Se a conversa mudar, nós podemos

Se a conversa mudar, nós podemos

O diretor-executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), Antônio Britto, escreve sobre as mudanças necessárias ao sistema de saúde brasileiro.

By Published On: 03/12/2024
mudanças no sistema de saúde exigem outro foco na conversa

Foto: Freepik

Um antigo professor, nos meus tempos de Julinho, escola pública de Porto Alegre, tinha uma tese curiosa. Segundo ele, a tradição de avaliar uma pessoa ou fato dando notas de 0 a 10 induzia a um erro importante: pensar que algo possa ser tão ruim que justifique um 0 ou tão positivo que mereça o 10 da perfeição. Propunha que não fôssemos tão eufóricos a ponto de passar do 7, nem tão pessimistas a sermos levados abaixo do 3.

Difícil, professor, será convencer o pessoal do sistema de saúde do Brasil a aplicar sua proposta “3 a 7”. A subordinação das análises sobre o sistema de saúde no Brasil à ideologia ou ao interesse partidário e eleitoral, no caso do Sistema Único de Saúde (SUS), ou à priorização de interesses segmentados no setor privado, impede a cautela sugerida. Dependendo da posição ou do interesse, são largamente distribuídas avaliações otimistas que escondem problemas ou prefere-se ver apenas as dificuldades, omitindo-se possibilidades. Ou, como se tem acompanhado mais recentemente, pretende-se buscar a solução para apenas um dos problemas. O sofrido por quem fala…

O resultado fica visível pelo saldo final dos debates: uma reiteração monótona dos próprios pontos de vista, o que, obviamente, impede a formação de consensos ou ao menos maiorias sobre o que quer que seja. E sem qualquer consenso, não avançamos em nada. O debate em saúde gira em círculos.

Quem lembrará da última grande mudança em matéria de saúde, sistema público ou suplementar? Qual foi a legislação ou regulamentação recente que deu um passo transformador para o sistema?

A ausência de respostas apenas faria sentido se estivéssemos pensando que o sistema de saúde brasileiro não precisa de ajustes, aperfeiçoamentos ou mudanças. Nesse caso, como explicar que todos – do paciente aos governos, do SUS aos agentes privados – queixem-se o tempo todo?

Se estamos insatisfeitos e não andamos em direção às transformações, é porque a forma como debatemos e tentamos construir diagnósticos e, especialmente mudanças, não está funcionando, salvo pouquíssimas e muito setorizadas exceções. Ou porque a situação não é tão ruim quanto denunciada. Os pacientes para quem todos trabalhamos concordam?

Além de se defender do aumento de impostos, deveríamos querer que as mais de 30 entidades do setor de saúde suplementar estivessem organizadas em torno de alguns pontos, apenas alguns poucos, sobre a estrutura geral do sistema. O setor privado, porém, admitamos, construiu formas de representação que estimulam a segmentação e, esta, trabalha na direção contrária à discussão do que seja comum a todos. No fim do dia, inibe a elaboração de propostas e mantém como pautas apenas as de cada segmento.

Uma visita ao setor público e o cenário, diferente em suas características, repete-se nas consequências. O SUS, nascido de uma necessária e generosa determinação constitucional, tornou-se um dogma que impede avaliações críticas, atualizações e propostas de aperfeiçoamento diante de um mundo que se transforma a cada dia. Ou se aceita o sistema público como ele é ou se é inimigo do SUS. E, de novo, não se avança, inclusive para fortalecer o SUS.

A consequência desse cenário pode ser constatada facilmente: entra ano, sai ano e a discussão não muda. Não muda, porque não avança.

Uma nova pergunta. Há quantos anos a pauta dos eventos, debates e entrevistas é composta pelo cardápio antigo: integração público-privada; falta de prevenção e promoção em saúde; dificuldade para medir e remunerar serviços pelo valor que aportam; subfinanciamento do setor público; formação inadequada de médicos e profissionais de saúde; insuficiente uso de dados para gestão de saúde; linhas fragmentadas de cuidado, desperdiçando recursos e vidas; etc e etc.

O ex-presidente Obama tornou famosa a expressão “sim, podemos”, palavra de ordem para estimular que é possível transformar a realidade, avançar, seguir em frente. Nós, aqui, parecemos estar no “não, não podemos”. E por isso não há o registro de muitas iniciativas que reúnam a todos para ouvir e não apenas falar. E andamos em círculo.

Pessoalmente, sigo o professor do Julinho. Não acho que estejamos no zero. Apesar de tudo, o sistema público avançou nos últimos 35 anos e não se pode desconsiderar o quanto de positivo é oferecido ao País pelo sistema de saúde suplementar. Mas, e aí uma divergência importante com muitos respeitáveis formadores de opinião do setor, não vejo a energia no sistema de saúde para enfrentar os desafios que deixamos se acumularem nos últimos anos. Não de graça, o personagem mais ativo em decisões sobre o setor passou a ser o Judiciário, por inapetência ou impotência dos demais.

O sistema de saúde, apesar de tudo, teve dinamismo e força para nos trazer até aqui mostrando conquistas importantes. A reiteração de problemas, hoje, parece indicar que, ou promovemos transformações ou seguiremos, cada vez com mais dificuldade para avançar. Entre o 3 e o 7, sim, nós podemos. Desde que se mude a forma como se discute saúde.

Antônio Britto

Formado em jornalismo e direito, chefiou redações em diversos veículos de comunicação do Rio Grande do Sul e na Rede Globo em Brasília, onde trabalhou como repórter e comentarista político. Foi secretário de imprensa da Presidência da República com Tancredo Neves. Como político, exerceu mandatos como Deputado Federal constituinte, Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, Ministro da Previdência Social e Governador do Estado do Rio Grande do Sul. No setor privado, presidiu a Azaléia Calçados, foi Diretor Institucional da Claro, e Diretor Executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). Atualmente é diretor executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).

About the Author: Antônio Britto

Formado em jornalismo e direito, chefiou redações em diversos veículos de comunicação do Rio Grande do Sul e na Rede Globo em Brasília, onde trabalhou como repórter e comentarista político. Foi secretário de imprensa da Presidência da República com Tancredo Neves. Como político, exerceu mandatos como Deputado Federal constituinte, Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, Ministro da Previdência Social e Governador do Estado do Rio Grande do Sul. No setor privado, presidiu a Azaléia Calçados, foi Diretor Institucional da Claro, e Diretor Executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). Atualmente é diretor executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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