência, há uma escassez de centros especializados, tanto no SUS quanto na saúde suplementar. Da mesma forma, a falta de dados epidemiológicos é um entrave para entender as necessidades regionais do país. No entanto, novas iniciativas buscam mudar o cenário brasileira.

É o caso da recém lançada Casa dos Raros, em Porto Alegre, com atendimentos programados para iniciar nesta primeira semana de julho, e do anunciado Hospital dos Raros, em São Paulo, com previsão de entrega para o segundo semestre de 2027. Ambas iniciativas são filantrópicas e atuarão com o SUS e operadoras de saúde, além de fortalecer a residência médica e pesquisa na área.

O diagnóstico e atendimento de pessoas com doenças raras sempre foi considerado um desafio para o sistema, tanto pelas mais de 7 mil doenças catalogadas, como pela complexidade. Seja pela falta de profissionais especializados, a dificuldade de acesso aos serviços ou os custos de exames essenciais para o diagnóstico, a jornada de pacientes e familiares para conseguirem suporte adequado é extenuante.

Desde 2014, o Brasil possui uma política dedicada à atenção de pacientes com doenças raras no âmbito do SUS, mas apenas 22 serviços de referência são credenciados, com grande concentração nas regiões Sul e Sudeste do País. Apesar dos hospitais universitários também atuarem no cuidado, eles acumulam grandes responsabilidades no atendimento da alta complexidade e recebem um número expressivo de pacientes. O diagnóstico de doenças raras na rede pública pode levar de 5 a 10 anos.

Já na saúde suplementar esse tempo pode ser encurtado para algo entre 3 e 5 anos, pela cobertura de exames genéticos, mas também há uma falta de centros dedicados e profissionais especializados. O Hospital 9 de Julho, da Dasa, é um dos únicos que possui centro dedicados, sendo um ponto focal para diversas famílias que possuem planos de saúde. Ainda, a Dasa Genômica é o laboratório de medicina personalizada que tem tido forte atuação com doenças raras.

“Infelizmente não temos ainda o modelo adequado para atender as pessoas com doenças raras do país. Quando falamos sobre isso, a primeira coisa é ter um diagnóstico rápido para encurtar a jornada do paciente que hoje leva, desde primeiros sintomas até ter um plano de manejo, em torno de 10 anos. Cerca de 30% de quem tem doença rara genética morre antes dos 5 anos de idade.”, afirma Antoine Daher, presidente da Casa Hunter e cofundador da Casa dos Raros.

Novas iniciativas

Lançada em fevereiro de 2023, a Casa dos Raros é um centro especializado para atender pacientes e famílias de forma multidisciplinar, oferecendo diagnóstico e tratamento. Com início previsto para o início de julho, o local irá receber de 10 a 15 pessoas por dia, mas a ideia é que chegue a capacidade máxima de 100 atendimentos diários até o final de 2024.

Fundada pela Casa Hunter, organização sem fins lucrativos em prol dos pacientes com doenças raras, e pelo Instituto Genética para Todos (IGPT), já recebeu mais de 1100 inscrições de interessados em realizar tratamento no local. Em triagem inicial, verificou que 70% dos pacientes já possuem um diagnóstico, o que contribui para acelerar a jornada.

“A meta é atender o SUS com melhor qualidade que tem no privado hoje. O paciente vai ter melhor a qualidade do mundo no atendimento de doenças raras, mas feito pelo SUS gratuitamente. O SUS não vai conseguir bancar isso, então vamos ter que trazer outras fontes para bancar o atendimento, mas não deixar ninguém sem ter a melhor qualidade”, explica Daher.

Para dar conta da alta demanda e dos ganhos em eficiência, o centro pretende atuar como hospital-dia, onde o paciente e sua família irão realizar todo o atendimento, com consultas, sessões e exames. Ao retornar para a sua cidade, a Casa dos Raros segue o acompanhamento via telessaúde, além de orientar a equipe médica que trabalha no atendimento mais próximo. Isso ocorre porque, pela falta de centros especializados, muitas famílias precisam viajar longas distâncias.

A estimativa é que, em capacidade máxima, o custo para manter a Casa é de 2,5 milhões de reais. Por isso, a expectativa é que a Casa atenda 60% SUS e 40% planos de saúde, mas pretende ter outras fontes de receita que podem incluir a atuação como centro de ensino e pesquisa. O local ainda conta com 17 patrocinadores, a grande maioria farmacêuticas, que colaboraram com a construção do projeto.

“A gente precisa ter essas parcerias da indústria farmacêutica e dos laboratórios especialmente para capacitação e pesquisa, para poder oferecer tudo que é melhor para o paciente SUS. Se a indústria farmacêutica coloca no rótulo que ela tem responsabilidade social, aqui tem que demonstrar, via a casa dos raros”, reforça o presidente da Casa Hunter.

O contrato com o SUS, através da cidade de Porto Alegre e o estado do Rio Grande do Sul, está sendo assinado, assim como os diálogos com os planos de saúde avançam para que o local seja referenciado como centro especializado. Com a expectativa de comprovar a sustentabilidade do modelo de negócio, a ideia é que haja ao menos uma unidade do tipo em cada região do país – e já há negociação e conversas com outros países para replicar.

Hospital dos Raros

“A Casa dos Raros Porto Alegre é apenas a primeira unidade para a gente entender melhor, aprender, melhorar e traçar um caminho para o Brasil. Essa unidade não tem internação, cirurgias, alguns exames, como ressonância magnética, que serão feitos nos parceiros. O Hospital dos Raros será completo, tudo que você imaginar dentro de um hospital de referência, como o Einstein, terá dentro desse novo hospital, mas totalmente focado em doenças raras”, explica Daher.

O primeiro hospital dedicado às doenças raras no Brasil será construído em parceria com a Prefeitura da Cidade de São Paulo, que cedeu o terreno na região da Vila Clementino, bairro que conta com diversas unidades de referência, como o Hospital Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o GRAACC, especializado no atendimento de crianças com câncer. A Casa Hunter será responsável por implementar o projeto.

A ideia é que a unidade seja um serviço referenciado, outros hospitais deverão encaminhar os pacientes para realizar tratamentos lá. Ela deve contar com 110 leitos, andar dedicado à infusão de terapias avançadas, com internação e realização de cirurgias. Planeja ser o mais completo centro exclusivo para as doenças raras.

Como a demanda é enorme, o locall não deve suportar a necessidade regional. Por isso, pretende trabalhar com uma rede de parceiros para que possam cuidar dos pacientes de acordo com os protocolos de manejo elaborados pelos especialistas do Hospital dos Raros. No entanto, a meta é ter ao menos uma unidade da Casa ou do Hospital em cada região do Brasil, para diminuir a escassez e melhorar o acesso.

Mas para isso, é preciso que o Brasil mire a formação de especialistas e de pesquisa. De acordo com Daher, caso hoje fossem abertas 5 unidades pelo país, não seria viável iniciar as atividades por falta de profissionais. Por isso, o Hospital também almeja atuar na residência médica, aproximando os estudantes do cenário de doenças raras.

“Se fossemos esperar uma ação do SUS não ia acontecer. Estamos forçando inovação de uma forma positiva dentro do Sistema Único de Saúde, mostrando para eles que podemos atuar de uma forma bem melhor, com menos dinheiro mas com mais eficácia, trazendo mais dignidade para esses pacientes e trazendo sustentabilidade à saúde pública.”, conclui o presidente da Casa Hunter.

Rede Nacional de Doenças Raras

Composta por 40 unidades, entre hospitais universitários, serviços de referência de doenças raras e de triagem neonatal, a Rede Nacional de Doenças raras nasceu como um projeto de pesquisa não só para servir como ponto focal do atendimento aos pacientes com tais condições, mas elaborar um inquérito da situação no país.

A ideia é entender o cenário epidemiológico do Brasil: quais as doenças mais prevalentes, qual a idade média em que o paciente recebeu o diagnóstico, ano de início dos sintomas, idade, região, linha de tratamento, entre outros aspectos. Ainda, vão avaliar a capacidade dos centros especializados de atendimento, pensando no corpo clínico e na estrutura física.

“A portaria 199, que institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, fala sobre a equipe mínima com 11 profissionais de diferentes especialidades que precisam para atender os pacientes com doenças raras. Então, queremos saber se todos eles têm, mesmo aqueles não habilitados como serviços de referência. Além disso, a portaria incorporou uma série de exames genéticos especializados que até então não eram cobertos pelo SUS, então queremos analisar se estão sendo ofertados por todos os serviços. Em seguida, iniciamos os inquéritos propriamente ditos”, explica a geneticista Têmis Félix, coordenadora da Rede.

Foram 13 mil pacientes analisados no inquérito de forma retrospectiva em 2018 e 2019. A partir de 2022, 4 mil novos casos passaram a ser observados de forma prospectiva. O estudo tem previsão de seguir até 2025, por solicitação do Ministério da Saúde. A ideia é que ele sirva de base para um registro nacional.

O principal gargalo do SUS é o diagnóstico. Tanto a fila de espera para passar por especialistas quanto para realizar os exames especializados são deficiências do sistema e que podem atrasar o diagnóstico, levando um período de 5 a 10 anos. Já o tratamento é considerado um ponto positivo, apesar de haver poucos centros. O Hospital das Clínicas de Porto Alegre atende pacientes que chegam a residir a 700 quilômetros de distância.

“O Hospital das Clínicas de Porto Alegre há 40 anos atende pessoas com doenças raras. Os pacientes chegam até lá e fazemos o diagnóstico. A questão é a distribuição dos serviços especializados nas regiões do Brasil, a maioria deles estão no Sudeste e Sul. Apenas cinco serviços são habilitados no Nordeste e recentemente um foi habilitado no Norte do país, que até então não tinha um serviço de referência, explica Têmis.

Apenas 407 geneticistas atuam no Brasil, de acordo com a Demografia Médica 2023 feita pela Associação Médica Brasileira (AMB). É a especialidade com menos profissionais no país. Apesar de ter dobrado nos últimos 10 anos, o número ainda é insuficiente. No entanto, Têmis aponta que a maioria deles está no SUS, principalmente em centros especializados e hospitais universitários.

Por isso, a coordenadora da Rede vê com bons olhos iniciativas como a Casa e o Hospital dos Raros, trazendo novas opções de centros especializados que podem contribuir com o atendimento, a formação e a pesquisa. No SUS, a discussão sobre a sustentabilidade do sistema é sempre latente, e a chegada das terapias para doenças raras, que podem custar milhões de reais, vem ganhando forma.

“O sistema de saúde não tem condições de bancar. Então, a comunidade científica, os profissionais de saúde, as famílias, a sociedade civil, o Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica, vai ter que tentar resolver essa situação de alguma maneira, cada um com a sua parte, para tentar oferecer pelo menos para uma parcela da população ou pelo menos para aqueles que mais se beneficiaram” analisa Félix.

Saúde suplementar

A situação do atendimento às doenças raras é semelhante ao tratamento de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Se na saúde pública temos dificuldades, a saúde suplementar não escapa dos problemas, como a dificuldade de diagnóstico e a falta de profissionais especializados. Mas também há uma escassez de centros dedicados ao tema.

Anunciado como o primeiro centro especializado em uma instituição privada no Brasil, a Unidade de Doenças Raras e da Imunidade do Hospital 9 de Julho vem atuando para mudar esse cenário. Ela é composta por 10 equipes especialistas, além de suporte multidisciplinar, que atuam em áreas como cardiologia, reumatologia, imunologia, hematologia, entre outras. “Somente a minha equipe de imunologia, atende e acompanha cerca de 900 pacientes”, explica o coordenador da unidade, Leonardo Oliveira Mendonça, que é imunologista e alergista especializado em doenças raras.

Como o hospital pertence ao grupo Dasa, o centro dedicado acolhe os pacientes de toda a rede, sendo referenciado pelos médicos. Por ser também um dos únicos núcleos dedicados a doenças raras na saúde suplementar, é buscado por pacientes e familiares, com diagnóstico ou suspeita. Mendonça explica que é incomum que os próprios planos de saúde encaminhe o paciente.

Parte da dificuldade de construir centros desse tipo está em juntar uma equipe de diferentes especialidades, principalmente porque o problema começa ainda na graduação. “Os médicos não são formados para diagnosticar doenças raras. Ter um centro dedicado pode ser importante para fazer os médicos começarem a pensar na possibilidade e chegar a um diagnóstico”, defende Leonardo. Ainda, se tornar um local que pode ser consultado para pedir uma segunda opinião profissional. 

Do lado dos pacientes, traz eficiência para o paciente não ficar perdido na rede, realizando consultas, exames e até cirurgias desnecessárias. Existe ainda a possibilidade deles ingressarem em pesquisas e estudos clínicos com novos medicamentos. Pelas doenças raras ocorreram em 65 a cada 100 mil pessoas e não haver um mapeamento dos pacientes no país, centros especializados são importantes para agrupá-los.

Ainda, existe o lado dos critérios para a realização da pesquisa, e uma unidade estruturada por ter mais condições de ser incluída“Uma farmacêutica queria realizar pesquisa clínica para uma doença rara, mas seria preciso ter um centro especializado que atuasse 24 horas por dia. Provavelmente seremos os únicos a atuarem nesse estudo, pois temos equipe, concentramos os pacientes e funcionamos 24 horas”, observa Mendonça.

Sequenciamento Genético

Estima-se que 80% das doenças raras são de origem genética. Por isso, além de análises clínicas e exames mais convencionais, é importante que o paciente tenha acesso ao sequenciamento genético parcial ou completo. Através de uma análise feita por um geneticista é possível indicar suspeitas ou confirmar um diagnóstico.

No entanto, esse ainda é um exame pouco realizado. Além da falta de profissionais, há uma falta de equipamentos no país e o custo é elevado. Um sequenciamento do genoma completo pode custar 5 mil reais. Existem outros tipos de exames genéticos, como o sequenciamento do exoma e painéis genéticos, que podem ser indicados de acordo com a necessidade do paciente e do médico.

Pensando em favorecer essa análise e incentivar a medicina personalizada, a Dasa Genômica surgiu em 2022. A empresa atua em diferentes áreas, como oncologia, cardiologia, doenças raras e neurologia, e oferece um portfólio com 800 exames diferentes. A ideia é aumentar o acesso, mesmo que esse ainda seja um gargalo para a área.

“Essa é uma das áreas que mais avançaram nos últimos anos, no sentido dos exames se tornarem ao mesmo tempo mais eficientes e mais baratos, uma combinação interessante. Hoje em dia se consegue fazer um um exoma pela fração do preço que você fazia alguns anos atrás, porque a tecnologia avançou e também porque o número de exames aumentou muito”, afirma o geneticista da Dasa Genômica, Roberto Giugliani, que também é um dos fundadores da Casa dos Raros.

Pacientes com planos de saúde podem, em alguns casos, buscar a Dasa Genômica, de acordo com critérios estabelecidos no rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Atualmente, a Dasa trabalha com mais de 12 operadoras e tem sido buscada em casos de doenças raras. De acordo com Giuliani, existe um entendimento gradual dos planos de que os exames são importantes para trazer eficiência.

No SUS esse é um desafio ainda maior. Como explica a geneticista Têmis Félix, o sequenciamento genético está incorporado ao sistema público, seja de gene único, painéis ou exoma. “Mas nem todos os centros têm capacidade técnica de prover o exame. São muito especializadas, precisam de um equipamento específico e os insumos são muito caros, sendo esse um grande gargalo que existe”, afirma a coordenadora da Rede Nacional de Doenças Raras. Ela acredita que o governo federal deve incentivar a criação de hubs diagnósticos, seja em parceria com instituições de pesquisa, universidades ou empresas privadas.

Roberto Giuliani explica que essas parcerias com empresas já estão sendo construídas pela Casa dos Raros, o que pode ser um modelo para outros projetos. “No momento da construção do projeto recebemos doação de pessoas físicas e jurídicas. Agora, estamos no momento da operação e as parcerias também são importantes. Temos parcerias com o estado, município e estamos tentando com o governo federal. Na área privada também estamos construindo parcerias, e uma delas é com a Dasa Genômica. Nós vamos encaminhar o exame para eles, e como vai ser reembolsado vai depender se é SUS, custeado pela Casa dos Raros, ou de plano de saúde”, conclui o geneticista.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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