Nova definição de obesidade: como mudança pode impactar políticas de prevenção e tratamento da doença?
Nova definição de obesidade: como mudança pode impactar políticas de prevenção e tratamento da doença?
Estudo publicado na The Lancet propõe divisão entre obesidade pré-clínica e clínica; especialistas indicam como novos conceitos devem ser absorvidos na prática clínica
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Por décadas, a obesidade foi negligenciada e estigmatizada dentro e fora dos consultórios médicos. Em 2013, a condição foi finalmente reconhecida como uma doença crônica pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, até 2023, o Índice de Massa Corporal (IMC) era o principal critério utilizado para classificar uma pessoa com obesidade. Agora, uma comissão de especialistas publicou um documento no periódico científico The Lancet que sugere uma nova classificação da doença em estágios pré-clínico e clínico. O objetivo é auxiliar na tomada de decisões clínicas e na priorização de intervenções terapêuticas e estratégias de saúde pública.
A mudança de classificação da obesidade se dá em um cenário cada vez mais desafiador. Segundo a OMS, em 2022, uma em cada oito pessoas vivia com obesidade no mundo. No Brasil, essa prevalência também cresce: em 2023, o número de brasileiros com sobrepeso superou, pela primeira vez, o de pessoas com peso dentro da faixa regular, mostrou estudo do Instituto Nacional de Cardiologia (INC). O problema não se limita a adultos, já que o excesso de peso atinge 32% das crianças e adolescentes brasileiros, de acordo com dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), do Ministério da Saúde.
“A obesidade vem aumentando de uma forma muito acelerada, é uma epidemia. Hoje, praticamente metade da população brasileira tem sobrepeso. Nos Estados Unidos, 70% da população está nessa categoria e quase metade já apresenta obesidade. Então, vemos que esse tem sido o caminho para os países em desenvolvimento”, destaca Paulo Rosenbaum, endocrinologista do Hospital Israelita Albert Einstein. “E o grande ponto deste documento é reforçar a importância da intervenção terapêutica para aqueles pacientes que precisam, trazer esse olhar individualizado.”
Esse acompanhamento personalizado já é realidade no Einstein, que atende pacientes portadores de obesidade no Centro de Prevenção e Tratamento da Obesidade Einstein. Nele, uma equipe multidisciplinar formada por profissionais especializados no tratamento do excesso de peso (endocrinologistas, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos) atuam em conjunto para auxiliar no processo de emagrecimento, no controle de doenças associadas e ainda na orientação e no preparo para casos de tratamento cirúrgico.
Já na rede pública, essa expertise da instituição foi transferida para o Programa de Obesidade oferecido no Hospital Vila Santa Catarina, unidade gerida pelo Einstein por meio de convênio com a Prefeitura. Com o programa, é possível realizar consultas e tratamentos com nutricionistas, psicólogos, endocrinologistas e fisioterapeutas (entre outros) e, se necessário, realizar a cirurgia bariátrica – um serviço que, com cirurgia robótica no hospital, tem ajudado a desafogar a fila de espera crescente pelo procedimento no município.
Expectativa de impacto na saúde pública
Embora só tenha sido oficialmente reconhecida pela OMS em 2013, a obesidade já era avaliada nos consultórios médicos desde o final da década de 1990 a partir do cálculo do IMC, criado no século XIX. O problema é que, com a evolução da própria compreensão científica da doença, as limitações do IMC em constatar a saúde de uma pessoa começaram a se sobressair. “Não é possível fazer o diagnóstico de uma doença com base só no número, porque o IMC só vai avaliar se o indivíduo está acima do peso”, ressalta Rosenbaum.
Entre as limitações do IMC, destaca-se a falta de informações sobre a composição corporal do indivíduo, ou seja, a porcentagem de gordura e de massa muscular no corpo. Sem esses e outros dados, fica mais difícil avaliar se o indivíduo apresenta problemas metabólicos e o seu impacto na qualidade de vida, além do risco de desenvolver outros problemas de saúde.
Essa questão levou diversas sociedades médicas a discutirem por anos quais dados adicionais seriam importantes para diagnosticar a obesidade com maior precisão. Nessa linha, surgiram as medidas de circunferência abdominal, que devem estar abaixo de 88 centímetros para mulheres e 102 para homens; e a relação cintura-quadril (RCQ), que para mulheres deve ser abaixo de 0.88 e para homens, 0.90. Também foram desenvolvidas outras ferramentas, como a balança de bioimpedância e as máquinas de densitometria.
Já a comissão do periódico The Lancet propõe uma combinação entre o IMC e pelo menos outras duas medidas corporais para fechar o diagnóstico. Embora isso já seja adotado em alguns cenários clínicos, a publicação deve ajudar a pressionar o diálogo com seguradoras e órgãos de saúde em prol do tratamento da obesidade. Pode-se, por exemplo, garantir mais urgência de compra de equipamentos para avaliação mais criteriosa da doença e, também, de cobertura de intervenções medicamentosas mais recentes.
“O cálculo da circunferência abdominal ajuda, mas uma balança de bioimpedância, por exemplo, permite uma classificação muito mais adequada. Se temos um equipamento desse no hospital público, a diferença de impacto é absurda”, afirma Maria Fernanda Barca, doutora em endocrinologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Na visão dela, que é membro da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO) e da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), ao utilizar outras métricas, é possível avaliar o risco de cada paciente, refinar o tratamento e ponderar o nível de intervenção necessária. “É importante os governos terem essa visão”, acredita.
Obesidade pré-clínica e clínica: o que muda
Além da nova recomendação para a prática diagnóstica, outro ponto relevante é a classificação da obesidade em dois cenários: o pré-clínico e o clínico. Para isso, os cientistas partiram da definição da doença propriamente dita: uma condição caracterizada por excesso de adiposidade, de causas multifatoriais, crônica e sistemática, que inclui alterações na função dos tecidos e órgãos devido ao excesso de adiposidade.
O diagnóstico de obesidade pré-clínica é estabelecido quando o paciente apresenta excesso de adiposidade ainda sem comprometimento de outros tecidos e órgãos, além de um risco variável, embora geralmente aumentado, de desenvolver outras doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes tipo 2 ou doenças cardiovasculares.
Em resumo, a obesidade pré-clínica seria aquela em que, apesar do excesso de tecido adiposo, os parâmetros de exames ainda não apresentam alteração, segundo explica Sabrina Theil, nutricionista clínica e membro associada da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO).
Ela alerta, no entanto, que muitas vezes a ausência de alterações provoca uma falsa sensação de segurança no paciente. “Escuto muito no consultório dos pacientes que apresentam esse perfil: ‘meus exames estão todos dentro da normalidade, eu estou saudável.’ Mas o risco de diabetes, hipertensão, infarto e outros problemas já estão presentes. Por que esperar infartar para realizar uma intervenção de estilo de vida se é possível prevenir?”
A prevenção e intervenções focadas na educação e mudança de hábitos também são estratégias recomendadas pela publicação da The Lancet. Além disso, se sugere o monitoramento contínuo da condição pré-clínica para evitar a evolução para a obesidade clínica. No entanto, o documento não especifica quais seriam essas alternativas, o que deve ser um dos pontos a serem aprofundados nos próximos debates entre as sociedades médicas.
“Temos muitas discussões sobre se, na obesidade pré-clínica, já não é válido entrar com o tratamento clínico com essas novas drogas. Por que temos que aguardar o paciente apresentar complicações para começar a tratar?”, questiona Rosenbaum. “Na clínica, já avaliamos isso. Às vezes, a pessoa tem sobrepeso e já apresenta uma glicemia alterada ou diabetes e entramos com os análogos GLP-1, porque vários estudos já mostraram que eles ajudam na diminuição de mortalidade cardiovascular, além da melhora da hemoglobina glicada.”
Inclusão de terapias no SUS e classificação de risco
A obesidade clínica é a doença já instalada, sistêmica, com danos graves a órgãos vitais, os quais provocam impacto negativo no dia a dia do paciente e complicações com risco à vida, como ataque cardíaco, acidente vascular cerebral e insuficiência renal. Para esses casos, as recomendações são as já conhecidas, como o uso de análogos de GLP-1 e a realização de cirurgia bariátrica. Nesse contexto, o artigo do The Lancet contribui para amparar esses pacientes no acesso ao tratamento adequado.
“Esse paciente exige uma abordagem mais intervencionista, o que muitas vezes envolve o uso dessa nova classe de medicamentos. A publicação oferece insumos para que os governos avaliem a inclusão dessas terapias no Sistema Único de Saúde”, aponta Barca.
Theil complementa que os novos parâmetros devem contribuir também para a classificação de risco dos pacientes. Isso porque, ainda hoje, o principal critério de elegibilidade para a cirurgia bariátrica pelo SUS é o cálculo do IMC, que considera apenas pessoas com resultado acima de 35, de acordo com a diretriz de 2013. Essa recomendação diverge do posicionamento de outras entidades, como a Federação Internacional para a Cirurgia da Obesidade e Distúrbios Metabólicos (IFSO) e a Sociedade Americana de Cirurgia Metabólica e Bariátrica (ASMBS). Seu guideline, de 2022, recomendava a cirurgia para indivíduos com IMC a partir de 30 em determinados cenários.
“É um impacto que pode ser muito relevante para a saúde pública. Porque hoje, temos a cirurgia bariátrica como uma das opções de tratamento para pessoas com obesidade, principalmente de grau 3, já que a indicação ainda se concentra muito no IMC acima de 40. Agora, vamos conseguir classificar e priorizar aqueles que já estão com a saúde muito mais comprometida, com critérios de diagnóstico mais bem definidos”, defende a nutricionista.
O futuro da discussão sobre obesidade
Embora novas terapias estejam no radar para o tratamento da obesidade clínica – e a obesidade pré-clínica deva ganhar maior atenção –, o futuro do enfrentamento à obesidade ainda depende de ações de educação e promoção de hábitos saudáveis. Essa é a visão unânime dos especialistas, que entendem que é preciso amadurecer essas ações preventivas.
“Lógico que os novos medicamentos têm um potencial incrível, mas acredito que, primeiro, devemos focar em campanhas públicas de prevenção da obesidade, para depois pensar em custear esse tipo de terapia. Temos muitas demandas de saúde e ainda é difícil pensar em formas de sustentar o custeio desses medicamentos a longo prazo”, aponta Rosenbaum.
Theil concorda e salienta a importância dessa atuação começar ainda na infância, até mesmo como estratégia de sustentabilidade da saúde para que haja espaço no orçamento para oferta dos análogos de GLP-1. “A obesidade representa a causa de um grande volume de doenças crônicas. Quando você previne e enfrenta esse problema, você acaba melhorando a saúde da população de uma forma geral a longo prazo. Não acho que vai ser de um dia para o outro, mas é um caminho a ser percorrido. E nesse caminho, a educação alimentar dentro das escolas, com programas que favorecem o contato com hábitos mais saudáveis, é fundamental.”
Além disso, é preciso também olhar com mais cuidado para o paciente com obesidade. Nesse sentido, os esforços pela desestigmatização da condição e o acesso a um tratamento multidisciplinar também devem ser reforçados, como pontua Barca. “É preciso oferecer apoio psicológico para esse paciente, olhar para ele como um indivíduo completo e complexo e ter uma abordagem integrada, multidisciplinar. Em suma, fazer com que ele se sinta acolhido e não julgado.”
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.