Aumento de diagnósticos de autismo e inclusão de tratamento no rol da ANS elevam pressão sobre os planos de saúde
Aumento de diagnósticos de autismo e inclusão de tratamento no rol da ANS elevam pressão sobre os planos de saúde
Uma análise do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), […]
Uma análise do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), publicada em março, apontou para um novo achado em relação à prevalência do autismo nos Estados Unidos: uma a cada 36 crianças foi identificada com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O número, referente a 2020, mostra um aumento de 22% em relação ao dado anterior, de 2018. Apesar de não haver dados oficiais da população brasileira, estima-se que a incidência seja equivalente aos achados americanos, o que levaria a um provável número de 6 milhões de pessoas com autismo no país, entre aqueles que já possuem diagnóstico e aqueles que ainda não sabem que têm o transtorno. Este cenário tem pressionado os planos de saúde e levado ao surgimento de novos negócios em autismo.
Soma-se a isso o fato de que a pressão de famílias pela cobertura de tratamentos além do previsto no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), assim como a alta judicialização da saúde em torno do autismo, trouxe mudanças para os pacientes. Em julho de 2022, a agência reguladora ampliou as regras para o tratamento de transtornos globais do desenvolvimento, o que inclui autismo. Assim, tornou a cobertura de sessões com fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas, ilimitada e obrigatória. A ANS afirma que a decisão foi tomada após discussões do grupo de trabalho voltado ao tema, criado em 2021, e com base no princípio de igualdade.
Contudo, especialistas alegam que há falta de profissionais e serviços qualificados para realizar esse atendimento, o que abre brecha para que haja fraudes nos planos de saúde, já que ainda é uma área incipiente e com escassez de clínicas. De acordo com a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), pequenas e médias operadoras fora das regiões metropolitanas são as principais afetadas.
Por isso, a associação estimula que essas operadoras se reúnam e façam serviços próprios e regionalizados, tendo maior controle sobre a qualidade e custos. Por outro lado, há um movimento para que novos negócios com foco em autismo ganhem o mercado e sejam credenciados pelas operadoras, criando uma relação de confiança e parceria, principalmente com os altos custos e a continuidade do tratamento.
“Hoje temos muito mais pessoas com autismo do que profissionais capacitados, principalmente para intervenção. O diagnóstico acaba sendo mais pontual, mas o tratamento é ao longo da vida. Pode ter momentos que ele seja interrompido por um período, mas em relação à demanda sabemos que é constante ao longo da vida”, explica a neuropsicóloga Joana Portolese, coordenadora do Programa de Diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP).
Cenário de diagnóstico e tratamento do autismo
Portolese faz um alerta: o aumento de diagnósticos não está relacionado a uma maior incidência até o momento. Na verdade, tem a ver com um maior acesso a diagnósticos e disseminação de informação que levaram as famílias a reconhecerem os sinais precocemente, principalmente entre minorias.
Os números analisados pelo CDC mostram que houve um crescimento de 30% entre as crianças asiáticas, negras e hispânicas, sendo mais prevalente nesses grupos que entre a população branca, que possui em torno de 2,4% das crianças com autismo. É a primeira vez que essa mudança de prevalência foi identificada pelo órgão.
Com esse avanço na identificação, surge a necessidade de falar sobre o tratamento. Por ser um tratamento multidisciplinar, que envolve uma gama de profissionais, requer capacitação e serviços dedicados para o atendimento de pessoas com autismo. No entanto, há uma escassez de fonoaudiálogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos, educadores físicos, entre outros, com especialização para realizar o tratamento.
Com isso, Portolese levanta a dúvida sobre a qualidade dos negócios em autismo que têm surgido nos últimos anos, principalmente após a inclusão da cobertura ilimitada no rol da ANS. Segundo ela, o desafio é exatamente avaliar se as clínicas ou unidades especializadas oferecem o tratamento correto, com equipe multidisciplinar e carga horária adequada. E mais: “Nós não temos instituições suficientes. Tínhamos um cenário alguns anos atrás mais desfavorável porque tínhamos somente clínicas específicas. Com a questão dos planos de saúde, acaba tendo um alcance maior para que os pacientes cheguem às clínicas. O grande desafio é saber se o plano de saúde está indicando clínicas ou fazendo parcerias com unidades especializadas e capacitadas para intervenção”.
Joana integrou em 2017 um estudo que mapeou os serviços de saúde que prestavam atendimento a pessoas com autismo, dos setores públicos e privados. Foram encontrados 650 unidades em todo o Brasil, sendo que havia uma desigualdade na distribuição pelo país, com 431 serviços estando em São Paulo. Ainda, 33,6% deles eram do Instituto Jô Clemente (antiga Associações de Pais Amigos dos Excepcionais – APAE) e 30,9% eram unidades de Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi).
Também há uma discussão sobre os custos desse tratamento, que pode chegar aos 24 mil reais mensais. Com isso, existe uma discussão sobre o autismo ser visto apenas como negócio, sem levar em consideração a qualidade, segurança e efetividade dos cuidados. O valor também chama a atenção para o risco de fraudes.
Em nota, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) afirmou que “segue chamando a atenção para as consequências que mudanças regulatórias como essa [cobertura ilimitada] têm sobre a sustentabilidade do setor, ao abrir brechas para a ocorrência de fraudes e abusos, e ressalta a importância de medidas de fiscalização para coibir tais práticas”.
Planos de saúde
A questão sobre o risco de fraudes e a necessidade de serviços especializados com profissionais capacitados levou as grandes operadoras de saúde, com mais de 100 mil beneficiários, a construirem seus próprios núcleos de atendimentos a pessoas com autismo. A ideia é garantir a qualidade, evitar fraudes e manter o controle sobre os custos.
É o que afirma Cassio Ide Alves, superintendente médico da Abramge. Por outro lado, as pequenas e médias operadoras, localizadas foram dos grandes centros, tem credenciado serviços locais e afirmam que observam indícios de fraudes, elevando drasticamente os gastos e a sinistralidade, sendo equivalente ao custo de um tratamento oncológico. O tratamento para transtornos globais de desenvolvimento, que inclui o autismo, já representa 8% dos custos operacionais das operadoras desses portes.
“Em condições adequadas, duvido muito que o custo do tratamento vai chegar perto das terapias oncológicas”, afirma Cassio. Ele explica quais seriam tais condições: diagnóstico adequado, difusão de clínicas, profissionais de qualidade e em quantidade por todo o Brasil, a construção de linhas de cuidado e linhas terapêuticas claras. Por isso, a Abramge tem estimulado que as pequenas e médias operadoras se juntem para criar clínicas próprias para uso de todas de uma mesma região.
O superintendente médico da entidade avalia que o problema nasce com a mudança regulatória. “O problema de se fazer uma incorporação sem fazer uma discussão sobre a Avaliação de Tecnologia em Saúde é que você não tem uma linha de cuidado. A gente vai ter que revisitar a RN 539 e pensar em linhas de cuidados, como formar profissionais de qualidade em quantidade, na hierarquização desse tratamento, e sempre a base do nosso pensamento tem que ser o paciente”, afirma Cassio.
Até que haja mudanças por parte das operadoras, da ANS ou identifiquem eventuais distorções, as fraudes devem seguir. Cassio explica que ela ocorre da seguinte forma: clínicas ou profissionais indicam tratamentos com cargas horárias extensas, além do que o paciente precisa. Em regiões fora dos grandes centros, eles chegam a cobrar 10 vezes mais pelas consultas, dada a escassez de serviços. Com isso, o custo do tratamento fica exorbitante e coloca em xeque até mesmo a saúde e desenvolvimento da criança.
“A ANS acabou fazendo essa liberação, só que o grande problema é que não se estudou se existiam clínicas em todos os locais e profissionais gabaritados. Não vamos falar apenas de preço e sustentabilidade, isso é uma situação secundária. Temos que pensar na segurança dos pacientes. Será que essas crianças estão tendo a terapia adequada, no momento adequado e na quantidade adequada?”, conclui o superintendente médico.
Novos negócios em autismo
Vendo o aumento de diagnósticos e a falta de serviços especializados, mesmo antes da mudança de cobertura feita pela ANS, a Genial Care é um desses exemplos que surgiram de olho na demanda. Ela nasceu com o intuito de ser um espaço para o tratamento de crianças com autismo e dar segurança às famílias e aos planos de saúde. Fundada em 2020, recebeu um aporte em janeiro de 10 milhões de dólares para expandir os negócios.
Com atuação em São Paulo, a empresa tem mostrado o potencial de ampliação. “Viemos de um crescimento muito bom. Pensando que atuamos diretamente com criança faz 1 ano e meio, 2022 foi o ano em que consolidamos esse serviço, já crescemos 100% em relação ao ano passado. A meta para esse ano é crescer em 10 vezes o número de crianças atendidas”, afirma André Paz, que atua na área Comercial e Novos Negócios da Genial Care.
O trabalho é desenvolvido com crianças de até 6 anos e 11 meses no primeiro atendimento e diagnóstico ou hipótese diagnóstica de autismo. O acompanhamento envolve uma equipe multidisciplinar, com fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e psicólogos que realizam avaliação, atendimento e orientação parental, com apoio de tecnologia e da ciência.
Atualmente, a startup conta com 3 unidades espalhadas pela região central, zona oeste e zona sul da capital paulista. No entanto, os planos de expansão incluem dobrar o número de Casas Geniais (como são chamadas as clínicas) até junho e chegar a 10 unidades até o fim de 2023. A ideia não é só ampliar o negócio, mas também facilitar para as famílias o acesso, já que o tratamento pode chegar até 40 horas semanais.
Para isso, a healthtech deve focar na capacitação profissional, já que há uma escassez no mercado de profissionais voltados à especialidade. Os colaboradores atualmente já passam por um treinamento próprio, mas o serviço deve ser oferecido para além da clínica, através da Genial Care Academy, uma das frentes de expansão da empresa.
Apesar de não abrir a quantidade de planos de saúde parceiros, a startup anunciou no último mês uma parceria com a operadora Care Plus. De acordo com André Paz, a mudança na regulamentação trouxe uma mudança de comportamento nessa relação com os planos, mas ainda é preciso fazer um trabalho de educação sobre o trabalho da clínica:
“Nossa busca proativa de convênios ainda existe, mas existe uma busca pelos planos para ampliar a rede credenciada. Claro, existem planos que preferem atuar pelo reembolso, mas há operadoras que estão entendendo que é melhor atuar com parcerias, rede credenciada própria, acordos operacionais e preços negociados”.
O desafio é conseguir mostrar aos planos que o investimento, na casa dos milhares de reais, não só é importante como retorna em desenvolvimento e autonomia dos pacientes. Para isso, a Genial Care atua com modelos de remuneração baseados em resultados clínicos e, através de acompanhamento da criança com um médico do próprio plano, fornece relatório de evolução do quadro clínico às operadoras.
Outras vertentes e possibilidades
Apesar de clínicas e serviços especializados serem os principais novos negócios em autismo, existem outras áreas que podem ser exploradas. É o caso, por exemplo, da Tismoo, um laboratório de análises genéticas voltado para pessoas com autismo e outros transtornos, com foco em medicina personalizada. Criada em 2016, a biotech teve um investimento inicial de 3 milhões de reais.
Apesar de fatores genéticos e hereditários estarem associados a 90% dos casos de autismo, ainda não é possível identificar os biomarcadores por trás do transtorno, sendo que os estudos científicos publicados até o momento apontam algumas hipóteses. No entanto, a ideia da Tismoo é ser, como explica o seu diretor executivo, Francisco Paiva Junior, uma segunda camada de diagnóstico:
“A gente sabe que o diagnóstico é clínico e não queremos tirar essa responsabilidade do médico. Mas existem diversos tipos de autismo, o espectro é muito grande. E fazendo um sequenciamento genético você consegue determinar algumas coisas, por exemplo, se há alguma outra síndrome ou condição de saúde que ainda não havia sido identificada, o que pode ser determinante ao tratamento”.
Por isso, o laboratório oferece para essa população 3 tipos diferentes de exames de saliva em domicílio, o que contribui para que crianças com autismo façam o teste, já que a hipersensibilidade é uma característica do transtorno. Esses exames genéticos possuem diferentes profundidades e indicações, com valores entre 4 mil e 18.500 mil reais. A empresa ainda oferece aconselhamento genético e um acompanhamento do laudo, com atualização dos achados genéticos de acordo com o avanço da ciência.
Além de pacientes particulares, a empresa atua com operadoras. Paiva explica que alguns planos de saúde reconhecem a importância do serviço para um cuidado mais efetivo. Também existem casos que pacientes pedem reembolso aos planos e outros que, através da judicialização, conseguem ter acesso aos exames. Até o momento, a Tismoo já realizou 1 mil testes.
Questionado se a mudança sobre o rol da ANS para a cobertura ilimitada de tratamento para TEA trouxe impacto ao trabalho da empresa, o diretor executivo afirma que outra medida da agência trouxe novos pacientes. “Foi quando incluído o sequenciamento de exoma para a investigação de deficiência intelectual sem uma causa definida, o que acontece de acordo com a literatura científica em mais ou menos 1/3 das pessoas com autismo, mas esse número ainda não é muito consistente e não temos estudo no Brasil sobre o tema”, explica Paiva.
A empresa já tem buscado a ampliação dos negócios em autismo, com dois novos produtos em testes e que devem ser lançados em breve. O primeiro é uma linha de coordenação de cuidado para pessoas com autismo, que também deve ser oferecida aos planos de saúde. Outro, que está em produção, é uma plataforma para ligar pesquisas clínicas a pacientes com autismo. Também existe a Tismoo.me, uma rede social integrada a um prontuário médico, que está em funcionamento e já conta com 5 mil pessoas.
Para o diretor executivo, existe espaço para novas empresas voltadas para esse público, beneficiando famiílias, profissionais da saúde e principalmente, os pacientes: “Se eu estou com problema no coração, eu vou querer ser operado por um médico especialista, e um cirurgião cardiologista vai ser o mais indicado para fazer isso. No neurodesenvolvimento é a mesma coisa. A gente tem diversos laboratórios de genética que são generalistas ou especialistas em câncer na maioria dos casos. Ter essa profundidade do autismo e do neurodesenvolvimento é um olhar diferente, porque também é uma genética que tem suas especificidades”.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.