Nelson Teich, ex-ministro da Saúde: “Dados deveriam ser a prioridade número 1 dos gestores públicos”
Nelson Teich, ex-ministro da Saúde: “Dados deveriam ser a prioridade número 1 dos gestores públicos”
Em edição especial do Futuro Talks, Nelson Teich apontou que os dados são a base para a definição de estratégias e trouxe informações de relatório inédito encomendado pela Roche sobre como deslocamento de pacientes com câncer pode interferir no resultado do tratamento
No cenário do câncer, diagnóstico precoce, acesso ao tratamento certo e a execução do cuidado no tempo ideal estão entre os principais gargalos. No Brasil, a jornada do paciente, no entanto, ainda é permeada por outros grandes entraves, que podem passar desapercebidos, mas que têm o potencial de impactar o resultado. Um deles é a mobilidade, ou seja, o deslocamento até o ponto de tratamento poderia colocar mais uma barreira nessa jornada. Foi esse um dos pontos da conversa com Nelson Teich, oncologista, consultor e ex-ministro da Saúde, em edição especial do Futuro Talks.
Teich participou da revisão de um novo relatório encomendado pela Roche e realizado pela empresa AT Saúde que investigou a relação do trajeto percorrido e o tratamento. Na entrevista, ele adiantou que houve uma diferença de até 1 ano de sobrevida entre pessoas que tinham que se deslocar em trajetos maiores para receber seu tratamento.
Embora os dados sejam iniciais e precisem ser replicados, o ex-ministro reforçou na entrevista a necessidade de ter em mãos informações que ajudem a estruturar políticas públicas. Segundo Teich, estruturar dados deveria ser a prioridade número 1 de qualquer gestor público, que precisaria mapear o atual status da sociedade – seja em uma cidade, estado ou país –, da infraestrutura existente, de como é a navegação de um paciente, de como estão os desfechos e de quanto recurso seria necessário para melhorar a jornada. Sempre colocando o paciente de fato no centro das estratégias.
Ao longo da entrevista, Teich ainda apontou a importância de se obter dados para utilizar os recursos com eficiência, comparou os investimentos em saúde feitos pelos países, levantou a questão da regionalização como uma possível saída – desde que se faça sem interesses políticos –, comentou sobre o papel da saúde digital nesse contexto e reforçou que os gestores deveriam olhar cada vez mais o sistema como um todo, considerando os sistemas público e privado.
Confira a entrevista a seguir:
Quando pensamos no cenário do câncer e todo o contexto atual da saúde, você acha que as coisas estão melhorando?
Nelson Teich – Sendo bem honesto, acho que a gente continua tendo muito mais proposta do que entrega. Eu não acho que melhorou. Se você olhar as dificuldades que as pessoas têm no acesso, na navegação no sistema, a falta de informação que não permite um diagnóstico preciso…eu não vi nada disso melhorar. Então, acho que é uma meta que temos que entregar daqui para frente. Eu tenho mais de 40 anos nessa área. Não tenho mais nenhum deslumbramento com promessa. Quando alguém me diz hoje que está fazendo isso ou aquilo, eu pergunto: Como era antes de você? Como ficou depois? Para quem? Qual o impacto? Como você mediu? A chance de alguém te dar uma resposta é quase zero. As pessoas falam de propostas, de ideias, como se elas estivessem entregando alguma coisa para alguém. E o que a sociedade precisa é que você realmente faça com que a vida dela melhore. E não vemos isso. O gestor tem que ser técnico. Incrivelmente, aprendemos muito pouco a pandemia. Ou até aprendemos, só não conseguimos melhorar apesar de algum aprendizado. Porque uma coisa que eu achei bem importante na pandemia é que ela mostrou todas as fragilidades e os problemas do sistema de saúde de uma forma intensa. Você teve uma sobrecarga que fez com que aquilo tudo aparecesse. O que acontece na prática? Essa mesma ineficiência, ela já existe para um monte de coisa. Na oncologia, por exemplo. Só que como ela não é visível, ela não agride como a Covid agrediu.
Porque não está todo mundo de olho para aquilo.
Nelson Teich – Você não tem diagnóstico, você não tem dado. A Covid fez todo mundo olhar para os números. Mas ninguém corre atrás do número do câncer. Você pode até ter alguns números, mas não no detalhe necessário. A informação tem que ter algumas características para ela ter valor. A primeira delas é: o que você vai mapear de dado tem que estar ligado a algum problema específico. Você tem que definir qual o problema que tem. Qual é o dado que eu preciso para enxergar. A segunda coisa do dado é que ele tem que ter uma complexidade necessária para você entender o problema no detalhe. Porque se você não domina todas as variáveis de um problema, você meio que trabalha com intuição vestida de lógica. Você não domina o problema. A terceira coisa é que não pode ter muito viés, não pode faltar dado e tem que ser o mais tempo real possível.
Na oncologia, a gente tem essas informações?
Nelson Teich – Não. Você tem alguma coisa, mas a quantidade de dado faltante é muito grande. No estudo que fizemos e que vou falar mais adiante, resolvemos mapear só até 2019, porque de 2020 em diante você vai perdendo muito tempo, sendo que 2023 não temos dado nenhum. A cada ano que passa, você tem uma quantidade menor. Na saúde, as coisas evoluem relativamente rápido. Se você tem uma coisa com uma defasagem de anos, fica difícil conseguir acompanhar o que está acontecendo, fazer um diagnóstico preciso e definir as metas e ações. Mas a informação te permite entender o que está acontecendo. Porque é uma coisa que é fundamental. O gestor tem que enxergar onde os outros não enxergam. Eu não posso tomar uma decisão vendo só quem eu beneficio, porque senão o que acaba acontecendo é que você vai trabalhar para quem bate na porta, para quem está na mídia, para quem está criando problema. O gestor de um sistema tem que criar uma forma de ter informação tão precisa, ampla e complexa que ele enxerga o sistema todo. O gestor tem que brigar por todo mundo. Ele não pode brigar por uma parte. E quando ele não consegue enxergar esse todo, quando ele não consegue mapear as necessidades da sociedade como um todo, ele não consegue enxergar onde ele prejudica.
Quando ele não enxerga onde ele prejudica, ele não é justo como gestor. E ele não tem o sistema na mão. Ele é governado pelas forças do sistema. Quem tem mais força leva. Quem fala mais alto aparece mais.
Você considera esse investimento em dados e informação uma área prioritária?
Nelson Teich – Eu diria que é a número um. A maior razão dele não acontecer é porque é muito difícil. Por exemplo, a primeira coisa que você tem que definir é qual informação precisa. Um exemplo prático: o prontuário eletrônico era um lugar para anotar e lembrar da consulta anterior, era voltado para o paciente. De repente, chegaram à conclusão de que a saúde é complexa e para melhorar o preciso de dados, aí você quer transformar o prontuário agora em um banco de dados. Só que você não cria condição para que isso aconteça. Quem vai lançar o dado no banco de dados do prontuário eletrônico? É o médico. Já nasceu morto o seu projeto. Porque o médico não tem tempo para isso. Não tem tempo, não tem paciência, não tem vontade. Então, um dos grandes problemas da informação hoje é você não criar condição para que aquilo aconteça. É tudo muito superficial e romântico. E saúde custa caro. Informação custa caro. E tem que tomar cuidado, porque você não vai pegar informação para o sistema ficar barato. Vai pegar informação para o sistema ficar melhor. Você não vai baratear o custo do sistema. A saúde só vai aumentar o custo. O que você vai fazer é usar o dinheiro eficiente e reduzir o que a gente chama de desperdício. Só que desperdício também é uma coisa vaga. Desperdício para um é uma coisa, mas para outro é receita, EBITDA e lucro. O que acontece com o sistema? Ele é eficiente? Se você pensar em dinheiro, provavelmente sim. Se você pensar em cuidado, certamente não. O sistema de saúde não quebra. Ele se adapta. Ele se ajusta.
Como o nosso SUS sobrevive tendo 10 vezes menos dinheiro do que o sistema de saúde do Reino Unido, por exemplo?
Nelson Teich – Todo sistema de saúde sobrevive. Nenhum sistema de saúde quebra ou vai à falência. O que você discute no sistema de saúde é qual é a eficiência do uso do dinheiro que você tem para você. Não importa o dinheiro que você tenha. Para as pessoas terem uma ideia disso, em 2022, o Brasil gastou mais ou menos R$ 1.900,00 por pessoa no SUS. Quando você vai para a saúde suplementar, dá mais ou menos R$ 4.700,00, R$ 4.800,00. No Reino Unido, eles gastaram mais ou menos R$ 23.000,00. Na Alemanha, R$ 28.000,00. Dinamarca, R$ 30.000,00.
Como venceremos esse cenário de dificuldade especificamente na oncologia? Como os dados podem ajudar?
Nelson Teich – Vencer talvez não, mas ajuda. Explico. Para entender um pouco, quando você fala em financiamento da saúde no Brasil, 42% mais ou menos é público, seja federal, estadual ou municipal. Os outros 58%, todo mundo acha que é saúde suplementar, mas não é. Metade é saúde suplementar, a outra metade é gasto do bolso, é out of pocket. Então, você tem três entradas de dinheiro: o público, a saúde suplementar e as pessoas gastando do bolso. E essa pessoa, se ela tem que se cotizar para pagar um exame, comprar um remédio, ela vai tirar do alimento, da moradia, da escola, de coisas básicas da vida. O nível de desigualdade é assustador. Quando você olha o Brasil, são 5.570 municípios e, se você olhar o PIB per capita, que é a geração de riqueza entre eles, do município mais rico para o mais pobre, a diferença é de 120 vezes. Por que a informação é importante? Porque ela vai permitir que o gestor use com eficiência esse dinheiro. Temos ainda alguns problemas adicionais. Por exemplo, da verba discricionária do governo hoje para esse ano de 2023, 45% é de emenda parlamentar. É um dinheiro que pode até ter boa intenção, mas não necessariamente está sendo usado da forma mais eficiente possível.
Qual informação o gestor precisa ter?
Nelson Teich – Basicamente, ele tem que saber quais são as necessidades da sociedade, o que essa sociedade precisa na oncologia, na cardiovascular, no diabetes, na reumatologia, no trauma, na doença mental. A partir disso ele vai ver o que a sociedade precisa como cuidado, seja no diagnóstico, seja no tratamento. E tratamento é tudo. É remédio, é radioterapia, é cirurgia, é cuidado paliativo. Depois, ele precisa ver qual infraestrutura ele tem. Equipamento, recurso humano, hospital, ambulatório. Na sequência, precisa saber como é o acesso. Quem consegue chegar e, quem chega, como é que ele navega no sistema? Depois, tenho que medir desfechos. Hoje, como medir desfechos é difícil, vemos às vezes a pessoa medindo mais processo do que entrega. Mas o certo é medir o que acontece com as pessoas na prática. Por último, tem que ver quanto recurso há disponível.
Então, você tem que medir, basicamente, necessidade, infraestrutura, operação e acesso, desfecho e receita. Em paralelo, você também tem que mapear o que está chegando. A saúde tem que ser sempre um projeto de longo prazo.
Você revisou um relatório que foi encomendado pela Roche e realizado pela empresa AT Saúde. Esse relatório analisou o impacto do deslocamento nos desfechos dos pacientes com câncer de mama e de colo do útero. Quais foram os principais achados e qual foi a ideia por trás desse levantamento?
Nelson Teich – Isso é uma discussão que já vinha lá atrás sobre qual o impacto da mobilidade nas pessoas. Mobilidade é a pessoa morar em um lugar, se ela consegue se tratar perto de casa, se tem que ir para outro município, outro estado. A oncologia é complexa. Temos que ter a ideia de que envolve desde o diagnóstico, passa por exame complexo, tratamento complexo. E é difícil você ter isso em cada município. Só para a gente ter uma ideia, hoje são 5 .570 municípios. Mais ou menos 69% deles têm menos de 20 mil pessoas. É tudo muito pequeno. Você não consegue ter uma estrutura de cuidado complexa para cuidar de oncologia numa cidade pequenininha. Então, você é obrigado a pensar em macrorregiões. Só que o país é muito desigual. Isso é uma coisa importante. Não tem um Brasil médio. Você tem que avaliar por região. Não é nem por região, tipo Norte, Nordeste. Você tem que avaliar por locais mesmo. E aí precisa ver para aquela região o que há de unidades habilitadas, dos Cacons e Unacons, principalmente. Hoje são mais de 300. Em teoria, a gente precisa de mais de 400. Mas como é que estão distribuídos? Como é que está o processo do diagnóstico? As pessoas conseguem chegar no diagnóstico? As pessoas conseguem chegar no tratamento?
Essa era a ideia do relatório, então?
Nelson Teich – A ideia do relatório era entender o quanto as pessoas precisam se deslocar. Agora, quando você mede o deslocamento e você tem um achado, não necessariamente aquilo é do deslocamento. Por exemplo, pode ser que quem precisou se deslocar tenha uma condição local pior e talvez o resultado dele como cuidado não seja do deslocamento, seja da condição de vida. Hoje em dia, em um país como o Brasil, você não pode deixar de discutir determinantes sociais da saúde.
Acho que vale falar um pouco o que se considera determinantes sociais da saúde. Dependendo de onde uma pessoa nasce, não necessariamente vai ter a mesma qualidade de vida que outra que nasceu em um local diferente. O que mais a gente pode falar sobre os determinantes sociais de saúde?
Nelson Teich – Nível econômico, onde a pessoa mora, educação, acesso a coisas básicas, tipo saneamento. Hoje, uma das coisas que está se colocando como um determinante social da saúde é acesso à internet. São aquelas condições de onde a pessoa mora. Por isso que saúde e economia caminham juntos. Porque, na verdade, quanto mais rico é um país, mais dinheiro você vai ter para usar na saúde, na educação, em qualquer lugar. É que a economia, às vezes, é tratada como se fosse dinheiro. Isso é um erro. A gente tem que tratar a economia como gente. Pessoas que vão se beneficiar de um país que é economicamente mais desenvolvido. Na década de 80, havia alguns estudos sobre determinantes sociais da saúde que sugeriam que a educação era um fator que gerava mais saúde que o próprio cuidado em saúde. Só que agora, com a evolução das doenças crônicas, não tem nenhum estudo recente que eu conheço. O cuidado em saúde está pesando cada vez mais.
E a mobilidade?
Nelson Teich – Este relatório sobre mobilidade é um pontapé inicial numa série de estudos que vão tentar fazer um diagnóstico da saúde no país. Porque eu acho hoje que a iniciativa privada e a indústria têm que ajudar. Eu acho que o governo tem muita dificuldade, é muito problema ao mesmo tempo. As pessoas ficam muito pouco tempo lá. Você não tem política de longo prazo. E essas coisas mais estruturantes, elas são de longo prazo. Você não pode ter um governo que entra e muda o que o outro anterior fez sem ter uma continuidade. Você tem que conseguir fazer com que aquilo aconteça na prática. E isso é difícil. Não é porque as pessoas não querem. É porque você tem que parar e criar uma condição para que aquilo aconteça. Quando se fala de informação, é preciso definir o que quer. Tem que ter uma inteligência por trás daquilo. Porque o dado puro não serve para nada. Tem que ter uma interoperabilidade muito forte.
Por isso o ideal é juntar os players, governo, saúde suplementar, iniciativa privada, academia. E ter alguém que coordene isso, que para mim tinha que ser o Ministério da Saúde. Tem que ter uma política de longo prazo.
Acho que vale entrar um pouco no específico do estudo. Só para aterrissar um pouco, o estudo fez um monitoramento de como as pessoas com câncer de mama e câncer de colo de útero acessam os serviços de saúde para os seus tratamentos. E a partir daí você definiu quanto tempo elas levam para ter esse acesso e o quanto isso impacta no desfecho. O que pode destacar?
Nelson Teich – Avaliamos o deslocamento, desfechos, lei dos 60 dias, sobrevida. Alguns números chamam a atenção. Por exemplo, independentemente do nível de deslocamento por município ou macrorregião, mais da metade das pessoas não consegue fazer a lei dos 60 dias. E essa lei tem 10 anos mais ou menos. Por isso eu falo: não adianta você criar uma lei, um projeto, uma portaria, seja o que for, se você não cria condição para que aquilo aconteça na prática. Hoje, a minha maior meta é tentar fazer com que isso realmente chegue nas pessoas. Mais importante do que diagnosticar um problema, é entender o tamanho dele, porque só saber o problema fica vago. Em um país continental como o Brasil, qual o tamanho dele nos diferentes lugares, ele não vai ser igual em todos os lugares. Onde estão os gargalos? Quais são os problemas que existem que fazem com que aquilo não funcione? Porque a tua ação vai ser específica no problema. Muito se fala de remunerar por valor. Como se tirar o fee for service está resolvido. Não vai resolver nada. Porque o problema não é esse. E tem umas palavras que são fortes e muito vagas. Valor é uma delas. Cada um acha que é uma coisa. Na prática, hoje, infelizmente, a sociedade não é o centro do sistema.
Pegando esse seu gancho do que acontece na prática e a importância de ter a clareza do cenário, está muito explícito que é preciso entender a realidade para de fato planejar o que você quer impactar. Esse item da mobilidade em saúde, por exemplo, não é uma pesquisa muito comum aqui no Brasil, não é?
Nelson Teich – Não. E tem que olhar o todo, porque a saúde você não consegue resolver por parte. Ela é um contínuo. Não adianta você fazer um super programa de diagnóstico precoce se você não tem um super programa de tratamento. Você vai criar um gargalo de gente que tem diagnóstico, mas não consegue ser tratado. A mobilidade tem um lado que é muito humano. Não é só o lado da sobrevida. É você tratar a pessoa, dar para ela uma condição mínima de conforto numa hora muito difícil. Por isso a mobilidade tem uma chamada no tratamento, mas ela tem uma chamada humana muito forte. Você tem que cuidar das pessoas, não é só tratar. E essas pessoas mais pobres, elas só têm o Estado. Essa que é a grande verdade. Se o Estado não cuidar delas, ninguém vai cuidar. Aquela pessoa vai gastar o dinheiro que tem, que podia estar usando para comida, para a escola, para uma moradia, e vai gastar o que tem. Essa pessoa precisa de um Estado forte. E o Estado tem que dar o quê? Educação, segurança, saúde, saneamento, água potável. Hoje eu preciso ajudar as pessoas no básico. Elas não têm o mínimo de conforto, de segurança, de comida, de recurso para comprar uma comida, de proteger a família. Por isso eu digo que é preciso ver a realidade, saber o que acontece na ponta.
Isso também conecta com a outra questão que você trouxe de que saúde precisa ser olhada como um todo.
Nelson Teich – Não adianta você só olhar para diagnóstico, para tratamento, para acesso, os processos. E saúde vai além do cuidado em saúde. Saúde é um cuidado de vida, não é um cuidado de saúde. Então, voltando ao estudo, por isso que mobilidade foi puxada, porque é um item que traz um lado social muito forte também. Mas toda vez que eu tenho um dado que chama a atenção, eu não vou afirmar que aquilo é por causa da mobilidade, você tem que parar para entender o número. Porque tão importante quanto você gerar um número é saber interpretar. O que aquilo quer dizer na prática? Esse tipo de entendimento da essência do problema é fundamental. Por isso esse estudo se desdobra em vários estudos adicionais que vão ser feitos.
O que mais há de destaque?
Nelson Teich – Uma coisa que chamou atenção é a diferença de sobrevida no câncer de mama. Mais de um ano de diferença para quem não se desloca. O que isso quer dizer na prática? O colo de útero tem um comportamento diferente. Nos primeiros cinco anos, quem desloca tem um resultado um pouco melhor. É pequeno. E depois, quando você vai na sobrevida ao longo de toda a curva, o não-deslocamento fica na frente. Então, uma coisa que se nota é que, primeiro, você não pode misturar doença. Tem que olhar doença por doença. Câncer é um monte de doença com um nome só. E, idealmente, você vai separar até por região. Mas, no começo, você faz de todo mundo.
E não dá para dizer exatamente que isso tem a ver com o deslocamento?
Nelson Teich – Não. Mas tem alguma coisa ali que mostra que aquela população que precisa mobilizar, que precisa deslocar, faz com que ela viva menos. Na mama, por exemplo. A gente tem que tentar entender. Primeiro, tem que validar o meu dado. Eu tenho que ter alguém que repita o estudo, que valide o que está colocado ali. Isso é uma outra coisa importante. Colaboração e cooperação é fundamental. Você não pode pegar uma coisa dessas e sair criticando. Tem que primeiro entender. Quando você vai avaliar a parte da informação, tem que analisar o que chamamos de jornada da informação. Tivemos que limitar os dados até 2019, porque nos outros anos não conseguíamos ter o dado numa qualidade mínima para poder analisar.
Ainda dentro desse contexto da mobilidade, muito tem se falado hoje sobre a importância da regionalização no contexto da saúde pública. Na oncologia, a regionalização é uma saída?
Nelson Teich – Eu acho que a macro regionalização é absolutamente essencial, ela não é uma opção. A macrorregião tem alguns desafios que são importantes. Você vai ter que juntar uma série de municípios com diferenças políticas, de interesses pessoais, pensar de uma forma suprapartidária. Quando você vai para o sistema público, se os interesses pessoais, políticos e partidários falarem mais alto, a sociedade continua não estando em primeiro plano. A gente precisa que, de verdade, a sociedade esteja em primeiro lugar. Às vezes leva um tempo, porque você tem que criar os incentivos adequados. Esse trabalho dos municípios e estados tem que ter harmonia com o auxílio do governo federal, que vai tentar ajudar a diminuir essas desigualdades que você tem no país. Se você imaginar em 5.570 municípios, há características bastante distintas. Uma coisa importante quando você pensa em governo federal é que ele consiga tentar neutralizar ou diminuir essas desigualdades todas.
Também está muito em pauta ultimamente a questão da saúde digital e do investimento na digitalização, não só da jornada do paciente, mas no acesso que ele tem à saúde via, por exemplo, telessaúde. Você acha que isso pode ser uma saída para garantir essa equidade que você trouxe agora?
Nelson Teich – Primeiro, temos que tomar cuidado em não tratar ferramenta como meta. telessaúde, digitalização, isso tudo é ferramenta, não é meta. Você tem que definir o problema, a solução que quer criar, e aí usar todas as ferramentas que existem. Mas tem que criar a infraestrutura necessária para que isso aconteça. Senão você corre o risco de ter uma coisa cada vez melhor nos lugares que já têm alguma coisa boa. Só aumenta a desigualdade. Mas eu acho que essa parte da teleconsulta tem uma coisa que me chama atenção que é o conforto para o paciente. Ele não tem que se deslocar, que ficar horas esperando. Ele está na casa dele. Mas você precisa analisar como aquilo melhora na prática. Há algumas pessoas que são apaixonadas por inovação e tecnologia. Ele foca naquilo e esquece que tem que ser usado para ajudar alguém. Mas você começa a criar soluções para tornar algo cada vez mais eficiente. Então, da mesma forma que se estuda mobilidade, é uma coisa importante porque você discute pessoas que andam horas e horas para um tratamento quando ela está em um momento muito difícil da vida. Isso é um pouco desumano. Quando você discute o atendimento à distância, você traz muito conforto. E talvez consiga trazer uma centralização de conhecimento e expansão com mais facilidade. Talvez eu consiga ter um profissional atendendo muito mais gente do que ele atenderia se ele tivesse no presencial.
E a inteligência artificial?
Nelson Teich – Eu acho que a inteligência artificial é necessária. É inevitável. Por que eu acho isso? Porque a nossa capacidade de gestão, de informação e de financiamento, não acompanha a velocidade da inovação, da complexidade e do custo. E esse gap só aumenta. Se a gente não fizer alguma coisa, o sistema vai ser cada vez mais ineficiente, mais desigual e mais injusto.
A inovação traz oportunidade de melhora de cuidado. Mas ela não te traz uma garantia de justiça social, porque a implantação dela é que define isso. E isso, para mim, quem faz isso é gestor público.
Pensando nesse cenário de inovação e de todos esses gargalos, como fazer para ter dados organizados para que gestores consigam tomar decisões baseadas neles?
Nelson Teich – Alguns dados não temos, mas a gente tem alguma coisa. O Inca traz uma previsão, uma projeção. O ideal quando você tem uma projeção é medir para ver se aquilo está batendo, até para ver se a metodologia tem que ser ajustada ou não. Se você vai na saúde suplementar, você não consegue saber quantas pessoas têm um caso. E, mais uma vez, não é uma crítica no sentido pejorativo. É só você dizer “tem que mudar”. Por quê? Porque se você hoje me diz que a saúde suplementar tem que deixar de ser gestoras de dinheiro para serem gestoras de pessoas, você tem que mostrar isso com as atitudes. Se você diz isso e, na prática, mede procedimento e dinheiro, você está tratando esse segmento como um negócio. Muito mais do que com uma linha de cuidado.
E você vê essa mentalidade mudando?
Nelson Teich – Acho que vai mudar. Vai ter que mudar. A gente vive um momento difícil. A operadora continua tendo um resultado operacional ruim. E mesmo quando você vê saúde suplementar, ela também é muito heterogênea. Seja em tamanho das operadoras, seja em resultado financeiro. Para mudar esse cenário, vai precisar entrar no detalhe. Não dá para pegar uma coisa genérica.
E a inteligência artesanal vai ajudar a organizar isso?
Nelson Teich – É uma oportunidade real. Precisamos trabalhar essa complexidade. Porque você pode até ter política para o SUS, mas a política tem que ser para um país. Tem que incluir saúde suplementar e SUS. É um erro você achar que só porque alguém tem saúde suplementar ele é bem tratado. Não é. Tem muita gente que tem saúde suplementar e não é bem tratado. Você tem que ter dado do país inteiro. Você não pode ter dado do SUS só. Tem pessoas com planos de saúde que são atendidas no SUS. Tem gente que vai perder o plano e vai ter que ser tratado no SUS. Como isso funciona? E a saúde suplementar hoje, ela não é um sistema. Ela é um conjunto de empresas, interesses distintos, às vezes opostos. Mas ela não é um sistema. Como é que você vai minimamente fazer isso funcionar dentro de um pensamento de sistema? Para mim, o Ministério deveria ter mais interação com a saúde suplementar. Ao fazer isso, não é que ele vai interação com as empresas da saúde suplementar. Ele precisa cuidar das pessoas que têm saúde suplementar. É completamente diferente. Tem que tomar cuidado para não trabalhar isso de uma forma ideológica. Se eu começo a achar que a saúde suplementar é inimiga do SUS, eu começo a criar uma briga. E começo a defender o SUS como se o outro fosse o bandido. Eu tenho que sair disso. Eu tenho que olhar para as pessoas. Não importa onde ela esteja nesse país. Eu vou cuidar de todo mundo porque é o meu dever como país, como Estado.
E você está vendo esse movimento?
Nelson Teich – Acho que não. Mas é uma coisa que tem que mudar. Porque você tem que focar na pessoa, na sociedade. Você começa a defender instituições ao invés de defender pessoas. Não pode. Tem que defender um país.
Vamos entrar agora no projeto de lei 2952, 2022, que tem como objetivo criar a lei que vai instituir a política de prevenção e controle do câncer no SUS. Como estamos e o que tem que ser feito para que esse projeto de verdade saia do papel e vire uma política de câncer?
Nelson Teich – Uma coisa que está sendo feita é que a equipe está visitando todas as unidades habilitadas. Estão indo na ponta para entender o que acontece. Isso é um começo. A segunda coisa é como a gente consegue estruturar a informação? Eu tenho que ter um dado de como é que essas unidades habilitadas estão atuando. Tenho que cruzar as unidades com as macrorregiões onde elas atuam. Conseguir enxergar o que está sendo usado na APAC. Eu tenho que conseguir enxergar como é que esse doente está recebendo radioterapia. Hoje já é obrigatório dizer na APAC o que está sendo usado, mas temos que sofisticar a informação. Tem que ter um dado aberto. Tem que ser simples. Tudo que é complicado demais as pessoas tendem a não fazer. A minha esperança em relação é em relação à implantação da lei. Como fazer aquilo acontecer na prática? E todo projeto não tem fim. Ele tem que ser ajustado ao longo do tempo. Nada começa perfeito. E a saúde é um ajuste infinito. Porque você tem doenças novas, tratamentos novos, diagnósticos novos, tecnologias novas. E isso você vai tendo uma evolução ao longo do tempo. Então, o que valia no passado não vale no presente. Hoje, a maior parte dos estudos em oncologia é voltada para doenças raras. Isso é uma coisa que o gestor vai ter que se atentar, porque a medicina personalizada só vai aumentar o custo, não vai baratear.
No fundo, vamos ter que trocar o pneu com o carro andando.
Nelson Teich – Na gestão, eu sempre digo que você tem que ter sete pilares. O primeiro deles é a estratégia. Quem é a população que você vai cuidar? Naturalmente, no sistema público, é mais ou menos fácil. É a sociedade. Mas as outras escolhas são as mais difíceis, que são até onde eu vou dar. O quanto realmente equilibrar a equidade, universalidade e integralidade. Não importa quem você seja. Se você é um brasileiro ou vive no Brasil, não importa o que você tenha, você vai ser tratado igualzinho a qualquer outra pessoa. Na universalidade, inclusive, não importa onde você esteja nesse país, você vai ser tratado igual. A integralidade é o que pega. Se eu tenho pouco dinheiro e quero tratar todo mundo igual, não importa onde ele esteja, o que eu consigo dar? E o objetivo sempre é dar o máximo possível. Então, você vai ter que fazer algumas escolhas. Onde vai colocar o recurso financeiro? Quanto vai distribuir em cada doença?
Isso já me dá o gancho para, infelizmente, a nossa última pergunta. Como você esse cenário da oncologia em 2024? Quais são as suas expectativas?
Nelson Teich – Espero que a gente consiga ter discussões, estratégia, planejamento, longo prazo, liderança e coordenação, que, para mim, tem que ser do Ministério, trabalhando muito próximo de Estado, município, saúde suplementar e da sociedade, obviamente. E qual é a definição de liderança? É aquela pessoa, aquela instituição que você prefere estar com ela do que sozinho. Líder é isso, uma pessoa ou instituição que você fica com ele por opção, não porque é obrigado. Então, o governo federal precisa se tornar a melhor opção para o Estado, município e saúde suplementar. Caso contrário, ele não é um líder legítimo. Ele é um líder imposto. E não existe líder imposto. Você precisa ter uma execução muito bem feita e acompanhada, tem que ter informação que acompanha isso tudo e tem que ter comunicação, tanto interna quanto externa. Então, seria ideal aproximar todas as esferas numa visão suprapartidária para que a gente conseguisse realmente focar na sociedade e nas pessoas. Se eu pudesse focar em alguma coisa para 2024, seria conseguir construir essa operação de colaboração. E traria também, obviamente, academia, iniciativa privada. Criar uma visão de longo prazo e de colaboração de todas essas partes seria o ponto fundamental para começar uma mudança.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.