Meiruze Sousa Freitas, diretora da Anvisa: “Agência precisa ser vista como estratégica para o país”

Meiruze Sousa Freitas, diretora da Anvisa: “Agência precisa ser vista como estratégica para o país”

A especialista em regulação na Anvisa conversou com o Futuro da Saúde em Brasília sobre os 25 anos do órgão, a maturidade da agência reguladora e os desafios como a falta de profissionais

By Published On: 10/06/2024
Meiruze Sousa Freitas, diretora da segunda diretoria da Anvisa

Meiruze Sousa Freitas, diretora da segunda diretoria da Anvisa

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), um dos órgãos mais importantes para o Sistema Único de Saúde (SUS), completa 25 anos em 2024. Reconhecida internacionalmente como uma instituição segura, que valoriza dados e evidências científicas, a Anvisa desempenha um papel crucial no desenvolvimento do parque farmacêutico no país. Em entrevista exclusiva em Brasília, Futuro da Saúde conversou com a diretora Meiruze Sousa Freitas, servidora de carreira da Anvisa desde 2007.

Durante a entrevista, Meiruze falou sobre a trajetória da Anvisa, as evoluções no setor da saúde, a aproximação com universidades e startups, o dimensionamento atual da equipe, prazos de aprovação de medicamentos, o PL das pesquisas clínicas, os desafios e o futuro da agência. Ela também comentou a relevância internacional da agência: “As regulamentações do Brasil não deixam a desejar em relação a padrões de requisitos de qualidade, eficácia e segurança quando pensamos no cenário internacional”.

Criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, a Anvisa é uma autarquia sob regime especial, com sede no Distrito Federal. Sua função é proteger a saúde da população por meio do controle sanitário de produtos e serviços, tanto nacionais quanto importados. Durante a pandemia da Covid-19, a agência ganhou destaque no âmbito das vacinas. No entanto, ao longo dos anos, enfrentou o esvaziamento de seu quadro de servidores, que se configura como um de seus principais desafios atualmente. Em 2007, a Agência contava com cerca de 2,7 mil servidores, número que hoje se reduziu para apenas 1,5 mil.

A conversa faz parte de uma série de entrevistas realizadas pelo time do Futuro da Saúde em visita recente à Brasília. O link com todos os materiais pode ser acessado aqui.

Confira a entrevista a seguir:

Qual sua avaliação geral desses 25 anos de Anvisa?

Meiruze Sousa Freitas – Foi uma grande transformação quando pensamos numa agência que tem só 25 anos. Há momentos em que precisamos fazer uma reflexão, tanto do ponto de vista da segurança sanitária quanto da questão de entrada de produtos, do fortalecimento do nosso mercado, especialmente em relação aos medicamentos, às terapias avançadas, aos produtos para a saúde e, inclusive, aos alimentos, que também são um suporte para a saúde. Vemos o quanto a Anvisa conseguiu avançar nesses 25 anos. Isso foi impulsionado pela sociedade e pelo próprio setor. Quando a agência foi pensada, especialmente com a liderança e participação de Gonzalo Vecina, acredito que nem ele tinha a dimensão do quanto essa agência, em sua origem, iria se expandir. Hoje, a Anvisa tem uma atuação forte no cenário nacional e também está se projetando no cenário internacional.

Como você vê ela hoje?

Meiruze Sousa Freitas – Em 25 anos nós conseguimos ser uma autoridade inclusive de referência, não só aqui para o nosso mercado interno e regional, mas também quando sentamos junto com mercados mais regulados, mais fortes e países mais ricos, especialmente quando estamos falando dos Estados Unidos, a própria União Europeia, Japão, Canadá, países que tinham uma estrutura regulatória centenária. Isso nos dá orgulho também de ter conseguido vencer essa corrida e nos colocar hoje nos principais fóruns farmacêuticos do mundo, seja de produtos para saúde, medicamentos e também dentro do Codex Alimentarius (conjunto de padrões alimentares adotado internacionalmente), onde coordenamos grupos. Então, houve um crescimento exponencial da agência e que essa agência, teoricamente, não foi projetada para esse crescimento. Estamos também tendo que repensar o tamanho da agência dentro de um contexto de mudança organizacional, incluindo a necessidade de novos recursos humanos. Aquela agência que foi projetada para um número de servidores da carreira não é mais adequada para o cenário econômico e de saúde atual. É um desafio manter essa qualidade, especialmente para garantir que os produtos e serviços de saúde no Brasil atendam aos padrões de qualidade que nossa população merece, ao mesmo tempo em que a economia não seja prejudicada. Precisamos ser vistos como uma agência estratégica para o país.

Como a Anvisa está lidando com os novos desafios e evoluções no setor da saúde, especialmente com a chegada de novas tecnologias e regulações? E como você está abordando essa questão organizacional?

Meiruze Sousa Freitas – Eu diria que, especialmente hoje, temos feito a modernização das nossas regulamentações. As regulamentações do Brasil não deixam a desejar em relação a padrões de requisitos de qualidade, eficácia e segurança quando pensamos no cenário internacional. Temos buscado velocidade para modernizar o nosso marco regulatório, mas cada atualização que fazemos também tem um impacto aqui. Precisamos deslocar pessoas para avaliar os produtos, especialmente as novas terapias e os ensaios clínicos de acordo com esses novos regulamentos. Isso nos coloca em um processo de reorganização. Estamos trabalhando ainda mais forte em avaliações de benefício e risco, especialmente avaliações baseadas em risco. Tentando simplificar pontos que podem ser simplificados, considerando a maturidade que nós já temos do mercado, do que nós já regulamos, do que nós já conhecemos. Cada vez mais, temos normas técnicas mais elaboradas, mais claras, mais evidentes. O setor regulado também amadureceu nesse sentido de cumprimento de regras, de compliance. Está na hora também de pensarmos em alguns pontos que podemos tirar um pouco a mão, fazer uma avaliação mais baseada em risco. Temos buscado repensar normas, inclusive de você qualificar algumas empresas baseadas em risco. Isso favorece que as empresas tenham que cumprir todos os requerimentos para comprovar o seu produto, mas não necessariamente eu preciso chegar perto e fazer uma avaliação muito bypass, muito certeira em cada etapa desse processo.

Como isso poderia ser feito?

Meiruze Sousa Freitas – Eu posso acreditar um pouco e ir nos pontos mais críticos e fazer uma avaliação. Trabalhar um pouco em produtos mais simples, porque nesse mercado que temos uma terapia avançada, também tenho uma dipirona que já conhecemos, é um fármaco seguro, um produto que já tem menor risco das suas exposições. Empregar essa força maior nos produtos de maior complexidade e, dentro desse desafio que temos nos colocado agora, reorganizando, buscando acompanhar as inovações do seu nascedouro. Especialmente nas universidades, nas startups, garantindo que eles já sejam capazes, desde o seu nascedouro, de atender os requisitos regulatórios de forma que você também reduza os custos no financiamento, porque não precisa repetir ensaios, testes. E aí vira um produto que sai dos papers, das publicações, e se torne realmente um produto de prateleira, que vai estar disponível no hospital e nas farmácias.

É uma mudança de paradigma.

Meiruze Sousa Freitas – Sim, é uma nova mudança de paradigma que a Anvisa quer se aproximar das universidades. Isso foi um legado da pandemia. Porque durante a pandemia percebemos inclusive vacinas sendo desenvolvidas nas universidades brasileiras, mas elas estavam muito distantes desse conhecimento regulatório, que para muitos era visto como burocracia. Quando isso se aproximou delas, elas entenderam que não, não é burocracia, é um requisito científico para comprovar que o produto delas possa chegar a ser utilizado na população. Temos divulgado alguns editais. O primeiro foi um edital de terapia avançada bastante interessante para acompanhar até mesmo um produto mais estruturado, que era do próprio Instituto Butantan. Depois, um edital voltado para as startups. Mas qual é a nossa fragilidade? Fizemos isso como um movimento regulatório na tentativa de conhecer e nos aproximar. Ao mesmo tempo, temos uma capacidade operacional pequena, porque tenho aqui produtos já para serem avaliados. Tentamos organizar esse processo com uma capacidade inadequada, mas não deixamos de fazer. Ainda há um pouco dessa missão que precisamos cumprir. Precisamos liderar o tema, mas chega um ponto em que isso vai acabar saindo pelas mãos se não for visto de forma pensada, planejada e considerando onde o Brasil precisa atuar.

Há outros projetos em andamento com startups e universidades?

Meiruze Sousa Freitas – Outro projeto que ainda está aqui, e estamos pensando, é o seguinte: ter alguns projetos mais sólidos para que não saia mais via edital, mas um trabalho geral de orientações para as startups sobre os caminhos regulatórios. Temos uma página também mais amigável para as pessoas das startups, porque percebemos que é uma das grandes estratégias para o país inovar e que precisamos ajudar nesse sentido. E há muito trabalho interessante, especialmente utilizando propostas de terapias, não só para doenças raras, mas também para doenças negligenciadas, com alta mortalidade. Tem muita coisa interessante acontecendo nas universidades, só que não gostaríamos que isso ficasse em um projeto, mas que se consolida em um modelo muito parecido com o que a União Europeia adota. Também vamos buscar o que acontece no mundo e tentar aproveitar ao máximo estratégias já testadas, já conhecidas, inclusive de parceiros regulatórios que têm uma capacidade operacional melhor do que a nossa. Então, observamos o que o mundo vem fazendo e o modelo da Europa, na nossa opinião, é um dos mais interessantes e aplicáveis. Eles têm escritórios de inovação para apoiar pequenas e médias empresas. Com essa ação que a Europa fez, conseguiram elevar para 80% a aprovação de produtos provenientes dessa cadeia. Isso nos trouxe um modelo que o Brasil pode adotar, e no meio desse caminho, faremos os ajustes, considerando nossa realidade, para que consigamos também, nesse sentido, apoiar o desenvolvimento de pesquisa clínica no Brasil.

Temos potencial para aumentar pesquisa clínica no Brasil?

Meiruze Sousa Freitas – O Brasil hoje é um hub interessante para pesquisa clínica, mas hoje conduzimos praticamente a terceira etapa da pesquisa clínica. Mas achamos que o Brasil tem condições de entrar e ser um ponto também importante para desenvolvimento clínico completo no país. Ainda temos uma grande deficiência para desenvolvimento de pesquisa clínica Fase 1 no Brasil e, às vezes, mesmo para quem está querendo inovar no Brasil, tem que fazer um fórum. Isso aumenta o custo da pesquisa. Achamos que precisamos também trabalhar nessa cadeia para favorecer a condição de pesquisas clínicas aqui no Brasil, mas não se pode trabalhar sozinho. Então, ela tem que trabalhar entendendo o seu papel de regulador, mas também se aproximar dos órgãos, seja do Ministério da Saúde, Ciência e Tecnologia, das universidades para que tenhamos um ambiente no Brasil que chamamos de ‘ecossistema da inovação’ e que consigamos ser parte desse ecossistema também para impulsionar a inovação no país.

Sobre a quantidade de servidores na Anvisa para lidar com todas essas demandas, é evidente que há um desafio em conciliar a carga de trabalho com o número de funcionários disponíveis. Qual seria o cenário ideal em termos de quantidade de funcionários para a agência?

Meiruze Sousa Freitas – É fato que hoje, por exemplo, na área de registro de medicamentos e pesquisa clínica, tenho um déficit de 35% de pessoas em relação ao que tínhamos em 2007. Na Anvisa como um todo, e isso acaba refletindo nessas áreas também, temos um déficit, pensando em 2007, de mais de 1.100 pessoas. Portanto, o déficit de pessoal é notório, e ele vem sendo endereçado especialmente para o governo desde a época do governo de transição. Fizemos reunião com o governo de transição, isso é público, e também endereçamos especialmente ao Ministério da Gestão e Inovação, ao Ministério da Saúde, ao próprio MDIC, que tem uma interface com o tema do Complexo Industrial da Saúde, e falamos que, por vezes, não conseguimos dar as respostas a tempo que o país quer. O problema hoje não é a regulação da Anvisa, mas sim os tempos da Anvisa. Por mais que estejamos buscando fazer diferente e simplificar o processo, ainda temos espaço, especialmente do ponto de vista da tecnologia e da informação, para aprimorar nossos processos. Estamos com algumas tratativas nesse sentido, como o próprio modelo de submeter um processo no Brasil, que precisa ser cada vez mais adotado globalmente, já que o produto ultrapassa fronteiras. Voltando à questão da startup, estamos nos aproximando delas, pois entendemos que o produto de hoje é além-fronteira. Temos que pensar em um produto de forma que ele possa ser aprovado no Brasil e em outros países. Ainda temos algumas etapas para superar do ponto de vista, inclusive, de protocolo, para que o Brasil tenha o mesmo dossiê que é apresentado nos principais países. Isso nos ajudaria a dar velocidade nas nossas avaliações também.

Ter servidores de carreira ajuda nesse cenário?

Meiruze Sousa Freitas – Eu preciso construir uma massa de conhecimento. Nesse sentido, o Brasil adotou a estratégia de serem servidores públicos e que, de certa forma, também ajuda porque você tem essa pessoa de forma mais contínua, mais perene. Você demora a formar também um regulador. Não aprendemos a regulação quando saímos da universidade. Você também tem um tempo para formar essa pessoa como regulador. O fato de ter servidores a longo prazo facilita. E isso foi o que promoveu a Anvisa nesses 25 anos e chegar na pandemia, mesmo com déficit de mil pessoas, mas teoricamente uma agência madura. Enfrentou a maior crise sanitária dos últimos anos e conseguiu dar as respostas, pelo menos que o país estava precisando de forma mais urgente. Temos que pensar do ponto de vista da preparação, enfrentamento de crises, desastres ambientais. Nessa mesma esteira, você também prepara uma agência com a nossa atuação específica que se confunde com regulação, controle sanitário e saúde, como uma estratégia também para preparar o país para enfrentamento de crises.

Estamos observando uma mudança nos prazos de aprovação de medicamentos pela Anvisa. Antes, ela era considerada mais rápida, mas agora parece que os prazos estão se alargando novamente. Isso é verdade?

Meiruze Sousa Freitas – Sim, ele é real. Não é o tempo de avaliação da Anvisa. Nós monitoramos em relação a isso quando comparamos as principais autoridades. Nosso tempo de avaliação é muito próximo. Mas, até o processo entrar em avaliação, o nosso tempo de fila se alargou. Isso tem um impacto negativo. Nós também temos um maior número de processos entrando, o que significa que as empresas estão se desenvolvendo. O nosso mercado é um mercado interessante, e nós temos a característica do grande poder de compra do governo, o que favorece esse mercado. Percebemos também um aumento de entrada de processos com a redução de forças de trabalho, e utilizamos mais ferramentas para simplificar. Por exemplo, foi notório o tanto que, do ponto de vista da pandemia para cá, viemos utilizando a estratégia de confiança regulatória.

O que foi aprovado lá fora consegue entrar aqui, é isso?

Meiruze Sousa Freitas – O que foi aprovado lá fora, nunca podemos esquecer, não é uma aprovação que passa pelo país, até porque temos que levar em consideração as características da nossa população, a epidemiologia da doença aqui no Brasil. Um ponto que, por vezes, é colocado, principalmente em terapias avançadas ou fast track, são aprovadas nos outros países com termos de compromisso a serem apresentados lá. Então, a avaliação aqui no Brasil leva em consideração que a outra autoridade avaliou, se for a autoridade que tem a semelhança de medidas com o Brasil, verifica a adequabilidade em relação ao nosso país e ainda pede as adequações. Por exemplo, qual é o plano de minimização de risco para o Brasil? Qual é o modelo de acompanhamento para o Brasil? E assim tenta também reduzir o nosso tempo de avaliação. Uma outra estratégia que vemos sendo adotada cada vez mais, e é um desafio, é fazer as avaliações conjuntas.

Como funciona essa avaliação conjunta?

Meiruze Sousa Freitas – É abrir a avaliação quando o processo é protocolado. E normalmente é protocolado aqui e em outros países, porque o Brasil ainda é uma estratégia. Assim nós conseguimos abrir as avaliações em conjunto. Discutimos o dossiê com as autoridades e vamos lembrar que o padrão normalmente é a língua inglesa que é utilizada. Por mais que tenhamos a habilidade para ler e para escrever, mas tem às vezes nuances de tradução. Isso te dá um olhar mais desse dossiê quando ele está em outra língua, que não é a língua portuguesa, mas isso também não é um empecilho para nós, conseguimos avaliar com outras autoridades. No momento, estamos avaliando a vacina Chikungunya com a Europa. As agências abrem a avaliação do dossiê, o Brasil coloca as observações dele, a Europa coloca as observações dela, e discutimos. Tanto é que foi feito requerimento para as empresas apresentarem os dois nas duas autoridades. A EMA (European Medicines Agency’s) fez e o Brasil fez. Bem consonantes esses requerimentos. Isso acelera a entrada do produto, reduz também a carga regulatória para a empresa e também para as autoridades, é uma grande aprendizagem.

Tem um nome específico para esse programa?

Meiruze Sousa Freitas – Nós participamos de um projeto chamado Projeto Orbis, mais voltado para o campo oncológico, em colaboração com a autoridade da Europa, que tem outro nome. Além disso, há o projeto Axis, focado em inovação e liderado principalmente pela autoridade da Suíça.

Temos um programa de fast track aqui no Brasil? Como tem nos Estados Unidos?

Meiruze Sousa Freitas – No Brasil, temos programas semelhantes ao fast track, especialmente para medicamentos destinados a doenças de alta morbidade ou mortalidade, como as doenças raras. Estes programas foram estabelecidos por normas, como a de 2017, e refletem a necessidade de agilizar a avaliação e aprovação de tratamentos essenciais. Isso nos dá fast track, e avaliamos com prazos menores. A empresa está operando com prazos mais curtos, o que implica em um ritmo acelerado, principalmente devido à abordagem de considerar a falta de alternativas terapêuticas. Observamos um aumento significativo nas petições para produtos oncológicos, e recentemente realizamos uma avaliação abrangente, levando em conta também as alterações metabólicas e genéticas associadas a doenças raras. Isso resulta em uma competição entre os produtos. Essa situação nos leva a uma reflexão importante. É importante destacar que muitos desses produtos estão sendo aprovados com estudos clínicos de fase 2 e fase 3 em curso, exigindo, portanto, um monitoramento rigoroso. Geralmente, esses produtos são aprovados com um prazo de validade de três anos.

A pós-fiscalização é de responsabilidade da Anvisa?

Meiruze Sousa Freitas – É um monitoramento. Um ponto que hoje cada vez mais defendemos é o estudo de efetividade na nossa população, um estudo que seja de dados de vida real no Brasil para que consolidemos aquele fast track dentro da realidade Brasileira. Tanto é que nós liberamos um guia no passado para orientar dados de vida real porque nos anos durante a pandemia das vacinas do Covid-19, especialmente para ampliar a faixa etária, ampliar público-alvo. Depois da pandemia isso se movimenta muito no mundo. A Europa e os Estados Unidos estão avançando com o projeto Darwin de forma mais intensa. O Brasil lançou seu próprio guia e estamos discutindo, por isso, a importância, especialmente do Ministério da Saúde. Muitas dessas tecnologias acabam sendo incorporadas no SUS ou na saúde suplementar, e unimos esforços para obter informações sobre a vida prática desses produtos. Isso nos permite fazer desenhos que comprovam a efetividade e como alguns desses produtos vão se comportar, especialmente as terapias avançadas, que chegarão ao mercado com valores na casa dos milhões, sem medo de errar, acima dos 10 milhões. Também precisamos considerar o contexto dessas aprovações. Embora não sejamos responsáveis pela incorporação, especialmente uma atividade do Ministério da Saúde pela Conitec, ou mesmo da saúde suplementar, precisamos manter o sistema de saúde brasileiro funcionando. Este é o momento de todos se unirem, inclusive nas discussões sobre a judicialização, pois sem elas, podemos sobrecarregar o sistema de saúde do país, o que certamente não é nosso objetivo. Nosso objetivo é favorecer o acesso.

Como você vê o cenário da aprovação do PL das pesquisas clínicas e qual seria o impacto previsto na atuação da agência reguladora e, consequentemente, na chegada de medicamentos e testes aqui no Brasil?

Meiruze Sousa Freitas – Primeiro, é positivo termos um marco legal de pesquisa clínica, porque atuamos na área de pesquisa clínica, mas sempre falta um braço da legalidade. Tem um ponto positivo e talvez o fato de ter a lei seja um impulsionador do tema. Acredito que o PL não vai fazer a virada, mas pode impulsionar. E não penso que o Brasil está pessimamente colocado em algumas situações. Nós estamos na 17ª posição em pesquisa clínica no mundo, mas acredito que temos o potencial para estar entre os 10 primeiros. Pelas nossas características, nós temos um sistema regulatório no Brasil adequado e forte. Temos um ambiente da nossa miscigenação que é muito interessante e temos um corpo clínico no Brasil, o tamanho que esse país é. Portanto, acredito que temos um ambiente favorável. Um aspecto bastante interessante do PL é a inclusão da adoção das boas práticas clínicas, o que pode se tornar uma estratégia fundamental. Isso pode impulsionar os centros de pesquisa clínica no Brasil a adotarem essas práticas, tornando-os qualificados internacionalmente. Isso favorece um maior número de conduções. Devemos lembrar que as pesquisas clínicas conduzidas aqui são frequentemente utilizadas por outras autoridades. Todos os nossos dados de vacinas foram usados por outras autoridades, então as pesquisas precisam ser robustas.

Há algo que preocupa nessa lei?

Meiruze Sousa Freitas – Nos preocupa o estabelecimento de prazos, algo inerente a toda lei, mas precisamos ter uma capacidade operacional maior para acompanhar as pesquisas clínicas e reduzir o número de aprovações táticas. Além disso, também utilizamos dados de outras autoridades na pesquisa clínica. Quando uma autoridade já aprovou determinada pesquisa, ela passa por uma avaliação mais abreviada no Brasil. Não é adequado pensar que apenas a lei resolverá isso. Por exemplo, a lei estabeleceu um prazo de 90 dias para aprovação tática. No entanto, não acreditamos que este seja o caminho para fortalecer a pesquisa clínica no Brasil. Mas, olhando do ponto de vista da atuação da Anvisa, há muitos aspectos positivos nesta questão da lei.

Como a Anvisa vê o desenvolvimento da cannabis medicinal no Brasil e o interesse do Legislativo nesse tema?

Meiruze Sousa Freitas – Participei muito da construção da RDC 327. Foi uma boa estratégia regulatória quando olhamos o mundo para favorecer pelo menos uma regularização desses produtos, com um fator forte de qualidade, uma vez que ainda há necessidade, ainda há dificuldade do ponto de vista das padronizações para condução de estudos clínicos. Isso é real. Olhando o voto de 2019 e fazendo a discussão hoje eu falei assim: ‘Temos muita coisa lá que não foi resolvida’.

Em termos de qualidade da evidência?

Meiruze Sousa Freitas – Sim. Ainda existem muitos estudos observacionais e os estudos clínicos com dificuldade de serem padronizados. Porque são formulações diferentes, dificuldades de doses, via de administração. Ainda há uma dificuldade nesse sentido, mas acredito que precisa ser melhor supervisionada para ser superada porque mantém cada vez mais discussões de indicações terapêuticas para esse tipo de produto. Existe sim uma evolução de pesquisas para esse tipo de produto. Penso que talvez a própria questão de termos pensado na estratégia de dados de vida real, você pode colocar esse tipo de produto num desenho de estudo mais adequado. A minha percepção é que vai começar, talvez nos próximos, vamos viver um apelo social forte por acesso desse produto, mas vamos começar a sair um pouco só desses apelos. Devemos entrar um pouco mais na racionalidade terapêutica desse tipo de produto com alguns produtos, conseguindo chegar até a fase do medicamento. Acredito que o cenário mundial é de uma intenção ainda dessa estratégia. Não sei o Brasil. Claro que amanhã pode ser que aconteça. Mas vejo movimentos olhando nessa avaliação de pacto.

Nos EUA, a cannabis é regulamentada como suplemento e amplamente disponível. No Brasil, a Anvisa optou por regulamentá-la como medicamento.

Meiruze Sousa Freitas – Primeiro, é importante considerar o seguinte: naquela época, estudei bastante essa questão da utilização como suplemento. A base para isso estava no fato de que a cannabis estava sendo considerada como um suplemento devido à presença do sistema endocanabinóide em todo o corpo, inclusive no sistema nervoso central. Isso chamou a atenção para a possibilidade de ser um suplemento. Devemos lembrar que a regulação nos Estados Unidos é muito diferente do Brasil para esse tipo de produto, sendo muito mais permissiva. No entanto, é importante destacar que a própria FDA tem feito algumas considerações sobre esse assunto, sugerindo uma revisão desse processo. Em 2023, eles publicaram em sua página chamando a atenção para os medicamentos aprovados como derivados da cannabis.

O que você pensa de 25 anos para frente? Para onde a agência está indo, onde você acha que estão os movimentos que precisam acontecer para que esses saltos aconteçam?

Meiruze Sousa Freitas – Não tem como não pensar nesses 25 anos sem trazer junto a história do fortalecimento da política de genérico no Brasil. Isso é fantástico quando pensamos do ponto de vista de acesso. Tem um artigo de uma servidora nossa que estava fazendo a comparação de um produto que ela pegou que lá na época, o quanto aquele produto custava, uma pessoa tinha que trabalhar 21 dias pra comprar um medicamento de referência, 21 dias. Hoje, pra comprar o mesmo produto como genérico, ela trabalha 0,76 horas do dia. Nesses 25 anos arrastamos a história do genérico, e ela também arrasta a história da indústria nacional, que deu um salto. Hoje eu diria que a produção no Brasil não deixa nada a desejar aos principais países. 

Qual será o caminho daqui pra frente?

Meiruze Sousa Freitas – Cada vez mais os tratamentos vão ser individuais e o papel da telemedicina também vai se impor nesse processo. A questão de produtos combinados também vai entrar, seja do ponto de vista da terapia avançada, especialmente terapia gênica, engenharia celular, combinado com outros produtos. Eu diria que hoje é o grande desafio nosso, é pensar nesses produtos combinados, como que nós vamos atuar. Porque a terapia vai ser cada vez mais específica para um paciente. Aprovar plataformas. Talvez tenhamos que sair da aprovação de produtos para aprovar plataformas. Essa é uma realidade que começa a aparecer e está se tornando mais forte nas terapias avançadas. Isso vai exigir que a regulação se reinvente, tanto em termos da necessidade de capacitação, trazendo pessoas cada vez mais com conhecimento multidisciplinar para dentro desse campo, quanto em outros aspectos.

E os biossimilares?

Meiruze Sousa Freitas – Os biossimilares devem assumir uma importância semelhante à dos genéricos. Não que eles vão substituir os genéricos, mas vão revolucionar o tratamento, especialmente no que diz respeito ao acesso. Eu vejo isso como um caminho promissor. Percebemos mudanças regulatórias fortes, cada vez mais se conhece e se tem mais segurança nesses produtos. Prevê-se uma queda considerável de patente até 2030, o que significa que o mercado deve se voltar para os produtos biossimilares, levando o Brasil a ter um maior número de moléculas biossimilares. Penso até que isso possa favorecer a produção local de biossimilares, o que representa um desafio para nós, pois haverá uma discussão crescente sobre os biossimilares como equivalentes terapêuticos passíveis de substituição para proporcionar acesso. Precisamos ter uma estrutura para fazer o monitoramento pós-mercado e aqui eu volto mais uma vez ao ponto: dados de vida real e efetividade são essenciais para garantir segurança clínica nessas trocas que inevitavelmente ocorrerão.

Qual será a ação da agência? 

Meiruze Sousa Freitas – Acredito que a agência tende a crescer e tomar um lugar mais de protagonismo no enfrentamento de crises. E aí é um ponto também que ela precisa ser mais preparada, inclusive do ponto de vista pessoal, porque o país precisa ter uma estrutura para enfrentamento de crises, seja crises sanitárias e seja crises ambientais. Uma coisa que acredito que pode acontecer mesmo, nessa tendência de controle ambiental, é termos algumas estratégias para empresas que tenham produções mais limpas, que sejam empresas que adotem mais a filosofia, as estratégias de ESG, trazendo isso como um critério também de sustentabilidade. Esse pode aparecer aí pra frente ainda, não está tão maduro hoje, é só mais para as compras públicas, mas acredito que a sociedade vai exigir cada vez mais. E desse ponto de vista, da sociedade, tem de acontecer o movimento da sociedade buscar mais voz nas decisões das agências, especialmente associações dos pacientes, e vamos ter que aprender como lidar nesse ponto de dar voz à sociedade.

Eles terão mais voz no processo?

Meiruze Sousa Freitas – Eu diria que esse é um caminho que a agência vai ter que aprender como organizar. Na Câmara Técnica de Registro de Medicamentos nós colocamos, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), pensando como o primeiro movimento em relação a isso, mas ainda não é o movimento mais adequado. Acho que até o IDEC falou assim: “Isso aqui é muito tecnicista pra mim”. É um desafio e a agência vai ter que caminhar aprendendo a escutar mais a sociedade e a dar valor ao querer da sociedade na sua tomada de decisão. Mas isso não significa simplesmente “tem que ser aprovado” ou “tem que ser reprovado”. O que você vai perceber é a sociedade empoderada desse conhecimento científico e fazendo um debate qualificado também, porque as pessoas estão buscando isso. Elas querem ser voz desse processo. Acredito que esse é outro desafio da agência para os próximos anos. E, por fim, ainda é desafiante para onde vamos, pois se não aumentarmos essa capacidade, tudo o que estamos projetando aqui não conseguirá realmente ser efetivado, e o Brasil corre o risco de perder o protagonismo farmacêutico que nós temos. É um risco, e por isso que, como nós somos estratégicos para o complexo econômico e industrial da saúde, nós somos estratégicos para a sociedade. Penso que pode ser que não seja este o melhor momento, mas nos próximos três anos, vamos ter uma revolução de uma agência mais forte.

Natalia Cuminale e Rafael Machado

Natalia Cuminale é fundadora e diretora de conteúdo do Futuro da Saúde. Rafael Machado é repórter do Futuro da Saúde.

Natalia Cuminale é fundadora e diretora de conteúdo do Futuro da Saúde. Rafael Machado é repórter do Futuro da Saúde.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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