Médicos e indústria: uma relação complexa como deve ser
Médicos e indústria: uma relação complexa como deve ser
Em artigo para Futuro da Saúde, o advogado sanitarista Silvio Guidi, sócio da SPLAW, fala sobre a regulamentação do CFM sobre a relação entre médicos e indústria
O maniqueísmo toma conta da nossa sociedade. Em tempos de forte polarização, a população passa a associar certas ideias a um ou outro lado político. Assim, tudo aquilo que possa ser conectado à bandeira da esquerda é tido como ruim para quem se identifica com a direita. A recíproca é verdadeira. Mas o maniqueísmo traz vários problemas, tanto ao indivíduo quanto à coletividade. Um deles é a simplificação da vida entre o bem e o mal, tal qual o julgamento de uma criança que divide a vida entre herois e vilões. Assim, retira-se da perspectiva a nuance mais importante a se ter em mente: a vida é complexa. Raramente, as coisas são “simples assim”. Outro problema, associado ao primeiro, é a crença de que existem soluções fáceis para os problemas complexos da vida. Dificilmente, a solução passa pela máxima: “faz uma lei que resolve”.
Essa rápida passagem pela filosofia serve para falar sobre um assunto muito delicado: a relação dos profissionais da medicina com a indústria. Para a vida real, essa interação não é boa ou ruim, mas necessária. É difícil enxergar o desenvolvimento das ciências da saúde sem a participação dos médicos. E mais difícil ainda é conceber o avanço das tecnologias chegando à população sem que passe pelo crivo desses profissionais. Médicos participam ativamente das pesquisas atreladas a tecnologias em saúde (medicamentos, equipamentos etc.) e, sem tal participação, estaríamos muitos passos atrás na assistência à saúde. Uma vez ultrapassadas as fases da pesquisa, também são os médicos os principais responsáveis pela prescrição dessas tecnologias como técnica terapêutica. E para que isso aconteça, a indústria precisa interagir ativamente com a medicina. O melhor dos medicamentos pode ficar estocado indefinidamente, caso não haja um legítimo trabalho de publicidade dessa nova tecnologia, voltada a informar a classe médica da novidade.Em resumo, a indústria depende do médico.
E a complexidade cresce, quando envolvida a figura do paciente. Há um enorme hiato informacional entre os profissionais da medicina e a população em geral. A linguagem da medicina é incompreensível para a imensa maioria. Diante disso, ao paciente cabe uma espécie de confiança cega. E quanto a isto, não há muito o que ser feito. Embora desejável, e seja inclusive um direito, é muito difícil transferir ao leigo todas as informações para que possa compreender o porquê de o médico ter receitado determinado medicamento ao invés de outro, por exemplo. E na dinâmica da atenção coletiva à saúde, sequer há tempo para isso. Em resumo, o paciente também depende do médico.
Assim, o profissional da medicina é peça-chave para a engrenagem da saúde. É o principal elo para que tecnologia produzida pela indústria chegue ao paciente que dela necessita. Essa superdependência gera efeitos indesejados, que demandam controle adequado. Um dos piores é a corrupção. Sendo o médico indispensável para que o sistema de saúde funcione, não é incomum encontrar indivíduos que abusam dessa posição para proveito próprio. Isso já é um problema grave em si. Mas se torna ainda pior quando o paciente deixa de ser o foco e passa a ser o instrumento para o exercício da cobiça. E atinge o ápice da gravidade diante dos escassos recursos da saúde brasileira, que deixam de ser preservados ou adequadamente utilizados.
Esse contexto bem explica a recente Resolução do CFM 2386/2024. Em resumo, a nova norma impõe aos médicos que divulguem, no portal do Conselho, relações contratuais que possuam com os atores da indústria farmacêutica (laboratórios, distribuidores, importadores etc.). Em tese, agora, o paciente poderá saber se o médico prescreveu medicamentos fabricados por laboratório com o qual possui vínculo. Essa informação pode permitir ao paciente uma melhor decisão sobre o grau de confiança a ser depositada no profissional médico. A ótima ideia é inspirada no Sunshine Act, lei americana que impõe igual obrigação, criada após inúmeros escândalos envolvendo o pagamento de comissões indevidas a médicos.
Mas uma ótima ideia não assegura um ótimo resultado. E aqui reside todo o problema. Afinal, como a tentativa de transparência pode servir de inibidor da corrupção, sem desestimular as majoritariamente sérias relações de profissionais médicos com a indústria?
Já não é de hoje que os impactos das resoluções do CFM ultrapassam os interesses dos profissionais da medicina, avançando na sociedade como um todo. A Resolução afeta a indústria, os gestores públicos e privados de serviços de saúde, as instituições que desenvolvem pesquisas clínicas e o próprio paciente. Apesar disso, não se viu o Conselho convidando atores da sociedade a colaborar com a construção da norma. Afinal, sendo inúmeros os atores envolvidos em um problema tão sério quanto à corrupção na saúde, é difícil imaginar que uma iniciativa unilateral consiga
resolver um problema tão complexo.
Ninguém é contra a transparência, claro. Mas ninguém deveria ser favorável a soluções autoritárias ou unilaterais, especialmente em detrimento ao consenso. A transparência não brota de lugar algum. Não é uma “lei” que irá descortinar relações potencialmente obscuras. Fosse assim tão simples, todos os problemas do país seriam resolvidos por meio de leis solucionadoras. E há muito já se sabe que a transformação da cultura é a ferramenta mais capaz de contribuir com a evolução da sociedade. Mudar a cultura é convencer, não impor.
Mais importante do que o país ter uma norma sobre transparência na relação entre médicos e indústria, é o processo de formação da nova regulação. A jornada de debates é que transforma e é capaz permitir o avanço. Não é à toa que o Congresso Nacional ainda decante esse tema, debatendo-o em dois Projetos de lei (204/2019 e 7990/2017).
E nesse contexto, não se pode duvidar da própria eficácia da Resolução. É crível imaginar que os corruptores irão simplesmente informar a corrupção que praticam? E aqueles que têm boa-fé na relação com a indústria, não irão se sentir inibidos em seguir com essa interação, especialmente por não saber como o conteúdo informado será exposto? Essas e outras dúvidas, desafiadoras da eficácia da solução imposta pelo CFM e que poderiam ser esclarecidas antes da publicação da Resolução, podem causar um efeito indesejado. De um lado, esvaziar as chances de efetividade no
combate à corrupção. De outro, desestimular a necessária relação dos profissionais médicos com a indústria.
O que traz certa esperança é que a norma só vai passar a viger em seis meses. Quem sabe, nesse período, o CFM possa realizar audiências e consultas públicas. Convidar para debater a norma os representantes do SUS, dos pacientes e das diversas instituições que representam a indústria, viabilizando seu aperfeiçoamento antes mesmo da sua entrada em vigor. Talvez o Conselho compreenda que seu lugar de protagonismo nesse combate não equivale a ter uma competência privativa para regular o tema. Só assim a Resolução deixará de se revelar fruto de um ideal
maniqueísta e apta a ser instrumento para combater a corrupção na interação entre médicos e indústria, sem acabar com a relação em si.
*Silvio Guidi, Advogado Sanitarista, Mestre em Direito Administrativo pela PUCSP e Sócio em SPLAW
Recebar nossa Newsletter
NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.