Mercado de cannabis se autorregula enquanto aguarda revisão da Anvisa
Mercado de cannabis se autorregula enquanto aguarda revisão da Anvisa
Mercado de cannabis aguarda revisão das resoluções da Anvisa para avançar e trazer mais segurança jurídica.
Ao longo de 2023, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mostrou que está atenta ao mercado de cannabis medicinal no Brasil. Isso foi visível ao proibir em julho a importação de derivados da planta in natura e ao apontar possíveis irregularidades na publicidade de produtos deste tipo. Sendo um mercado novo no país e tendo uma regulamentação provisória, já que os produtos derivados de cannabis ainda não passam pelo processo regulatório dos medicamentos, onde se comprova eficácia e segurança, existe uma percepção que tanto o setor quanto a agência estão aprendendo conforme avançam.
Contudo, empresas que trabalham no ramo defendem que é preciso avançar nas regulamentações que orientam o tema no Brasil. Criada em 2019, a RDC 327 é o principal instrumento sobre importação, comercialização e prescrição de cannabis no país, e tinha previsão de ser revista após 3 anos. Por isso, consta como um dos objetivos da Agenda Regulatória 2021-2023 da Anvisa.
A pandemia de Covid-19 pode ter impactado na decisão da Agência adiar a revisão, uma vez que afetou o trabalho das empresas do ramo e todos os esforços do órgão foram voltados aos medicamentos e vacinas contra a infecção. Por isso, a expectativa é que essa revisão chegue em 2024.
As revisões vão servir para orientar de forma objetiva as empresas, reduzindo questões de interpretação. Podem ainda trazer mais segurança jurídica para farmacêuticas, marketplaces, importadoras e outros negócios de cannabis, que vão ter um texto ainda mais detalhado para se basear.
“Todas essas movimentações da Anvisa são como uma resposta à autorregulação que o próprio mercado impôs. Com uma certa maturidade estabelecida nesses últimos anos, até pelas inovações que foram trazidas por força da RDC 327 e também com as modificações do texto da RDC 660, a Anvisa teve mais segurança e mais visibilidade sobre aquilo que funciona e o que não funciona neste setor, que querendo ou não no Brasil ainda é bastante incipiente” observa Bruna Rocha, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCANN).
Questões com a Anvisa
As regulamentações no Brasil para os produtos derivados de cannabis, como os óleos de canabidiol (CBD), pede que as empresas solicitem autorização sanitária para a comercialização no país. Isso ocorre porque eles não possuem em geral pesquisas clínicas que comprovem sua eficácia e segurança. Contudo, elas devem ser apresentadas em 5 anos após a autorização e o óleo passar a ser registrado como medicamento.
Por isso, pode ocorrer dificuldade de interpretação para o mercado sobre as regras que devem seguir para esse tipo de produto. “Na regulação, está muito claro o conceito do que é um medicamento aprovado pela Anvisa, e aí as regras se aplicam sobre propaganda de medicamento, canais de distribuição e vendas. Isso está bem mais definido. Essas duas resoluções da cannabis criaram uma zona meio cinzenta, porque a cannabis é um fitoterápico e tem um posicionamento como um medicamento”, explica Allan Paiotti, CEO da Cannect.
Sendo um mercado relativamente novo no Brasil, com 5 anos de autorização para venda e fabricação, algumas regras ainda geram dúvidas ao setor. Da mesma forma, a Anvisa vem atuando para tomar decisões no sentido de impor limites a esse mercado e trazendo esclarecimentos para a sociedade, como ocorreu em 2022 ao soltar nota reforçando que é proibido ter um delivery que venda esse tipo de produtos no Brasil.
A Cannect, que atua como marketplace e faz coordenação do cuidado, é uma das empresas que se envolveu recentemente em uma questão regulatória. A Anvisa a notificou sobre a existência de propaganda regular, solicitando a retirada do ar. Allan explica que se tratava de um desconto do tipo “compre 2 pague 1”, feito por uma fabricante. Contudo, o CEO defende que apesar de entender que a publicidade seja proibida, esse tipo de divulgação é feita por farmácias para outros medicamentos.
Por conta de uma publicação no Diário Oficial da União, a solicitação da Anvisa fez parecer que houve uma proibição do funcionamento do marketplace como um todo, e não apenas o pedido de remoção da propaganda. O assunto ganhou força após ser divulgado em sites de notícias, mas Paiotti aponta que toda a questão é mais corriqueira e simples do que pareceu.
“Como as pessoas não enxergam a notificação que eles nos enviaram, parece que o pedido está ancorado em algo que seria proibido de vender. Não é isso. Se a gente não fizesse isso no prazo, eles poderiam punir de alguma maneira. Na prática, fizemos o que a Anvisa pediu, respondemos e confirmamos dentro do prazo. Fizemos também um pedido para uma reunião, que estamos aguardando resposta. Mas estamos operando normalmente, não tem restrição de venda”, explica o executivo.
Sobre flores de cannabis e outras partes in natura, a Anvisa publicou uma nota técnica apontando que, considerando “o alto grau de risco de desvio para fins ilícitos e a vigência dos tratados internacionais de controle de drogas dos quais o Brasil é signatário”, não seria permitido a importação. Paiotti afirma que anteriormente, apesar de ser proibido na RDC, o entendimento da Anvisa era que se podia importar.
A Cannect era uma das empresas que faziam essa importação e aponta que 20% das prescrições eram glosadas, porque existia suspeita de não ser para fins medicinais. Contudo, Allan defende que a proibição pode afetar os pacientes que precisam dos produtos, já que a eficácia é mais rápida que a do óleo. “Poderíamos ajudar a Anvisa a reforçar o processo de checagem e regulação para poder tentar conter isso e eliminar os excessos. Mas a Anvisa estava sob muita pressão e acabou indo por uma ação um pouco mais radical. Mas acho que é parte do processo de amadurecimento”, observa.
Autorregulação do mercado de cannabis
“É esperado que a Anvisa leve para o papel todas as iniciativas que têm implementado ao longo deste ano em vista da maturidade e autorregulação. Hoje, no final das contas, é transcrito em iniciativas, medidas cautelares, processos administrativos e judiciais, que em determinado momento acabarão no texto de uma regulação. Porque é importante até para fins de segurança jurídica e transparência de todo ato administrativo, que aquilo que dita o setor esteja claro e uniforme para todos aqueles que operam neste ambiente”, afirma Bruna Rocha, presidente da BRCANN.
Também há uma percepção que pelo setor ser novo no país, ter atraído investimentos e executivos de outras áreas, existe uma visão mais aberta para propor mudanças, principalmente em um cenário onde a regulação ainda é nova. Por isso, o acompanhamento sobre o que pode ou o que não pode tem sido feito de perto.
“As primeiras pessoas que entraram nesse mercado anos atrás, com essa visão de produto, vieram de uma experiência da indústria farmacêutica e tendem a olhar as regulações com a experiência e o viés desse setor, que é muito mais regulado e restrito. Com pessoas de outras experiências de mercado, como o meu caso que vim da saúde, começamos a questionar e analisar a regulação”, relata Allan Paiotti, CEO da Cannect, que já atendeu 30 mil pacientes.
Em um setor que vem crescendo cada vez mais e ampliando sua receita, a atenção para os desdobramentos da revisão da regulação é duplicada. A venda de produtos derivados de cannabis cresceu 304% em 2022. Ainda, 13 estados brasileiros já possuem leis que aprovam a distribuição pelo SUS. Dados da Anvisa de julho deste ano apontam que a importação cresceu 93% nos 12 meses anteriores.
Além das regulações da Anvisa, existem projetos de lei que tramitam no Congresso que podem mudar o mercado, como o PL 399/2015, que autoriza cultivo da cannabis em território brasileiro por empresas para fins medicinais. Apesar de estar parado na Câmara dos Deputados, a proposta vem sendo defendida pelo ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira (PT).
Com um mercado em desenvolvimento e um enorme potencial, espera-se que, além das questões regulatórias para aumentar a segurança jurídica, se avance nas questões ligadas à comprovação de eficácia e segurança, trazendo evidência científicas que mostrem para quais condições a cannabis pode contribuir de fato.
Manipulação
De olho no mercado de cannabis, as farmácias de manipulação esperam ser incluídas na revisão das regulamentações. Vedadas nas RDC, elas têm conseguido autorização na justiça, através de liminares, para trabalhar com as substâncias derivadas da planta.
“Essas empresas compram matérias-primas com grau farmacêutico, que passou por crivo de qualidade por uma importadora, e produzem os medicamentos conforme a dosagem e forma que o médico pediu. A Anvisa sinalizou que as farmácias de manipulação serão contempladas, não serão mais proibidas”, afirma Claudia Mano, advogada especialista em regulamentação e fundadora da Farmacann, a associação para promoção da Cannabis Medicinal Manipulada/Magistral.
Ela defende que as farmácias de manipulação seguem regras parecidas com a indústria farmacêutica, e portanto deveriam ser liberadas para comercializar e manipular a cannabis. A advogada afirma que mesmo produtos envasados não são permitidos nesse setor, o que em sua análise não faz sentido.
“Já consegui várias liminares para que farmácias possam trabalhar com cannabis. A judicialização ajuda a despertar o governo de que existe uma movimentação e precisa resolver isso. São 8.800 farmácias de manipulação hoje no Brasil impedidas de trabalhar com cannabis. Minha grande expectativa é que caia essa proibição na revisão da RDC”, aponta Mano.
A advogada ainda argumenta que esse novo setor de cannabis no Brasil ainda não está adaptado à regulamentação, algo que, segundo ela, as farmácias de manipulação já atuavam sob forte olhar da Anvisa. Por isso, afirma que a revisão das resoluções são essenciais.
“As empresas que atuam com intermediação, de acordo com a RDC 660, formaram um mercado muito grande em torno de uma estrutura regulatória excepcional. Existem dificuldades deste mercado em entender algumas regras, como que não se pode fazer propaganda de cannabis porque é produto controlado, que está na lista de drogas entorpecentes ou psicotrópicas”, observa.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.